CAPÍTULO 7
Livros insurgentes de poetas negros contemporâneos de Brasília
Desde 2015, há uma onda de jovens poetas negros que estão publicando livros e alterando a demografia, a estética e os temas da esfera literária na capital. A maioria desses poetas – que têm principalmente entre 20 e 30 anos – também se identifica como mulher, LGBTI+, de baixa renda ou da periferia, e suas identidades interseccionais não hegemônicas são centrais para seu trabalho. Através de sua poesia e das práticas de editoração, esses escritores proclamam o direito criativo dos moradores negros (e interseccionais) do DF à cidade. A publicação do que eu chamo de livros insurgentes afirma o direito à existência de grupos subalternos na esfera literária. Muitos desses poemas denunciam as experiências de hostilidade dos cidadãos negros e de outros coletivos marginalizados no espaço público, particularmente em espaços de trânsito. Os escritores retornam continuamente à ocupação física e simbólica do espaço como um ato de resistência à ordem social hegemônica. O capítulo analisa os seguintes autores e publicações: Periférica (2017), de Kika Sena; Zumbi dos ipês (2018), de Marcos Fabrício Lopes da Silva; Sangue (2018), de Nanda Fer Pimenta; escura.noite (2018), de Katiana Souto; Um verso e Mei (2017), de Meimei Bastos e lundu, (2016) e mil994 (2018), de tatiana nascimento.
Com tantos escritores em consideração, um breve resumo do zeitgeist da poesia de cada um, bem como alguma informação sobre a identidade que reivindicam, pode ser útil. Sena se identifica como uma mulher trans negra da periferia e publicou seu primeiro livro, Periférica, em 2017, com uma tiragem de 500 exemplares (Sena, Periférica 5). A poesia de Sena e as ilustrações do livro denunciam como mulheres trans negras e periféricas são rotineiramente assassinadas em crimes de ódio. Ao se referir a essas mulheres como sereias, a obra de Sena as ressignifica e as honra. Lopes da Silva, nascido em 1979, é o mais velho dos poetas aqui analisados. Ele identifica-se como afro-brasileiro, e Zumbi dos ipês é sua quinta coleção de poesias (Lopes da Silva, Zumbi quarta capa). Os poemas de Lopes da Silva exploram as formas pelas quais a diáspora africana está unida e fortalecida por séculos de cultura e de resistência dos seus ancestrais. Nanda Fer Pimenta se identifica como uma mulher negra, e Sangue, com tiragem de 500 volumes, é seu livro de estreia que inclui referências autobiográficas à pobreza e à fome sofrida por sua família durante sua infância (Pimenta, Sangue 6; Pimenta Facebook). Os poemas de Pimenta são marcados por repetições e palavras inacabadas, divididas ou gaguejadas, que se aproximam das experiências da autora com a dislexia. Sua poesia oscila entre denúncias e celebrações feitas em poemas empoderados (muitas vezes eróticos) sobre a experiência de amor-próprio e prazer, apesar das normas sociais opressivas. Esses temas são destacados também nas imagens de Luis Próton, que acompanham os poemas. Souto, a mais nova dos poetas aqui considerados, nasceu em 1997, e se identifica como negra, indígena e LGBTI+ (Souto 6; Souto cit. em N. Maciel, “Conheça”). Seu primeiro livro, escura.noite, teve uma tiragem de 44 exemplares e uma versão online gratuita. Souto escreve poemas marcados por uma linguagem clara e objetiva – como se a história de silenciamento dos grupos a que pertence agora demandasse expressões diretas e inequívocas. tatiana nascimento, que se identifica como lésbica negra, é autora de cinco livros de poesia (nascimento, Letramento 10). Os poemas de nascimento, conduzidos pela estética e pelo jogo de palavras, estão focados em sondar os múltiplos significados de um vocábulo ou neologismo. Bastos se identifica como uma mulher negra periférica, e Um verso e Mei é seu primeiro livro (M. Bastos, Um verso orelha). Os poemas de Bastos possuem um otimismo feroz a respeito da possibilidade da periferia se unir em solidariedade contra os agentes do poder hegemônico.
Para todos esses escritores, lutar por um espaço para vozes dissidentes dentro do mundo literário é uma preocupação central, o que pode ser percebido não só em seus poemas, mas também em outros materiais que produzem e pelas editoras às quais se vinculam. Cinco dos livros aqui analisados foram publicados pela padê editorial – dirigida por nascimento (moradora do DF) e Bárbara Esmenia (residente de São Paulo) e fundada em 2015. Essa editora é responsável por liderar o aumento das publicações de poetas negras do DF. Como divulgado em seu site, “a padê é um coletivo editorial que publica . . . livros artesanais de autoras negras, periféricas, lésbicas, travestis, pessoas trans, bissexuais . . . procuramos escritas que combatam opressões” (padê editorial). A padê lançou vários livros em séries específicas. Sena, Pimenta e nascimento escreveram para a série “Odoyá”, dedicada a Iemanjá, orixá do mar na umbanda e no candomblé. O livro de Souto faz parte da série “escrevivências” (em homenagem ao neologismo de Conceição Evaristo, discutido no Capítulo 6) sobre “literatura lgbtqi+ (majoritariamente) negra contemporânea” (Souto 5). A editora de Bastos, Malê – com sede no Rio de Janeiro e fundada em 2015 por Vagner Amaro e Francisco Jorge – publica autores afro-brasileiros, buscando aumentar sua visibilidade (Silva de Oliveira). A editora de Lopes da Silva, Avá, fundada em 2012 em Brasília, descreve-se como um coletivo que defende “a democratização da literatura e do livro” (Página de Facebook da Avá). Poetas sustentam que publicar em editoras alternativas lhes possibilita um espaço de autoexpressão, tão sufocada por normas sociais conservadoras. Sobre a série “escrevivências”, da qual participa, Souto argumenta que “as minorias são invisibilizadas”, mas “com o projeto, elas têm um espaço para expressar o que sentem, falar sobre a realidade que vivem” (cit. em Brito 24). Pimenta afirma que “estamos cansados de ficar à margem. Queremos dizer que existimos. Queremos falar. Não somos dados ou porcentagens ou estatísticas. Somos pessoas que precisam falar, temos o poder da fala” (cit. em N. Maciel, “A força” 1). Em seus livros, Lopes da Silva, Sena, Bastos, Pimenta e Souto incluem autobiografias curtas nas quais abordam questões de política de identidade.
