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A arte de Brasília: 2000-2019: 2. Um panorama histórico da arte de Brasília

A arte de Brasília: 2000-2019

2. Um panorama histórico da arte de Brasília

CAPÍTULO 2

Um panorama histórico da arte de Brasília

Uma visão geral da história cultural de Brasília ajuda a contextualizar as origens do vibrante cenário artístico contemporâneo do DF. Internacionalmente, Brasília é conhecida pela arquitetura de Oscar Niemeyer, mas essa fama oculta o fato de que a capital foi concebida, no final dos anos 1950, como uma obra de arte coletiva (Pedrosa 353, 359). O governo da época selecionou cuidadosamente escultores, pintores, arquitetos e designers para, através da arte abstrata, transmitir o vanguardismo da nação e, através da arte figurativa, retratar a façanha da edificação de uma nova capital (Madeira, Itinerância 39-42). A partir de então, os projetos culturais colaborativos tornaram-se a marca registrada do DF (Paniago 54; Alexandre 154). Brasília também ficou famosa pelas bandas de rock dos anos 1980 e 1990 (principalmente a Legião Urbana), que, apesar de celebradas em todo o país, não tiveram reconhecimento internacional. Desde a explosão do rock brasiliense, a música tem sido a arte contemporânea mais prestigiada da cidade, e alguns músicos (GOG, Hamilton de Holanda, RAPadura Xique-Chico e Ellen Oléria) e bandas (Natiruts e Móveis Coloniais de Acaju) atuais já têm consolidadas carreiras de sucesso. Como mostra este panorama histórico, apesar de não ser aclamada fora de Brasília, grande parte da arte do DF tornou-se imprescindível para a construção das imagens que os moradores têm da capital. Portanto, olhar para além das obras arquitetônicas de Niemeyer e do cenário do rock brasiliense é necessário para compreender melhor como a arte e as colaborações artísticas têm influenciado no processo de construção dessas imagens.

1789-1960

Muito antes de existir na realidade, Brasília pairava sobre a nação como símbolo de coesão nacional e de sonhos utópicos. Historicamente, a ideia de Brasília remonta ao século XVIII, época em que Salvador ainda era a capital do Brasil colônia. Em 1789, os rebeldes da Inconfidência Mineira demandaram a transferência da capital para o centro geográfico do país. Essa ideia ressurgiu em 1822, quando o Brasil (com a sede política já no Rio de Janeiro) declarou sua independência de Portugal. Naquele ano, o estadista José Bonifácio propôs que uma nova capital do Império fosse fundada no meio do país e que fosse batizada com a forma latina de seu nome: Brasília. O padre italiano Dom Bosco sonhou, em 1883, com um lugar de grandes riquezas e prosperidade perto de um lago entre os paralelos 15 e 20 do Hemisfério Sul. Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa colocou um obelisco no centro do Brasil (a 24 quilômetros de onde Brasília seria construída), para comemorar a futura capital. Nas décadas de 1940 e 1950, problemas logísticos (como falta de gás, de água e dificuldades de tráfego e de linha telefônica) no Rio de Janeiro, bem como a pressão contínua para a criação de coesão nacional, reacenderam as discussões sobre uma nova capital (Evenson 9).

O presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), selecionando Niemeyer como arquiteto, aceitou o desafio. Em 1956, primeiro ano de seu mandato, JK realizou um concurso público de planejamento urbano para a nova capital. O projeto que melhor concebeu Brasília como símbolo de esperança venceu. Dos 26 concorrentes, o design simples de Lucio Costa, inspirado na forma de um pássaro, prevaleceu sobre propostas que, embora mais elaboradas, não exprimiam a grandeza nacional de modo contundente (Holston, The Modernist 60-74). Acompanhado de uma descrição extremamente breve, Costa apresentou 16 pequenos desenhos feitos à mão. Eles mostravam duas rodovias principais que formavam uma cruz, em referência à construída pelos exploradores portugueses em 1500, que inspirou o primeiro nome da colônia: Terra de Vera Cruz (el-Dahdah, “A superquadra” 274). No cruzamento das rodovias, Costa imaginou um imenso terminal de ônibus, a Rodoviária, para que o centro da capital pudesse ser um local de interação, conectividade e movimento. Como essas histórias lendárias ajudam a explicar, mesmo antes do início de sua construção, Brasília povoava o imaginário social como um centro político místico, um capricho modernista e uma cidade utópica.

