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A arte de Brasília: 2000-2019: Epílogo

A arte de Brasília: 2000-2019

Epílogo

Epílogo

Em entrevista concedida para a edição de abril de 2018 da revista cultural Traços, Nicolas Behr conta a seguinte história: “Uma vez um fotógrafo jovem foi fotografar a minha casa. E eu moro no Lago Norte. Quando ele voltou pra redação, perguntaram: ‘E aí, fotografou aquele poeta marginal’? E ele: ‘Que marginal que nada! O cara é o maior burguês’!?” (“Nicolas Behr” 19). Para que a piada funcione, Behr revela onde mora, no Lago Norte, assumindo que o leitor está familiarizado com essa elegante região administrativa. Em outras palavras, a compreensão da piada exige conhecimento dos códigos espaciais e sociais de Brasília. A piada surge da interpretação do termo poeta marginal não como membro do movimento literário dos anos 1970, mas como um poeta de baixa renda. Além disso, na brincadeira, todas as interpretações da palavra marginal – empobrecido, geograficamente isolado e contracultural – se opõem ao que se associaria ao Lago Norte. No livro A casa e a rua (1984), Roberto DaMatta argumenta que quando os brasileiros indicam a direção da casa de uma pessoa em cidades do interior, eles divulgam indiretamente o status dessa pessoa, usando termos como embaixo ou em cima para indicar posição social, mais do que elevação geográfica (26). Dar instruções, para DaMatta, não é um ato imparcial, mas subjetivo, algo como contar uma breve história sobre a pessoa. O uso de um endereço residencial como referência que não é neutra ou objetiva está presente no cenário cultural contemporâneo de Brasília. Artistas de áreas ricas do DF relutam em afirmar onde moram ou, como Behr, o fazem de maneiras bem-humoradas e autodepreciativas. Em contraste, artistas de baixa renda e da periferia fazem questão de explicitar seu endereço. O grupo de rap Viela 17 inspirou seu nome na rua onde mora Japão (o vocalista) na Expansão do Setor O, na região administrativa de Ceilândia. O documentário Rap: o canto da Ceilândia (2005), de Adirley Queirós, inclui cenas com Japão e Marquim do Tropa (rapper e um dos atores principais de Branco sai, preto fica) afirmando, respectivamente: “Sou ceilandense. Não sou brasiliense” e “Não moro em Brasília. Moro na Ceilândia”. Os rappers negam qualquer tipo de afinidade com o rico centro político. Essas breves descrições de onde eles vivem são carregadas de emoções, que vão do ressentimento ao orgulho. Tais exemplos revelam que o senso de pertencimento está sempre em jogo em qualquer discussão sobre a arte contemporânea da capital. Artistas não fazem arte no vazio, mas em um endereço particular. Este livro argumentou que artistas contemporâneos veem o DF como uma vibrante cidade das artes, mas enquanto alguns deles, como Behr, vislumbram a cidade como um todo, outros, como o Viela 17, focam mais em uma seção sub-representada específica da capital. Grande parte da arte brasiliense do século XXI conta uma história sobre como alguém define sua comunidade. Conforme mencionado no Capítulo 5, Avani Maria Pereira, moradora transferida para o conglomerado habitacional de Ceilândia em 1971, reclamou que “ninguém conhecia ninguém. Ninguém sabia os procedimentos das outras pessoas. Cada um vinha de um lugar diferente. A gente não convivia” (Beú 70–71; cit. em Beú 73). Embora Ceilândia, quando criada, constituísse um caso extremo de deslocamento, as palavras de Pereira também servem, de forma mais geral, à experiência de mudança para a nova capital nos anos seguintes à sua fundação. Mesmo assim, décadas depois, no DF é difícil que vizinhos se sintam conectados uns aos outros e investidos em sua comunidade. Nesse sentido, os eventos culturais públicos fornecem uma solução, e a arte que aborda a comunidade local oferece oportunidades para o desenvolvimento da voz artística.