Cristiane Sobral, autora negra carioca que vive em Brasília desde 1990, abriu caminho para essa nova geração de poetas negros (e predominantemente mulheres feministas) do DF.[1] Em um de seus poemas mais famosos, intitulado “Não vou mais lavar os pratos”, o eu lírico, uma mulher negra, aborda um(a) chefe rico(a) branco(a), acusando-o(a): “Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto” (Não vou 17). A referência ao alfabeto relaciona-se a como grupos dominantes têm historicamente controlado o discurso. Ao analisar as proibições sociais a respeito de discussões sobre política e desejo, Foucault afirma que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, A Ordem do Discurso 10). A retomada do alfabeto – ou seja, do poder de controlar o significado simbólico e o discurso – apresentada no poema de Sobral é uma ideia central para todas as coleções de poesia mencionadas.
Várias semelhanças estéticas e temáticas demonstram o compromisso desses livros com a luta de grupos marginalizados pelo espaço físico e simbólico. Os autores pedem que coletivos contra-hegemônicos ocupem o lugar de fala. Tematicamente, todos os livros estão comprometidos com objetivos políticos progressistas, entendendo-os como locais e globais, simultaneamente. Muitos poemas referem-se, por exemplo, à herança cultural compartilhada da diáspora negra, à Passagem do Meio, ao comércio de escravos no Atlântico e às religiões latino-americanas de inspiração africana. Vários poemas ecoam os argumentos de Abdias do Nascimento sobre o genocídio contra os negros brasileiros: tentativas de aniquilar seus valores culturais; taxas de homicídios relativamente elevadas; desemprego e baixos salários; acesso desigual à educação e assim por diante (O Genocídio do Negro Brasileiro). Ao elaborar sobre poesia LGBTI+ negra, nascimento brinca com a ideia de literacura: escrever como cura para a dor que esses grupos marginalizados sofrem (“o cuíerlombo” 15). O interesse pelo tema da superação da dor ressoa em todas as coleções analisadas neste capítulo. Os textos de Sena e nascimento empregam o espanhol y no lugar do português e, uma escolha que, segundo a última poeta, marca a solidariedade com as feministas caribenhas e latino-americanas (nascimento, Letramento 9). Pimenta também mescla espanhol ao português em sua obra. Diversos poemas encontrados nesses livros são autobiográficos, ligando experiências de opressão ou prazer físico à necessidade de pessoas marginalizadas terem voz pública. Por exemplo, quando Souto escreve um poema sobre a alegria que uma mulher lésbica negra e periférica sente ao fazer sexo oral em sua parceira menstruada – o que deixa o rosto dessa amante como o de uma “palhaça pintada de vermelho” (44) –, a artista desafia vários sistemas de dominação. Souto está usando o abjeto no sentido atribuído por Kristeva: o poema é perturbador porque desrespeita lugares, limites e regras do discurso socialmente apropriado (Kristeva 1–6). Em consonância com as teorizações de Tennina sobre a poesia feminina periférica contemporânea em São Paulo, o poema, ao tratar dos desejos do eu lírico aberta e publicamente, questiona o “lugar relegado” que as mulheres periféricas (e neste caso também LGBTI+ e negras) ocupam (Tennina “A voz” 64). Como David William Foster ressalta em sua obra seminal Gay and Lesbian Themes in Latin American Writing (1991), as vidas e os interesses das mulheres gays aparecem muito menos do que os dos homens gays na escrita latino-americana, mas a poesia tem sido o gênero em que as vozes das mulheres LGBTI+ são mais proeminentes (4–5).
Esteticamente, os poemas também confrontam sistemas de dominação. Souto e nascimento escrevem tudo em letras minúsculas, um estilo que ganhou popularidade com a teoria feminista negra de bell hooks. Os textos de introdução dos livros da padê editorial muitas vezes feminizam palavras tipicamente masculinas, mudando encontros e caminhos para os substantivos inventados encontras e caminhas, um costume popular no português falado e escrito da juventude LGBTI+ e feminista (Pimenta, Sangue 5). Essas escolhas estéticas rejeitam hierarquias e sistemas sociais impostos. Na medida em que o julgamento estético está localizado dentro das estruturas sociais (Bourdieu, Distinction 468–86), a criação de uma nova estética representa a tentativa de acabar com a estrutura social conservadora. De forma mais geral, os poemas – sem métrica ou rima, cheios de gírias, abreviaturas típicas das mensagens de texto e referências à cultura pop – rejeitam as formalidades da poesia tradicional da elite branca masculina.
A publicação dos livros insurgentes e o direito criativo à cidade
Os poetas aqui considerados adotam formas alternativas e contemporâneas para a divulgação de seu trabalho. Eles organizam ou participam de slams e saraus e têm seus poemas disponíveis online, em formato de vídeo, áudio e texto. Porém, todos eles também optaram por escrever livros. Apesar da digitalização e da mídia mista do século XXI, o livro – objeto físico, feito de tinta sobre o papel dobrado – ainda pesa enormemente para o poeta como símbolo de desejo e de legitimidade. O leitor pode tocar o livro; a livraria pode exibi-lo na vitrine; o poeta pode, com ele, presentear alguém; o consumidor pode comprá-lo; o concurso de poesia pode criticá-lo: é com a publicação de um livro que, aos olhos do público, o poeta passa de amador a escritor profissional.
No entanto, para poetas subalternos, tornar-se autor de um livro significa enfrentar muitos obstáculos. O influente livro Literatura brasileira contemporanea: um território contestado (2012), de Regina Dalcastagnè, revelou quantitativamente a homogeneidade da elite do mundo editorial brasileiro. Com uma equipe de pós-graduandos da Universidade de Brasília, Dalcastagnè examinou os autores e as personagens de 165 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas três principais editoras brasileiras (Companhia das Letras, Record e Rocco). O estudo demonstrou que 93.9 por cento dos autores eram brancos; 81 por cento das personagens principais eram heterossexuais; mais de 70 por cento dos autores e personagens principais eram homens; e 78.8 por cento dos autores tinham diploma universitário (Dalcastagnè 158, 160, 165, 167). Em uma versão atualizada da pesquisa, cobrindo romances publicados entre 1965 e 2014, Dalcastagnè descobriu que, nos livros publicados entre 2005 e 2014, o domínio dos autores brancos aumentou para 97.5 por cento, e os homens escreveram 70.6 por cento dos romances publicados naquele período (C. Maciel). Os estudos de Dalcastagnè confirmam numericamente que a indústria editorial é dominada por homens brancos com conteúdo focado no mesmo grupo. Além disso, esses autores (dos romances lançados de 1990 a 2004) tendem a ser do Rio de Janeiro (36.4 por cento), de São Paulo (13.3 por cento), do Rio Grande do Sul (12.7 por cento) e de Minas Gerais (10.9 por cento) (Dalcastagnè 161). Como os autores analisados neste capítulo vivem em Brasília, pertencem a um ou mais grupos não hegemônicos e escrevem poesia (que vende menos que prosa), eles encontram inúmeros contratempos para serem publicados.