A decisão de mudar a capital do Rio de Janeiro para o interior foi motivada, em grande parte, pela crença de que uma transformação espacial radical catalisaria uma profunda transformação social. Imaginava-se que uma capital no centro do país integraria o Brasil a partir de seu núcleo e aumentaria a conectividade entre regiões díspares, criando assim um senso coeso de nacionalidade. O local escolhido para a empreitada era tão isolado que, inicialmente, os materiais de construção tiveram que ser transportados de avião (Gouvêa 346). As obras começaram em ritmo frenético em fevereiro de 1957 e continuaram até a inauguração de Brasília, em abril de 1960: a nova capital foi construída em menos de 40 meses. Esse processo foi registrado pelas belíssimas fotos arquitetônicas tiradas por Marcel Gautherot entre 1958 e 1960. No final dos anos 1950, músicas brasileiras dos mais diversos gêneros também falavam sobre a esperança, a ansiedade e o patriotismo despertados pela criação da capital, como mostra a canção “Pagode em Brasília”[1] (1959), de Tião Carreiro e Pardinho.

O final da década de 1950 não foi o primeiro momento, na história do Brasil, em que autoridades tentaram influenciar atitudes e comportamentos sociais em larga escala por meio de transformações espaciais. No final do século XIX, deixou-se de ver a arquitetura essencialmente como objeto estético ou pragmático e passou-se a entendê-la como ferramenta social que poderia alterar condutas humanas. A eugenia e a obsoleta teoria da herança de Jean-Baptiste Lamarck (segundo a qual mudanças no meio ambiente levam organismos a serem capazes de passar características adquiridas em sua vida para seus descendentes) inspiraram o planejamento urbano brasileiro no início do século XX. Funcionários e planejadores acreditavam que, ao criar o ambiente adequado, eles poderiam aprimorar a sociedade: combater doenças, melhorar a moral, disciplinar cidadãos e ordenar construções de maneiras mais lógicas (Underwood 149). No entanto, de acordo com essa visão, uma sociedade “melhor” correspondia a uma sociedade mais branca, mais europeia e mais segregada (Leu 179-182). No Rio de Janeiro, o bota-abaixo do prefeito Pereira Passos (reformas urbanas ocorridas entre 1903 e 1906) e a Exposição do Centenário de 1922 exemplificam esse desejo. Por exemplo, a largura extrema da Avenida Central (parte das reformas de Passos), inspirada pela restauração de Paris por Haussmann, foi projetada para impedir que revoltas populares a bloqueassem. Além disso, os trajes considerados apropriados (sapatos e jaquetas) para quem passeava pela Avenida Central visavam garantir que aquele fosse um espaço exclusivamente elitista e branco (A. L. Fischer 49). O ambiente construído servia, assim, como uma extensão do poder do Estado e como um símbolo da cidade “civilizada”. O exemplo mais trágico de ambiente construído para controlar comportamentos sociais no Brasil foi resultado da intervenção de um estrangeiro, o empresário Henry Ford. A Fordlândia, uma cidade de vida curta (1928-1934) pré-fabricada no Pará, foi projetada para abrigar uma comunidade abstêmia e medicalizada na floresta tropical, que cultivaria borracha para a indústria automobilística dos Estados Unidos.[2] Quando se fala em Brasília, tende-se a enfatizar o que ela tem de novo, porém a capital faz parte de uma tradição que existe há muito tempo no país: a de uso do planejamento abrangente para influenciar condutas sociais. Esses planejamentos urbanísticos não apenas construíram edifícios e estradas, mas também instituíram um ideal de comportamento social.