Todos os textos culturais analisados neste livro abordam sentimentos de pertencimento ou deslocamento de uma comunidade local. Cidade Livre, de João Almino, lida com a injustiça vivenciada pelos candangos, que construíram Brasília e depois não tiveram condições financeiras para morar no centro da capital. Grande parte do trabalho de Behr – incluindo BrasíliA-Z: cidade-palavra – busca criar uma comunidade acolhedora no DF para os não burocratas e demonstrar como a arte na capital tem unido as pessoas. Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós, examina a solidariedade entre os moradores periféricos, negros e deficientes do DF, mostrando como a música forma vínculos comunitários em Ceilândia e para além. O poema “Eixo”, de Meimei Bastos, insiste nas semelhanças entre os moradores periféricos e desprivilegiados do DF, entendendo todos como membros de uma comunidade imaginada. Marcos Fabrício Lopes da Silva, Kika Sena, Nanda Fer Pimenta, Katiana Souto, Meimei Bastos e tatiana nascimento escrevem poesias nas quais grupos negros e marginalizados se afirmam como comunidades vibrantes e com voz dentro do DF. Por meio da revista cultural Traços, as pessoas em situação de rua em Brasília se tornam visíveis e desafiam concepções negativas ligadas à falta de moradia. Grande parte da arte abordada em Traços ocorre em áreas públicas, incentivando os moradores a conhecer seus vizinhos e a utilizar espaços públicos. Em cada caso, os artistas contam histórias – muitas vezes pessoais – sobre a experiência de viver no DF. Essas narrativas desafiam entendimentos elitistas de quem deve representar a cidade e quais aspectos de Brasília precisam ser evidenciados, além de refutarem a ideia de que a capital é um deserto cultural. Os artistas afirmam seu direito criativo à cidade transformando lugares públicos em locais de comunhão criativa e representando sua cidade publicamente.

Para muitos artistas estudados neste livro, o sucesso possibilitou deslocamentos internacionais. Por exemplo, quando eu estava buscando autorização para reproduzir fotografias e citações neste livro, Meimei Bastos me mandou um e-mail de Cuba e Fabiana Balduína – da equipe de break Brasil Style Bgirls –, dos Estados Unidos. No entanto, frequentemente esses artistas cosmopolitas voltam-se a temas muito locais. Ao lidar com a arte contemporânea de Brasília, muitas vezes me senti como se estivesse recebendo direções para as casas dos artistas, geralmente não em sentido tão literal quanto o nome Viela 17, mas no sentido de DaMatta, de que falar onde se vive inevitavelmente revela valores e status (26). Porém, a arte mais interessante sobre o DF não é aquela que fornece direções à própria casa, mas a que apresenta a capital de maneiras simultaneamente realistas e fantasiosas. Como provocação, sugiro que a arte brasiliense contemporânea mais fascinante é aquela que dá direções a lugares imaginários, os quais simultaneamente estão e não estão enraizados na realidade da capital. É nessa interação entre o reconhecível e o inventado que os artistas contemporâneos do DF fazem com que as pessoas parem para perceber e interpretar a capital brasileira de formas renovadas.

Este ramo da arte contemporânea está se desenvolvendo sob o pano de fundo de eventos políticos tão orwellianos que frequentemente parecem pertencer ao reino da ficção. Em 2014, a Polícia Federal descobriu uma lavagem de dinheiro feita em um posto de gasolina e lava-jato em Brasília, o que lhes deu pistas sobre um enorme esquema de corrupção na Petrobrás, catalisando a ampla investigação federal conhecida como Operação Lava Jato. Inicialmente, a Lava Jato prometeu anunciar um novo capítulo para o Brasil, de menos corrupção e mais confiança no poder público. No entanto, a Operação Lava Jato gerou acusações partidárias e colaborações ilícitas entre procuradores e o então juiz federal, Sérgio Moro, que revelaram a imparcialidade do sistema judiciário, como pôde ser percebido no caso da prisão do ex-presidente Lula (de abril de 2018 a novembro de 2019), o primeiro presidente da classe trabalhadora do Brasil, conhecido por tirar milhões de brasileiros da pobreza. Em agosto de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral proibiu Lula de concorrer à presidência naquele ano, facilitando, assim, o sucesso de um candidato de direita e a ascensão política do próprio Moro. Essa série de eventos começa a explicar a famosa afirmação satírica de Behr, publicada em camisetas e cartazes: “Sou de Brasília, mas juro que sou inocente” (BrasíliA-Z 32).

Recentes rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais têm recebido atenção internacional, impulsionando novos ramos da arte distópica e da arte de protesto. O rompimento da barragem de Mariana em 2015 está entre os desastres ambientais mais devastadores do Brasil até o momento. Ele contaminou o Rio Doce e aparentemente poderia ter sido impedido se a mineradora Samarco (de propriedade da BHP Billiton e da Vale) tivesse seguido os protocolos de segurança. Mais uma vez, o rompimento da barragem de Brumadinho em 2019, também de propriedade da Vale, matou pelo menos 248 pessoas e expôs a falta de melhorias feitas nas barragens de mineração desde o desastre de Mariana (Canofre).