Neste meio exclusivo, as editoras alternativas no DF adquirem importância política por defenderem a existência de escritores minoritários na esfera literária. Em Brasília, o surgimento dessas editoras – como Avá, padê editorial, Maria Cobogó (focada em escritoras do DF) e Abadia Catadora (focada em escritores populares do DF) – tem contribuído para a divulgação do trabalho de grupos marginalizados específicos e para a busca de democratização da literatura. Cofundadora da padê editorial, nascimento afirma que “essas editoras alternativas estão sinalizando que o mercado editorial é fechado, heteronormativo e cria expectativas sobre o tipo de texto que temos de escrever. Então elas surgem como alternativa a esse padrão imposto” (cit. em Brito 24). Assim, escritores jovens negros e não hegemônicos no DF contornam os guardiões do mérito literário criando suas próprias editoras.
Historicamente, a publicação nas principais editoras nacionais tem sido negada a escritores negros e marginalizados (sem mencionar a falta de oportunidade de aprender a ler e escrever). Nesse contexto, a criação de livros por meio de esforços colaborativos dentro de microeditoras é uma ferramenta que permite que eles sejam vistos como autores “legítimos”. Os artistas e microeditoras encontram soluções criativas para diminuir os custos de produção, a fim de tornar a publicação uma realidade para autores sub-representados (Brito 24). As encadernações dos livros da Avá e da padê editorial são costuradas à mão pelos próprios poetas. São eles que solicitam subsídios para cobrir os custos de publicação, dobram o papel para criar as páginas dos livros e preparam as capas. Essas podem ser feitas de tecido ou papelão, as costuras dos livros ficam visíveis e as tiragens são de centenas de exemplares. Os livros têm, portanto, caráter artesanal, mas possuem ISBN, uma marca que registra o texto globalmente e o torna localizável.
Esses livros fazem parte de uma tendência contemporânea maior, que inclui livretos de cordel, livros artesanais e de tiragem independente, produzidos por jovens brasileiros oriundos de grupos minoritários, que muitas vezes vivenciam e escrevem sobre discriminação. Tal fenômeno expressa o desejo de inserção na esfera literária, enquanto a indústria editorial tradicional apenas lentamente se torna mais receptiva aos autores negros e de outras comunidades subalternas.
Tanto em termos do trabalho que exigem quanto dos resultados que catalisam, os livros analisados neste capítulo são semelhantes ao processo de construção de casas chamado por James Holston de autoconstrução: a construção paulatina da própria casa na periferia urbana. O antropólogo argumenta que, desde a década de 1970, a autoconstrução tem subvertido a desigualdade promovida pelos sistemas jurídico e político brasileiros. Ela transformou o que em 1940 era terra desocupada em periferias urbanas “densamente habitadas, socialmente organizadas” e, desde a década de 1990, criou “um novo tipo de espaço político e simbólico na geografia nacional do país” (Cidadania 30, 34). Holston afirma que “ao construir as periferias urbanas, os trabalhadores de São Paulo se tornaram proprietários de imóveis, fiscais e consumidores modernos. Através do desenvolvimento dessas identidades sem precedentes, passaram a se ver como cidadãos-contribuidores, dotados de direitos enquanto partes interessadas da cidade” (Cidadania 49). Da mesma forma, ao publicar livros, esses autores contra-hegemônicos do DF assumem a identidade sem precedentes de escritores, uma identidade antes reservada principalmente a homens brancos da elite. O curto poema “sem pá”, de nascimento, captura essa ideia. Se fosse lido em voz alta, “sem paixão não tem poesia” soaria como um truísmo. Porém, a poeta constrói esses sons usando outras palavras: pá, chão, cia e pó:
sem pá
i chão num
tem pó
& cia (lundu, 112)
O poema sugere, assim, o trabalho coletivo (criativo e manual) empregado para produzir livros de poesia capazes de transformar o panorama literário.[2]
Eu uso o termo livros insurgentes para me referir a essas coleções de poesia do DF porque funciona, no domínio da literatura brasileira, assim como a noção de Holston de cidadania insurgente funciona no âmbito da política e do direito brasileiros. Para Holston, um fator significativo para entender a desigualdade no Brasil é reconhecer que a lei e a política brasileiras têm operado de forma a proteger cidadãos privilegiados e discriminar cidadãos desprivilegiados, uma divisão que ele chama de cidadania diferenciada. Os brasileiros têm usado fartamente as estratégias do direito “para legitimar apropriações ilícitas de terras”, escreve Holston (Cidadania 51). Através de equívocos legais e políticos que legalizaram privilégios e legitimaram desigualdades (como a cela privada garantida aos presos portadores de diploma universitário), ele explica a desigualdade inerente ao sistema (Cidadania 22, 56). A cidadania insurgente é uma forma pela qual muitos brasileiros urbanos desprivilegiados se capacitam, usando os mesmos métodos que foram utilizados para privá-los de seus direitos:
no desenvolvimento das periferias autoconstruídas, os mesmos lugares históricos da diferenciação – os direitos políticos, o acesso à terra, a ilegalidade, o servilismo – alimentaram a irrupção de uma cidadania insurgente que desestabiliza os privilegiados. Embora continuem a sustentar o regime de cidadania diferenciada, esses elementos representam também as condições de sua subversão, na medida em que os pobres urbanos garantiram seu direito à cidade, adquirindo direitos políticos, tornando-se donos de imóveis, usando a lei a seu favor, criando novas esferas públicas de participação e se transformando em consumidores modernos (Cidadania 34)
Para autores marginalizados, ter seu próprio livro é como ter uma casa própria. Um livro representa a subversão tangível de um sistema de exclusão. Ter um livro garante acesso a uma comunidade literária tanto na prática (os poetas podem submeter seu livro à apreciação de prêmios literários, por exemplo) quanto simbolicamente (os poetas adquirem capital social). Nesses casos, “o meio é a mensagem”, não no sentido da frase de Marshall Mcluhan tal como usada originalmente, para entender como as novas tecnologias mudam a escala e o ritmo, mas em um sentido diferente (Mcluhan 7). A proliferação de livros de poetas negros e de grupos não hegemônicos do DF é tão significativa quanto o conteúdo dos poemas, sinalizando a recusa desses autores em permanecer excluídos do estimado meio da esfera literária. Para apreciar a nuance dessa resistência, leituras cerradas de poemas individuais também são necessárias.