Brasília era, ao mesmo tempo, nova e previsível. A capital nacional se tornou uma dentre as várias cidades planejadas que existiam no Brasil (como Aracaju e Belo Horizonte). O termo novo estava em voga na época da construção de Brasília, como sugerem os nomes bossa nova e cinema novo, surgidos simultaneamente em 1960, e Novacap (a companhia federal que construiu a capital).[3] Embora Brasília parecesse nova, uma cidade semelhante estava sendo erguida do outro lado do mundo. Ainda em obras quando Brasília foi inaugurada, Chandigarh, capital dos estados indianos de Punjab e Haryana, foi projetada por Le Corbusier e compartilhava muitos dos ideais utópicos e da estética modernista da cidade brasileira. Ambas as capitais pretendiam chocar os espectadores e, dessa forma, fazê-los vivenciar o ambiente de modo mais intenso (Holston, The Modernist 6).[4] 

Antes da década de 1920, a maioria das cidades ocidentais era projetada com mais materiais sólidos (como edifícios) do que com espaços vazios (como ruas e áreas gramadas). Elas eram construídas para uma densidade populacional relativamente alta, e prédios próximos uns dos outros criavam uma espécie de “muro” nos dois lados das ruas que conduziam a espaços públicos articulados, como praças, os quais ostentavam imponentes edificações religiosas e estatais. (Holston, The Modernist 119-126). A partir da década de 1920, Le Corbusier e o CIAM contestaram esse modelo, buscando formas de tornar as cidades mais acessíveis e de permitir mais luz, movimento e vegetação. Inspirado pelo eugenista Alexis Carrel, Le Corbusier fez, no Rio de Janeiro em 1936, uma afirmação que se tornou um princípio do Modernismo: “mude o ambiente, mude o homem” (cit. em López-Durán e Moore 167). Brasília seguiu esse preceito, adotando os Cinco Pontos da Arquitetura de Le Corbusier: as janelas em fita, os pilotis (colunas de sustentação que elevam um edifício acima do solo), as fachadas livres, as plantas livres (ausência de paredes de suporte) e os terraços jardins. Outras características da construção de Brasília também foram inspiradas em Le Corbusier: os telhados planos, os muros cortina (paredes externas que não são estruturais), os contrastes acentuados entre volumes horizontais e verticais, a proeminência de paredes brancas, o concreto sem acabamento, os brise soleil (ou, mais precisamente, os cobogós brasileiros) e a abolição da rua tradicional. Costa até evitou a palavra rua em seus projetos para Brasília (Miller 310).

Esses elementos modernistas adotados no Plano Piloto marcaram um afastamento dramático da aparência e da identidade de outras cidades brasileiras. Brasília surpreendeu e continua surpreendendo as pessoas visual e verbalmente. O Plano Piloto possui uma expansividade diferente de outras cidades brasileiras.[5] Os edifícios monumentais aparecem como objetos autônomos, desconectados de um tecido urbano maior. Todo o espaço pode ser lido como um objeto de arte coeso, devido à relativa homogeneidade de seu design. Essa característica rendeu ao Plano Piloto o apelido de “museu a céu aberto”. Aumentando ou diminuindo o zoom, essa coesão permanece intacta: seja por uma foto aérea, pela fotografia de um palácio ou pelo close de um painel de azulejos de Athos Bulcão, o Plano Piloto continua reconhecível.[6] Muitas das fotos de artistas contemporâneos, capas de álbuns, e assim por diante, utilizam como cenário os azulejos de Bulcão. Os painéis servem perfeitamente como pano de fundo dos retratos e sinalizam imediatamente para o observador que aquele local é o Plano Piloto. O apelido “museu a céu aberto” também se refere à pletora de arte pública encomendada pelo governo na época da construção de Brasília, incluindo obras de Victor Brecheret, Sérgio de Camargo, Alfredo Ceschiatti, Di Cavalcanti, Bruno Giorgi, Maria Martins, Mary Vieira e Franz Weissman.[7] Todos os pais fundadores da capital contribuíram para a consolidação das imagens icônicas de Brasília. Exemplos incluem a Rodoviária e a Torre de TV de Costa; os painéis de azulejos de Bulcão; os bustos e as estátuas do presidente Kubitschek; os jardins de Burle Marx e os palácios de Niemeyer. Em 1959, Mário Pedrosa, presidente da Associação Internacional dos Críticos de Arte, organizou a conferência “A Cidade Nova – Síntese das Artes” – realizada em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – que ajudou a estabelecer a relevância da capital para as artes visuais sete meses antes de sua inauguração (Madeira, Itinerância 38).