Para dar alguns exemplos finais do contexto em que a nova arte está se desenvolvendo, o ano de 2016 foi marcado pelo impeachment de Dilma Rousseff, a primeira mulher presidente do Brasil. É possível que sua deposição tenha sido impulsionada mais por motivações partidárias e machistas do que por violações legais comprovadas. Seu sucessor, Michel Temer, foi preso em 2019 pelo envolvimento com lavagem de dinheiro e propinas, tornando-se o segundo ex-presidente brasileiro preso no âmbito da Operação Lava Jato (Kaiser). Em 2018, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco – uma mulher negra lésbica militante contra violência policial e a favor de causas progressistas – foi executada ao lado de seu motorista, Anderson Silva, por ex-policiais militares. O ato hediondo e a falta de informações sobre quem contratou os assassinos provocaram alvoroço internacional. Na verdade, Franco foi uma entre os trinta e sete vereadores do Brasil executados em um período de dois anos (Louro). Em meio a uma onda global de populismo, Bolsonaro inspirou sua campanha eleitoral na de Donald Trump e sua presidência, iniciada em 2019, mudou o rumo do país para o populismo anti-establishment e conservador, simbolizado por seu hábito de posar com as mãos imitando armas de fogo. A ascensão de Bolsonaro pode ser atribuída em grande parte ao medo que a população tem da violência, ao descontentamento com a economia, à intolerância com a corrupção, ao desejo de fortalecer os valores sociais conservadores e a um sentimento mais vago de que qualquer novo rumo político seria melhor do que o vigente naquele momento (Spektor). Sua presidência tem promovido retrocessos a importantes causas sociais (como ambientalismo, igualdade racial, ativismo LGBTI+, feminismo, direitos indígenas, regulamentos de armas e liberdade de expressão) historicamente defendidas pelos artistas aqui analisados.

De forma indireta e inventiva, as ansiedades em torno desses eventos estão presentes em toda a produção cultural contemporânea do DF, que opta por uma abordagem hiper-local para tratar de questões relevantes no cenário nacional e internacional. Como os artistas de Brasília contam histórias sobre si mesmos e sua cidade, estão divulgando valores e opiniões relevantes para além da capital, em escala nacional e internacional. Este livro abordou textos de uma série de gêneros, que atraem diferentes consumidores culturais e ressaltam a importância do acesso democrático ao espaço público e à arte na capital. Como foi o caso durante os anos linha dura da ditadura militar brasileira, a arte progressista atualmente está florescendo apesar da guinada à direita da política oficial. O descontentamento e a raiva sobre o estado político atual servem de inspiração para a cultura. Artistas marginalizados sentem uma urgência crescente para expressar seu direito criativo à cidade quando esse direito parece ameaçado.

Embora a capital política tenha sido manchete frequente na mídia internacional nos últimos tempos, a arte contemporânea do DF permanece nas sombras. Este livro se esforçou para trazer essa arte aos holofotes e mostrar como os artistas têm se envolvido ativamente na formação da imagem de sua cidade. Perto do centro de qualquer mapa do Brasil, encontra-se Brasília, a capital planejada, geralmente marcada com uma estrela. Mas essa representação pouco expressa como é a vida dos moradores no DF. Na verdade, são as histórias, em suas inúmeras formas, que fazem um lugar significativo para as pessoas. Doreen Massey argumenta que “chegar em um novo lugar significa juntar-se com, de alguma forma, ligar-se à coleção de histórias entrelaçadas das quais esse lugar é feito” (119). Cada texto cultural do DF, seja um filme ou uma escultura, está contando outra história sobre a capital. Os artistas contemporâneos de Brasília estão tornando os diversos cantos da cidade visceralmente mais conhecidos, narrando histórias a partir de uma perspectiva específica e desenvolvendo uma voz própria.

Entretanto, uma fala de Behr captura sucintamente o maior desafio ainda hoje enfrentado por Brasília: na capital, “não há muros, há distâncias” (BrasíliA-Z 138). Os quilômetros de estrada que separam uma parte da cidade de outra isolam os cidadãos, exacerbando as divisões sociais e dificultando as conexões humanas. É fácil ficar desanimado com a dispersão da cidade e com o isolamento. Mas os artistas de Brasília não esmorecem: eles lembram os moradores da importância da interação, do compartilhamento de suas histórias e da imaginação criativa sobre a capital que querem habitar. Os artistas contemporâneos do DF insistem na necessidade de produzir arte, de gerar catarse, de fomentar sonhos e, enfim, de transformar a cidade.

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