Periférica (2017), de Kika Sena
Sociólogos e geógrafos apontam que racismo, elitismo, sexismo e cissexismo[3] podem dificultar a liberdade dos grupos minoritários de se locomoverem pelo espaço público urbano sem medo e assédio (Cresswell; Dunckel Graglia; Lubitow et al.; Valentine). A coleção de poesia de estreia de Sena, Periférica (2017), impregna essa realidade com emoção visceral e estética intrigante. Escrevendo como uma poeta trans negra de baixa renda da periferia, Sena lamenta a violência e a hostilidade que aqueles que compartilham sua experiência de identidade sofrem em espaços públicos voltados para o “macho rico branco e cristão” (Sena, Periférica 10).[4] Seu poema “já soubesse da de hoje?”, por exemplo, inclui os versos:
quando digo que meu corpo é centro
de murros e tiros e facadas
não minto
…………………….
este mesmo Centro
que ao mesmo tempo
me puxa e empurra pra fora dele
…………………….
…este Centro
só quer me matar
e esconder meu corpo (73)
Ao longo de todo o poema, Sena brinca com os significados de centro, considerando o perigo e a necessidade de mulheres trans negras da periferia serem o foco das atenções em centros proeminentes de poder. O poema utiliza Centro em maiúsculas para se referir ao ponto medial da cidade e centro em minúsculas para se referir ao corpo marcado da mulher, alvo de violência física, policial e distorções na mídia. O eu lírico observa a tensão entre a necessidade de ocupar lugares públicos e simbolicamente centrais na cidade e o perigo físico de fazê-lo.
Seus poemas “abrição” e “excêntrica?” apresentam a voz poética como uma sereia que desafia estigmatizações e normas sociais sobre quem pode ocupar o espaço público. “abrição”, como o título sugere, inicia o livro, servindo como prefácio poético que antecede a introdução. O poema começa autobiográfico, descrevendo a necessidade de Sena clamar por justiça em sua vida desde que era criança, quando testemunhou sua mãe sendo abusada fisicamente e ameaçada por homens que a chamavam de “puta” e “macumbeira” (9). O poema exorta vários grupos marginalizados (negros, trans, mulheres, pobres e periféricos, bem como praticantes de religiões afro-brasileiras) a se fazerem visíveis e serem ouvidos no espaço público, concluindo:
a cada preto gritando seus versos,
a cada periférica se mostrando mara-
vilhosa na rodoviária e onde mais ela
quiser,
a cada beijo viado bem dado em praça
pública,
em parque público
na feira
no supermercado…
e simbora vivendo
que a maré não tá só pra peixe não,
tá pra sereia também.
e ainda tem mais! (10–11)
O triunfante verso final conota a presença de mais sereias: belos seres não padronizados que estão se tornando visíveis em espaços públicos. Esse verso também sugere que o eu lírico tem mais a dizer e a mensagem empoderada do poema de abertura é apenas o começo. Ao analisar esse poema, nascimento interpreta o último verso como o desejo de Sena não só de denunciar a violência hegemônica normalizada, mas também de ser livre para usar sua imaginação: “na obra periférica kika também esboça, em vários poemas, esse movimento segundo [além do frame da denúncia] tão importante pra mim: escrita preta lgbt como direito ao devaneio. libertação do dever de denunciar” (“o cuíerlombo” 15). Através da imagem da sereia, o devaneio toma forma, permitindo à poeta o uso de uma linguagem ambígua, imaginativa e polivalente, ao invés de simplesmente fazer denúncias literais e objetivas.
A mulher negra trans da periferia apresentada como uma sereia convoca associações relacionadas a aparência, poder, desejo, voz e ao inclassificável. A imagem, particularmente quando colocada em Brasília, uma cidade sem rio ou litoral, evoca a sensação desconcertante de ser hipervisível como o Outro marcado no espaço público. Ela também remete à irresistível voz e beleza da iara no folclore brasileiro, uma sereia do rio, que é metade indígena e metade peixe. Como seus homólogos na mitologia grega e nas mitologias de vários continentes, sua voz encantadora atrai vítimas masculinas. O tropo sereia também faz referência a Iemanjá, em homenagem às tradições afro-brasileiras.
A imagem da sereia não padronizada no centro da cidade continua durante toda a coleção, inclusive no poema “excêntrica?”, em que se lê:
é bicha
preta
mulher:
periférica gritando seus versos no
centro
excêntrica?
de jeito nenhum.
supremamente sereia. (Sena 38)
Os poemas de Sena – com as imagens de sereias gritando sua poesia e ocupando espaços públicos proeminentes – combinam o direito dos grupos não hegemônicos de existirem nos espaços públicos da cidade e de fazerem parte da esfera pública figurativa (as vozes que são ouvidas e as opiniões que são valorizadas), bem como o direito à livre expressão criativa.
O poema “excêntrica?” considera a experiência interseccional de ser tratada como uma mulher trans pobre. Todos esses termos podem ser usados pejorativamente para repudiar o eu lírico como excêntrica (e, portanto, indesejável, ou não bem-vinda), mas ela desafia essas classificações inventando um adjetivo (sereia) para se descrever. Retratando-se como “supremamente sereia”, ela, possuindo beleza misteriosa e autoridade, desafia a classificação. O poema brinca com o duplo significado de excêntrico, que também se refere a algo distante do centro ou que se desvia de um sistema concêntrico, sinalizando como as normas sociais hegemônicas tentam mantê-la longe do centro (torná-la excêntrica), mas também como ela resiste através de sua voz pública.
O papel de Periférica como um livro insurgente é intensificado quando se leva em conta a escassez de publicações de autoras negras, trans e periféricas no Brasil. A escritora trans Amara Moira, no prefácio de Periférica, lembra que o primeiro livro de uma brasileira trans foi lançado em 1982 (A queda para o alto, autobiografia de Anderson Herzer), e que nos anos seguintes (1982–2017) só foram publicados cerca de vinte livros de escritores trans brasileiros, quase todos a partir de 2014 (13). Destacando a exiguidade desses autores no mercado editorial, particularmente negros e das classes populares, Moira indica que Sena – ao lado do poeta paulista Preto Téo, da artista multimídia do DF Rosa Luz e da cantora paulista Linn da Quebrada – como “outras tantas vozes trans pretas periféricas surgindo, insurgentes, veio pra dar um basta nessas estatísticas” (13). Ao publicar seu livro, Sena combate a discriminação que se estende nacional e internacionalmente e afirma o direito criativo à sua própria cidade, Brasília.