O DF possui um conjunto específico de códigos e abreviações para denominar rodovias, zonas e edificações, o que sinaliza seu compromisso com a eficiência e a inovação. Por exemplo, SQN-203-B-105 é um endereço típico de Brasília. Para quem conhece as siglas do DF, o endereço refere-se ao apartamento 105, no prédio B, da superquadra 203 Norte, a leste do Eixo Rodoviário de Brasília (o Eixão) e a três quadras da Rodoviária. Já para alguém não familiarizado com este sistema, esses endereços são confusos e contribuem para o suposto caráter inóspito da cidade.

O plano original de Costa foi inspirado na crença de que o planejamento urbano intencional poderia desencadear uma mudança social positiva. Costa objetivou separar a cidade por diferentes atividades para maximizar sua eficiência. Seguindo o modelo do CIAM para a Cidade Funcional, ele queria que as dimensões e a fluidez dos setores – destinados a hotéis, locais de entretenimento, hospitais, clubes esportivos e assim por diante – correspondessem ao seu uso. De forma mais ampla, Costa imaginou que a capital teria uma escala monumental, residencial, gregária e bucólica, embora essa designação não se refira nem à escala absoluta nem à escala relativa. Em um sentido mais livre, cada escala envolve diferentes usos do espaço e proporção espacial. Na distinção entre monumental e residencial, a escala reflete a relação entre espaços vazios e construções sólidas. A existência de muito mais vazios do que sólidos na escala monumental sinaliza grandeza, e a razão oposta, na escala residencial, sinaliza conforto. Por exemplo, nas superquadras, pode-se gritar para a rua de uma janela do sexto andar (o último) e ser ouvido no térreo, o que aumenta a conectividade entre os espaços públicos e privados da área residencial. Os diálogos escritos pelos autores brasilienses frequentemente capturam essa característica distinta, como mostra a crônica “Desce aí, Beto” (2015), de Daniel Cariello.

Criada numa época de crescimento da indústria automobilística do Brasil, a cidade foi projetada para que proprietários de carro desfrutassem de um trânsito sem congestionamentos.[8] Costa também imaginou que os moradores de Brasília passariam seu tempo livre nas redondezas, caminhando, por exemplo, para jardins próximos, playgrounds, lojas e cinemas. Assim, a escala monumental coincide mais com o trabalho do governo, o tráfego de carros e o turismo, e a escala residencial, com caminhadas, crianças, diversão e compras do dia a dia. A escala gregária, tendo a Rodoviária como núcleo, refere-se aos locais de interação humana: comércio, bares, museus, bancos, hotéis, hospitais, restaurantes e assim por diante, que em Brasília tendem a se dividir em setores específicos. A escala bucólica permeia as outras três escalas e se refere aos espaços verdes de Brasília, que incluem parques, terraços jardins, campos, orlas e áreas abertas ao longo de rodovias destinadas ao lazer, usufruto da natureza ou preservação ambiental. Infelizmente, algumas áreas verdes que Costa projetou como bem público já foram privatizadas.

As superquadras de Costa são o aspecto mais inovador do Plano Piloto. Trata-se de blocos residenciais de 280 metros quadrados, cada um contendo cerca de dez prédios de apartamentos de seis andares. Os prédios residenciais são sustentados por pilotis de concreto armado, o que permite maior visibilidade, luminosidade, movimento e integração entre as pessoas, a paisagem e a arquitetura. Referindo-se à liberação do piso térreo dos edifícios para a circulação de moradores, Costa observa que “o acesso flui livremente através dos prédios, apesar dos prédios” (Vitruvius). Entre as superquadras funciona uma entrequadra, uma rua com imóveis comerciais e outros serviços. Embora esses serviços devessem incluir escolas, centros comunitários, piscinas, correios, delegacias de polícia, campos de jogos, teatros-cinemas e igrejas – criando um bairro autossustentável em que as necessidades básicas fossem atendidas à curta distância – esse ideal acabou não tornando-se uma realidade. A faixa comercial hoje abriga principalmente lojas, restaurantes e apartamentos adicionais.

Cada quatro superquadras deveriam formar uma Unidade de Vizinhança, inspirada no conceito de mesmo nome que o urbanista Clarence Perry desenvolveu na década de 1920. Porém, a única que foi concluída foi a das Superquadras 107, 108, 307 e 308, na Asa Sul do Plano Piloto. O romance O livro das emoções, de João Almino, transmite a sensação de bem-estar e convivência que a Unidade de Vizinhança proporcionava aos moradores abastados. Passado no início dos anos 2000, as personagens principais do romance – residentes da Asa Norte – frequentam restaurantes, bares e parques locais, para onde vão caminhando. Tal quadro apresenta um local na capital que contraria os estereótipos de que Brasília é uma cidade projetada apenas para os automóveis e de que a locomoção a pé é impossível.

Conforme a população da capital crescia rapidamente, a parte planejada da cidade, com sua arquitetura de estilo internacional[9], logo assumiu a aparência de uma excêntrica ilha rodeada por um alastramento urbano similar ao resto do Brasil urbano e suburbano. Essa característica rendeu ao Plano Piloto o apelido de Bras-ilha. O fracasso das superquadras em proporcionar a seus moradores uma vida mais igualitária não é surpreendente em uma sociedade capitalista. Esse insucesso reflete a maior ironia de Brasília: a cidade que pretendia melhorar a estratificação social, na verdade, intensificou-a. Muitos brasileiros de classe média, repugnados com a expansão das favelas em suas cidades, acreditaram que Brasília, por ser rodeada de área verde, impossibilitaria essa forma de ocupação da periferia (B. Fischer 27). No entanto, como Holston afirma, “a organização de uma periferia autorizada em torno da capital criou um tipo de ordem social dual que era tanto legal quanto espacialmente segregada . . . Enquanto os distritos centrais de outras regiões metropolitanas apresentavam uma mistura de bairros residenciais de elite e de favelas, havia uma segregação espacial absoluta em Brasília” (The Modernist 283). Essa divisão social e espacial tem preocupado os artistas desde os anos 1960.