Zumbi dos ipês (2018), de Marcos Fabrício Lopes da Silva
No poema “Braxília”, dedicado a Nicolas Behr e incluído na coletânea Zumbi dos ipês (2018), Lopes da Silva brinca com nomes de lugares de Brasília para imaginar um Plano Piloto definido pela cultura negra:
exu monumental
exu residencial
asa soul
asa sorte
Ritmado, rimado, lúdico e otimista, o poema empresta o neologismo de Behr, Braxília, e muda suas conotações para refletir sobre a experiência dos moradores negros que vivem lá. Exu, o orixá guardião das cidades e do movimento, assume o papel do eixo central de Brasília, função atribuída ao Eixo Monumental e ao Eixo Residencial, outros nomes para o Eixão. A Asa Norte e a Asa Sul do Plano Piloto, área construída na escala residencial adequada para interações sociais cotidianas, agora induz um senso de sorte com uma trilha sonora de música soul e um encantamento da alma da cidade. Muitas das definições de sorte captam o que não pode ser controlado pelo plano urbano original de Brasília: coincidência, felicidade, infortúnio, qualidade de vida e uma força inexplicável que supostamente controla o futuro. A semelhança sonora entre asa e haja invoca o chamado “haja soul/haja sorte”.
A referência a Zumbi no título do livro e os próprios poemas estão em consonância com a concepção da historiadora Beatriz Nascimento sobre o quilombo: não apenas um grupo de escravos fugitivos, mas um espaço negro autônomo que os afro-brasileiros podem politizar como símbolo de sua capacidade de organização e resistência ao racismo sistêmico (117). Gustavo de Oliveira Bicalho afirma que, ao assumir uma versão brasiliense de Zumbi dos Palmares – o líder símbolo da resistência negra brasileira –, Lopes da Silva coloca-se “na encruzilhada do Plano Piloto, interrompendo o fluxo de uma racionalidade burocrática”. Referindo-se especificamente a “Braxília”, ele afirma que “sob os olhos de Zumbi-Exu, seu traçado [o do Plano Piloto] se reconstrói”, mostrando que “toda cidade pertence – ou deveria pertencer – a quem nela habita”.
No poema “Afroarquitetado”, Lopes da Silva usa o neologismo do título para expressar uma relação recíproca entre identidade racial-cultural e identidade de lugar:
me olho no espelho
cerrado humano
torto dentro do plano
me fiz mais ou menos assim
mais ou menos assado
afroarquitetado
saí do traço de niemeyer
nasci no asfalto
quero o barro
Aludindo aos ramos torcidos característicos das árvores do cerrado,[5] o eu lírico encontra afinidade entre ele e a vegetação. Ambos são “torto dentro do plano”, não se conformando com as linhas rígidas do plano diretor de Brasília. Ao invocar a capacidade tanto da flora quanto dos negros brasilienses de prosperarem apesar das condições hostis da cidade, o poema nega o estereótipo da capital como um espaço branco elitista conhecido principalmente pelos edifícios de Niemeyer. A estudiosa Ana Flávia Magalhães Pinto ressalta que os poemas de Lopes da Silva, mesmo aqueles escritos na primeira pessoa singular, falam por um coletivo “nós-lírico” orgulhoso de uma herança negra compartilhada. Um homem nascido do asfalto de Brasília agora busca seu barro, uma imagem conectada cromaticamente à sua raça e culturalmente à busca de raízes ancestrais. O poema termina com esse cerrado humano querendo criar raízes. O poeta Jorge Amancio afirma que, como o título do livro demonstra, em sua fusão da mais famosa árvore de floração de Brasília e Zumbi dos Palmares, a coleção e o poema “Afroarquitetado” enfatizam o sentido de pertencer tanto a um local geográfico quanto a uma identidade racial-cultural. Amancio afirma que os poemas revelam “uma maneira afrobrasiliense de perceber a cidade com suas mazelas, suas agonias e suas belezas”.
Mais do que apenas uma forma afrobrasiliense de perceber a cidade, o poema propõe uma forma afrobrasiliense de fazer e ser feito pela cidade. Assim, o poema trabalha com a concepção dialética articulada por Lefebvre, Massey e Certeau de que o espaço transforma o indivíduo (“saí do traço de niemeyer”), enquanto o indivíduo transforma o espaço (“torto dentro do plano”). Com os versos “me fiz” e “afroarquitetado”, ele afirma sua agência em forjar um lugar para sua identidade racial-cultural na capital. A imagem de fazer-se “mais ou menos assado” tem um viés racial (remetendo à tonalidade de algo que está sendo assado), mas também invoca uma identidade processual (algo que está sendo continuamente formado). Com versos melódicos e inovadores, o poeta comunica como ele mesmo e todos os brasilienses negros formam e são moldados pelo espaço. Seu poema ecoa “Brasília”, de Sobral, em que uma mulher mistura seu sangue e suor ao barro da capital para aprender a “criar a minha Brasília” (Não vou 22). A poesia de Sobral, Lopes da Silva e Sena inscreve o Outro contra-hegemônico no DF, decretando seu direito criativo à cidade. Brasília foi construída com a premissa do esquecimento histórico e com foco em um futuro tecnicizado (inspirado pela arquitetura europeia), mas os poetas afro-brasileiros do DF insistem que sua existência, sua riqueza cultural e sua história não podem ser apagadas (Holston, The Modernist 83).
Sangue (2018), de Nanda Fer Pimenta
Um dos símbolos dominantes de Brasília, desde a época de sua fundação, foi o carro. Movendo-se velozmente pelas largas vias expressas que cortam a cidade, ele representava liberdade, mobilidade, eficiência e facilidade. Os livros insurgentes desestabilizam esse emblema, já que os moradores de baixa renda do DF, negros e não hegemônicos associam o tráfego da capital não à liberdade, mas à hostilidade. O significado e o valor de um lugar não são intrínsecos, mas criados continuamente (Lefebvre, The Production 142–43; Massey 20–21; Cresswell 9). Ao imaginar símbolos espaciais alternativos em relação ao tráfego de Brasília, os poetas se inscrevem na cidade como produtores de espaço simbólico.
Brasília é uma cidade dispersa na qual longos trajetos no transporte público definem a existência de muitos moradores pobres que não têm carro. Para diversos residentes do DF com identidades subalternas, os deslocamentos não são apenas cansativos devido ao tempo de viagem, mas também por causa de como outros passageiros interagem com eles. Como afirma Gill Valentine, os espaços públicos, apesar de parecerem democráticos, não estão igualmente abertos a todos (145). Grupos minoritários sofrem mais discriminação, vigilância e violência em espaços públicos do que grupos hegemônicos. Segundo Amy Lubitow et al., “ser uma minoria de gênero no transporte público requer um tipo diferente de movimento – uma mobilidade que é informada e moldada pelo cissexismo, bem como outros sistemas interseccionais de opressão, como sexismo, heterossexismo, racismo, ableismo e classismo” (1399). Como Holston afirma, os rotineiros “encontros com outros anônimos no espaço público . . . exige[m] a negociação de poderes, direitos e vulnerabilidades” (Cidadania 38). Os poemas de Pimenta, Souto, nascimento e Bastos revelam como mulheres negras (e em certos casos pessoas LGBTI+, periféricas e de baixa renda) – em regime de cidadania diferenciada – vivenciam regularmente os locais de transporte público como espaços hostis onde precisam lutar por seu direito à cidade.
Tanto os poemas de Pimenta quanto de Souto desmistificam o tratamento hostil recebido pelas mulheres periféricas negras no sistema de transporte público do DF. Um dos exemplos mais poderosos pode ser encontrado no poema número 50 (cada poema é numerado, mas não intitulado), de Pimenta, incluído no livro Sangue (2018) e performado em saraus desde 2015. O poema é ambientado na Rodoviária, o enorme ponto de transporte público no centro de Brasília, que, segundo Lucio Costa, simboliza a união da metrópole (“Plataforma Rodoviária” 311). Em entrevista concedida em 1984 na própria Rodoviária, Costa – refletindo sobre sua intenção de criar ali um espaço mais sofisticado e cosmopolita – comemora que a Rodoviária tenha sido apropriada por passageiros periféricos de baixa renda: “Ali é a casa deles, é o lugar onde se sentem à vontade. . . Brasília está funcionando e vai funcionar cada vez mais” (“Plataforma Rodoviária” 311). No entanto, o poema de Pimenta, escrito três décadas depois, contradiz essa visão otimista. O eu lírico, uma mulher negra e periférica, luta para contar sua história:
Eu tav ta tava
De de de de descendo
Á ÁÁ Á Á Áa aa
Escada da rodoviária
A escada da rodoviária
Quando eu não eu não sei
Eu escuto uma voz uma uma
Voz eu não sei
Eu tava
Eu escuto uma voz
Der repente eu escuto uma voz uma
voz
Eu tava
Virou pra mim
Eu não tava entendo o que tava
acontecendo
Quando olhou pra mim e disse
MACACA
AHAHAHAHAHAHAHA
OU OU OU MACACA
HAHAHAHA
OLHA PRA MIM MACACA
OLHA PRA MIM
ME EMPRESTA UM PEDAÇO DO
SEU CABELO
PRA FAZER BOMBRIL (61)
O poema, tanto no papel quanto nas performances de Pimenta, transmite o defasio imposto pelo trauma à articulação verbal. Em sua performance, Pimenta consegue esse efeito através de modulações de voz, alternando entre sussurros e gritos; sentimentos de medo e pânico tão intensos que ela parece lutar para respirar; e mudanças na voz e na linguagem corporal enquanto ela encarna a alegria diabólica do opressor e seu próprio choque (Pimenta “Eu tava”). Com uma mudança inesperada na conjugação do verbo entender, os versos “Eu não tava entendo o que tava / acontecendo” sugerem que a confusão da mulher sobre o motivo de o estranho estar falando com ela tranforma-se na percepção consicente do insulto. Ela procura palavras para a agressão verbal, e elas saem de esguelha (repetidas, gaguejadas e tranformadas em gritos) ou sequer podem ser encontradas, quando ela repete “eu não sei”.
A aparente inclinação autobiográfica dos poemas de Pimenta, Sena, Bastos e Souto aproxima-os – ainda que no reino da poesia, não da prosa – ao gênero do testemunho e de teorizações sobre a narração de eventos traumáticos. No poema de Pimenta, ela não conhece palavras para descrever sua dor ou dar sentido ao ocorrido, o que se assemelha à tensão do testemunho entre a necessidade de narrar a memória do trauma e a percepção de que a linguagem é insuficiente para isso (Seligmann-Silva 46). Como é comum com as vítimas de trauma, ela mistura tempos passados e presentes, como se estivesse revivendo o evento traumático (LaCapra 21). Fabricio Flores Fernandes afirma que a violência pode afetar a capacidade de fala da vítima, “impossibilitando a articulação de um discurso coerente sobre a própria experiência vivida”, como expressa Pimenta em linguagem disruptiva. Jaime Ginzburg concebe que, em relação à dor e ao sofrimento, o narrador tradicional cartesiano (racional, desencarnado, neutro, onisciente e distante) não pode ser sustentado (33–35). O poema de Pimenta estende esse argumento à seara da poesia. Enquanto ela viaja para as entranhas da Rodoviária, é como se ela estivesse entrando em seu próprio círculo do inferno. No entanto, o acontecimento, que se dá no meio da cidade, não é excepcional. Embora Pimenta esteja aparentemente referindo-se a um evento em sua vida, também fala por um “nós” coletivo – mulheres negras –, como fica claro no poema seguinte da coletânea, o número 51[6]:
Estar aqui de pé neste exato momento
É minha afirmação
[. . .]
Sou uma mulher NEGRA
Nunca estou tranquila (63)
Esses poemas transmitem o peso emocional do trauma que as mulheres negras às vezes sofrem enquanto tentam se deslocar pelos espaços públicos urbanos.
escura.noite (2018), de Katiana Souto
Dois poemas narrativos de escura.noite, de Souto, expressam a dor da discriminação vivida por mulheres negras nos ônibus do DF. Souto refere-se ao seu estilo poético como sendo “mais parecido com conto na oralidade”, e, de fato, seu poema “ela é gorda e eu odeio crente” tem a narratividade da prosa (cit. em N. Maciel, “A força” 1). Uma mulher de Riacho Fundo é obesa e tem problemas para passar pela catraca, o que provoca risos entre os outros passageiros. O poema termina com uma devastadora mistura do auto-ódio da mulher e seu confinamento espacial: “e ela me disse que se acha tão gorda e tão feia e tão preta / que não consegue mais sair do bairro dela” (23). As repetições e a simplicidade da linguagem evitam qualquer florescimento estilístico que possa ofuscar a dor expressa nos versos. No poema “agora você quer pegar meu busão”, as pessoas no ônibus são conhecidas do eu lírico, o que reforça a familiaridade da rotina, que é sacudida por um passageiro recém-chegado. O contexto é a greve dos caminhoneiros, que ocorreu do final de maio até o início de junho de 2018. Durante a paralisação, o aumento do preço da gasolina, a escassez de combustível e as filas extremamente longas para abastecer dificultaram o deslocamento de automóveis. Assim, muitos proprietários de carros em Brasília utilisaram o ônibus e o metrô durante esse período, mudando a demografia dos usuários do transporte público:
pego o busão lotado não consigo nem sentar muitas vezes nem
entrar tenho que esperar o próximo
vejo uma cara nova quem é você?