1960-1980

Desde antes de sua inauguração, Brasília abrigou manifestações de arte tradicional e de arte de vanguarda. Muitos dos candangos[10] – apelido dos operários braçais que construíram a nova capital – eram trabalhadores nordestinos que, quando a seca de 1958 atingiu aquela região, viram-se desempregados e desesperados (Lins Ribeiro 88). Eles partiram para o cerrado em busca de um futuro melhor e, chegando lá, continuaram cultivando as artes tradicionais do Nordeste, tais como a gravura em madeira, a poesia de cordel e os vários gêneros musicais (como embolada, baião e forró). Essas manifestações artísticas aconteciam em clubes, restaurantes, ruas e mercados ao ar livre nos acampamentos de trabalhadores, mas raramente circulavam para além desses lugares. As tradicionais formas de arte nordestina foram muitas vezes, nas décadas de 1960 e 1970, consideradas inferiores, desimportantes e associadas às classes baixas. Seu florescimento no Planalto se deu graças à determinação de artistas e fãs da comunidade local e a despeito da falta de financiamento institucional ou governamental. Os sons, cheiros e sotaques da cultura tradicional nordestina ressurgiram ao lado da nova capital futurista, como é retratado no final do filme de Carlos Diegues, Bye bye Brasil (1979), a mais famosa representação fílmica de Brasília.[11] Um tema importante nesse filme de sucesso comercial e crítico, como Randal Johnson indica, são os confrontos não resolvidos no Brasil entre a cultura tradicional, de “raíz”, e a cultura de massa, importada e industrializada (Johnson 83-90). Outro tema são os sentimentos ambivalentes a respeito das aclamadas promessas de melhoraria e integração da nação (por meio de estradas e redes elétricas expandidas e de maior acesso à televisão e aos meios de comunicação de massa) (Beal, Brazil under Construction 109). Ambos os temas se entrelaçam na representação que Diegues faz de Brasília. Como o regime militar criou grandes conglomerados de moradias populares nas periferias do DF – o que é mostrado na cena de Bye bye Brasil em que uma assistente social conversa com as personagens Ciço e Dasdô, recém-chegados à capital – Brasília reproduziu a estratificação social do resto do país, deixando de cumprir suas promessas de uma vida melhor para os marginalizados. Porém, Ciço (que sonhava em ir à praia e acabou em uma cidade sem litoral), Dasdô e a filha do casal encontram mais estabilidade no DF do que antes tinham como artistas mambembes. Eles chegam a Brasília – cuja arquitetura sintetizava uma cultura moderna, internacional e pré-fabricada – para apresentar a cultura nordestina tradicional através dos shows de forró. Mas mesmo esses shows, com o uso de múltiplos aparelhos de televisão projetando imagens dos músicos, mostram que “Bye Bye Brasil rejeita a noção de que existe de alguma forma uma cultura ‘brasileira’ pura e imaculada” (Johnson 90). Referindo-se ao colonialismo cultural retratado no filme, Robert Stam afirma que “o problema, para Diegues, não é a mistura de diferentes tradições culturais, mas os termos unilaterais e exploradores sob os quais essas trocas muitas vezes acontecem” (35). Em um filme consciente de como tornar a arte um sucesso comercial (ver Johnson), os protagonistas conseguem encontrar um equilíbrio entre o antigo e o novo que atrai o público do DF.

Enquanto a cultura popular nordestina prosperava na periferia, a Universidade de Brasília (UnB) se tornou o centro da arte erudita na cidade. Fundada pelo antropólogo Darcy Ribeiro e pelo educador Anísio Teixeira, a UnB abriu suas portas em 1962, e em 1971 o Instituto Central de Ciências de Niemeyer – o enorme prédio principal da universidade, popularmente conhecido como Minhocão – estava completo.[12] Em 1962, Alcides da Rocha Miranda fundou o Instituto Central de Artes (ICA) da UnB, atraindo professores ilustres, como Décio Pignatari e Amelia Toledo. Naquele mesmo ano, Joanyr de Oliveira editou a primeira publicação de obra literária da capital, Poetas de Brasília[13], e em 1964, Almeida Fischer organizou a primeira antologia de contos da capital, Contistas de Brasília (Horta 19). O Salão Nacional de Arte Moderna do Distrito Federal de 1967 (o quarto e último salão organizado pela Fundação Cultural do DF) foi aclamado pela crítica (Madeira, “A itinerância” 197). O evento incluía o famoso porco empalhado de Nelson Leirner, obra que questiona definições tradicionais de arte (Santos de Oliveira e Cardoso Xavier 56).[14] O primeiro Festival de Cinema Brasileiro anual de Brasília, o mais antigo do país, ocorreu em 1965 e, desde então, o DF tem sido destino de cineastas e cinéfilos. Elena Shtromberg observa a popularidade de Brasília como tema para fotógrafos, cineastas e escritores, argumentando que a exposição de Cildo Meireles “Arte física: caixas de Brasília/clareira” (1969) – que contempla questões de vigilância, intervenção e destruição na capital – é um raro exemplo de abordagem da cidade nas artes plásticas (189).[15]

Embora os críticos muitas vezes tenham sucumbido à tentação de ou elogiar ou insultar Brasília, os artistas têm percebido melhor as complexidades da cidade. Uma amostra de textos fornece exemplos das visões nuançadas dos escritores sobre a capital. Proprietário de um bar em 1961 no acampamento Vila Planalto, José Marques da Silva publicou seu livro de memórias, Diário de um candango, em 1963. Nele, o autor retrata os crimes, a violência, a sujeira e os vermes em torno de seu boteco. Se a propaganda oficial associou a capital à ordem, o livro de memórias representa a cidade como uma terra sem lei (Beal, “Brasília’s Literature” 403). O livro defende o direito dos trabalhadores à moradia urbana, lamentando que os habitantes ricos tenham comprado os apartamentos do Plano Piloto prometidos aos candangos. Ao representar Brasília, Marques da Silva expressa sentimentos conflitantes de indignação (dadas as injustiças sociais) e de orgulho (dada a grandeza do feito de construção da cidade).[16] 