“aí eu fui abastecer e a fila tava enorme tive que pegar esse ônibus
cheio de pobre
e gente com cecê”
gente com cecê é o caralho
gente com cecê é gente que trabalha
que não tem tempo de tomar banho e depois tem que ir pra aula (25)
O poema narrativo aborda um conflito de classe no qual um proprietário de carro sente-se superior aos outros passageiros do ônibus por conta de sua riqueza e da falta de odor corporal. Após esse insulto, o eu lírico passa imediatamente a um desabafo furioso sobre a dignidade das pessoas de baixa renda que pegam ônibus, trabalham e estudam simultaneamente, ficando sem tempo livre. O eu poético ressignifica o odor corporal, apresentado-o não como fonte de vergonha, mas como indicativo de trabalho árduo. Tal como o de Pimenta, esse poema esteticiza instâncias de opressão no espaço público como um passo para repará-las.
lundu, (2016) e mil994 (2018), de tatiana nascimento
Enquanto as ocorrências de hostilidade no transporte público acima mencionadas envolvem assédio verbal, os poemas de nascimento abordam a hostilidade do layout urbano do DF, que obriga pessoas periféricas a gastarem parte significativa de seu dia em transporte público precarizado. No poema “transe(to)”, da coleção mil994, nascimento transforma a palavra do título para fazer transe surgir em trânsito, reconhecendo a perturbação causada pelos longos trajetos. A afinidade sonora entre as palavras paisagem e passagem evidencia a imagem de alguém que, por passar tanto tempo no transporte público, se integrou à paisagem da cidade:
morar
na paisagem
é coisa de quem
come relento y vive
de
passagem (34)
Embora em poemas pastoris do século XIX o relento simbolize a novidade e a pureza, nos versos de nascimento a imagem do orvalho como comida evoca a escassez e ressalta a integração deshumanizadora de uma pessoa na paisagem. No entanto, ao contrário dos poemas anteriores de denúncia inequívoca, os de nascimento tendem a ser mais abertos e menos sintéticos, já que o jogo de palavras e a sutileza permitem múltiplos significados. O poema também pode dizer respeito à vida na estrada, itinerante, desvinculada de um local particular.
Apesar de também ambíguo, o poema “manhã”, de nascimento, da coleção lundu,
está localizado explicitamente no DF. Uma mulher passeia com seus cães entre os postes de luz, em uma parte da cidade suja e coberta de mato. A sensação da cidade inóspita contrasta com as imagens repetidas de Oyá (ou Iansã), a orixá do vento que, devido à sua relação sexual com Oxum, permite a possibilidade de pensar a dissidência sexual da diáspora através de uma ancestralidade cultural africana comum (nascimento, “o cuíerlombo” 9). No poema, essa figura também está associada a movimento, natureza, nutrição, emoções tempestuosas e liberdade. Um abraço dela vale mais, o poema expressa, do que milhares de bilhetes de ônibus para qualquer
ponto fudido rasgado roto torto dessa cidade quebrada
com ou sem integração do sistema de imobilização
urbana (61)
Tanto a profusão de adjetivos negativos quanto o jogo de palavras minam a imagem do DF como cidade de carros, trânsito lógico e acesso eficiente entre os pontos. O termo “integração” alude à integração das linhas de ônibus e metrô e à integração tarifária oferecida pelo Transporte Urbano do Distrito Federal, que permite aos passageiros traslados entre ônibus e linhas de metrô a uma tarifa reduzida de, no máximo, cinco reais. Mas no poema, as rotas integradas são ressignificadas como um sistema de imobilização. O poema brinca com os múltiplos significados do termo ponto: o ponto de ônibus, um local, o fim e uma canção entoada em macumbas e candomblés, expressando a relação da mulher com a cidade:
ponto de estrangulamento….
ponto de enamoramento….
ponto de entorpecimento….
ponto fudido (60-61)
Este ponto se torna um local de violência, desejo físico, espera e fracasso. As repetições e as emoções desenfreadas do poema parecem um delírio causado pelas falhas da cidade. Um dos problemas da cidade mais acentuados no poema é a segregação espacial de residentes pobres e não brancos para as periferias distantes no DF e a marginalização de moradores sexualmente dissidentes, o que obstrui sua mobilidade espacial e social.
Um verso e Mei (2017), de Meimei Bastos
Como em muitos poemas dessas coleções, o tema de longos trajetos se repete nos poemas de Bastos, como “Quebrad I”, “Airam” e “Quintal”, de Um verso e Mei (2017). A imagem de “várias distâncias / em horas de baú” nesse último aborda tanto a distância geográfica quanto social entre a periferia e o centro (Bastos, Um verso 20). Porém, ao contrário dos outros poetas analisados neste capítulo, Bastos transforma a hostilidade sentida pelos cidadãos periféricos nos transportes públicos em potencial solidariedade. “Quebrada” apresenta a Rodoviária como local familiar onde ela encontra conhecidos da periferia e contempla a possibilidade de uma revolução proletária. No mesmo poema, ela alude a um homem mais velho em particular que gentilmente sempre a ajuda a carregar a mochila, imagem que ressignifica o ônibus também como um local de bondade e solidariedade entre os moradores periféricos.
No poema “Uniquebra”, o neologismo do título combina o prefixo que significa “um” e quebra, referindo-se também à palavra quebrada. O título evoca a união dos moradores da quebrada e a necessidade de reunir pessoas que foram separadas umas das outras. O poema é escrito na forma do Plano Piloto, com uma linha curvando-se em ambas as extremidades como as asas do Eixão. O eu lírico invoca a quebrada como sua musa, pedindo-lhe para unir as pessoas periféricas do DF, uma vez que, mesmo que morem distantes, elas viajam diariamente para o mesmo destino.[7] Destino tem o duplo significado tanto de “direção para onde se vai” (para o Plano Piloto) quanto de “sorte ou sina” dos moradores periféricos de baixa renda que, ao se unirem, podem influenciar seu futuro coletivo.
Os poemas desses livros desmistificam as formas pelas quais os transportes públicos são espaços hostis para as minorias do DF. Lubitow et al., discutindo sobre o transporte público, afirmam que “o acesso diferenciado ao poder e aos recursos pode gerar diferentes potenciais de movimento e mobilidade, em que grupos marginalizados podem experimentar formas de ‘imobilidade’ (Hannam, Sheller e Urry 2006; Kaufmann 2002)” (1399). Esses poemas expressam tal argumento com emoção, refletindo tanto sobre a imobilidade e a sensação de não ser bem-vindo em ônibus e metrôs quanto sobre o desconforto de passar horas preso ali. Cada poeta considera como as identidades interseccionais influenciam a mobilidade no transporte público de Brasília.
Corpos não hegemônicos como territórios contestados
Com práticas de publicação alternativas, esses poetas contornam os principais editores (os tradicionais guardiões hegemônicos do mérito artístico) para combater a discriminação que grupos minoritários enfrentam na esfera literária. Em suas obras, esses artistas confrontam o preconceito no ambiente público, particularmente em meios de transporte, abordando criativamente questões de ocupação do espaço físico e simbólico. Para concluir, quero discutir uma implicação espacial remanescente desses poemas: a concepção do corpo não hegemônico como um lugar, uma imagem recorrente na obra de todos esses poetas.
Para grupos minoritários marcados como o Outro, o corpo – vulnerável à discriminação – torna-se “um microcosmo afetivo para todas as outras espacialidades” (Soja 112). A teórica feminista chicana Cherríe Moraga, baseando-se nas formas pelas quais os colonizadores europeus exploraram e expropriaram tanto as terras quanto os corpos dos colonizados, argumenta que “os corpos das mulheres e os de homens e mulheres que transgridem seus papéis de gênero foram historicamente considerados territórios a serem conquistados” (150). Para Moraga, “a terra continua sendo o terreno comum para todas as ações radicais . . . Para mulheres, lésbicas e homens gays, terra é aquela massa física chamada nossos corpos” (173). Em poemas de muitos desses autores, lugar e corpo se fundem como um meio de expressar sofrimento. Souto escreve em seu poema “desabafo sem nome”: “não tenho território meu território é meu próprio corpo e não o seu” (34). O poema aborda a confusão colonial entre a mulher e a terra: ambas estão sujeitas à dominação por grupos poderosos. Souto também conjura a imagem de cidadania diferenciada em que as classes dominantes negam o acesso à propriedade da terra (e a outros privilégios) às classes populares para assegurar sua dominação. Além disso, o verso expressa como – da mesma forma que os europeus coloniais julgavam, nomeavam e controlavam espaços geográficos – grupos hegemônicos continuam a julgar, nomear e controlar corpos não hegemônicos. Em “plumas"”, de mil994, nascimento escreve:
(o desconforto é um lugar,
também,: ex-
passo) (40)
Ao reformular a palavra espaço como o termo homofônico ex-passo, o poema – usando ex para conotar a exclusão – captura as maneiras pelas quais uma pessoa pode se sentir excluída (incapaz de andar ou existir) em determinados lugares.
A imagem provocativa do desconforto como um lugar ilustra como o corpo subalterno pode ser julgado, objetificado e “colocado em seu lugar”. Para Bourdieu, quando outras pessoas reagem ao corpo de alguém com ódio porque ele se desvia de um ideal padronizado, a pessoa que está sendo observada tem uma maior “probabilidade de experimentar o corpo com mal-estar, constrangimento, timidez” (Distinction 204). Os livros insurgentes aqui abordados buscam reverter essas experiências de mal-estar exaltando a beleza dos grupos negros e não hegemônicos e seu direito de ocupar a cidade, omitir opiniões e se tornar visíveis em espaços dos quais têm sido historicamente excluídos. Esses lugares incluem tanto os espaços públicos do DF quanto, simbolicamente, Brasília e a esfera literária do país. Publicar seus próprios livros é um passo significativo para afirmar o direito criativo desses poetas à cidade.
Notas
[1] Sobral (como Bastos) publica com Malê, desde 2016, e escreveu a sinopse do livro de Bastos. Sobral e o poeta afro-brasileiro Jorge Amancio (que escreveu uma posfácio para Zumbi dos ipês, de Lopes da Silva), pertencem a gerações anteriores a dos escritores considerados neste capítulo.
[2] Ao analisar um poema da poeta lésbica negra Laila Oliveira, nascimento defende a poesia que insiste em ser imaginativa (não apenas orientada à justiça social) e reflete sobre a imagem da poeira: “poesia preta lgbtq num tem que ser só sobre pow pow pow / tiros / bomba y porrada. pode ser sobre pó – de estrelas, pra fazer nosso futuro. poeira – vermelha, aqui do cerrado sideral” (“o cuíerlombo” 20).
[3] Cissexismo refere-se a sexismo contra aqueles que não se identificam com o gênero atribuído a eles ao nascer.
[4] Para mais informações sobre a performance de Sena, ver Capítulo 6.
[5] Exemplos de árvores do cerrado que têm ramos torcidos (famosamente elogiado no poema de Behr “Nem tudo”) são: tabebuia ochracea (ipê-amarelo-do-cerrado), annona coricea (araticum), caryocar brasiliense (pequi), eugenia disenterica (cagaita), qualea grandiflora (pau-terra) e vochysia tucanorum (pau-doce). O título do livro de Lopes da Silva refere-se à primeira dessas árvores.
[6] A edição de julho de 2017 de Traços inclui este poema e outros sete do livro Sangue, de Pimenta. Outros autores analisados neste capítulo tiveram seus poemas publicados na revista, como nascimento, na edição de fevereiro de 2017, Bastos, na edição de dezembro de 2017, e Lopes da Silva, na edição de fevereiro de 2018. Um artigo sobre a padê editorial na edição de junho/julho de 2018 (escrito por Maíra Valério e Alexandra Kalogeras e com fotografias de Thaís Mallon) inclui fotografias de nascimento, Souto e Sena.
[7] Para uma interpretação do poema “Eixo”, de Bastos, e sua performance como um apelo à solidariedade periférica, ver Capítulo 6.