O texto literário mais famoso sobre Brasília foi escrito por uma forasteira. Em 1962, Clarice Lispector visitou a capital brevemente e, a partir dessa viagem, escreveu “Brasília: Cinco Dias”, uma crônica sobre o DF, publicada em seu livro A legião estrangeira (1964). Esse continua sendo o texto de ficção mais amado e citado sobre a capital. Nele, Lispector conseguiu reproduzir, ao invés de explicar, a sensação de choque provocada pela nova cidade. Ela escreve: “Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se . . . Brasília é assexuada . . . Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília . . . A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis” (165-67). Clarice inventa mitos para a cidade. Em um deles, as pessoas, agindo como arqueólogos, escavam uma Brasília soterrada na areia e depois habitam as casas em ruínas. A imagem de desenterrar uma Brasília original perturba concepções de causa e efeito, do que é novo ou antigo e do que está oculto ou visível, convidando o leitor a vivenciar o choque de Brasília sem julgá-la. A imagem também remete à prevalência, em todos os gêneros da arte brasiliense, de referências à inauguração da capital, como se artistas posteriores tivessem que, semelhantes aos escavadores míticos de Clarice, varrer a poeira dos prédios de Niemeyer e do plano de Costa para fazer suas próprias contribuições. Para dar uma ideia da amplitude do legado dessa crônica, Zuleica Porto e Sérgio Bazi se inspiraram nela para a realização do curta Brasiliários (1986). A crônica de Lispector também é o único texto criativo que compõem a obra Brasília: antologia crítica (2012), de Alberto Xavier e Julio Katinsky. Além disso, a mais famosa banda de Brasília da contemporaneidade, Móveis Coloniais de Acaju, homenageou a crônica ao incluir a figura de um cavalo branco na capa de seu álbum De lá até aqui (2013).

Embora não tão significativos para a imagem coletiva de Brasília, outros escritores canônicos brasileiros capturaram de forma brilhante os primórdios da capital. Assim como Clarice, eles conseguiram escapar da tentação de simplesmente elogiar ou difamar o DF. A primeira e a última histórias da coleção Primeiras estórias (1962), de João Guimarães Rosa, se passam perto do canteiro de obras da nova capital. Esses textos sinalizam que a urbanização e os costumes da cidade acabaram com as configurações rurais e os dialetos que caracterizam grande parte da obra de Rosa. O último conto da antologia, “As margens da alegria”, chama a atenção para a destruição do cerrado causada pela construção de Brasília. Jovem demais para ser cativado pela nova capital como um ícone do progresso do país, o protagonista é fascinado por outros aspectos do ambiente natural, principalmente os pássaros e a flora. Ele fala sobre um peru com uma linguagem eufórica que soa como reciclados fragmentos de elogios que ouviu sobre Brasília, como se a ave fosse mais digna de admiração do que a capital. Além disso, o que ele vê da construção do aeroporto – enormes escavadeiras, tumulto e poeira – o assusta porque devasta o mundo natural com o qual ele está extasiado. A nova capital nunca é chamada pelo nome, ecoando a maneira simples com que o menino a percebe: apenas como uma “grande cidade” (49; Beal, Brazil under Construction 80-82). Esse desejo de captar Brasília não só como um ambiente construído, mas também como um ambiente natural está presente na obra de Nicolas Behr, analisada no Capítulo 4.

Foi também um autor forasteiro que escreveu o primeiro romance histórico da capital. Paralelo 16: Brasília (1966), de José Geraldo Vieira, conta a história da criação do DF, entre 1957 e 1960. Ele registra com sucesso o momento histórico em que ricos burocratas dirigiam seus Aero Willys por estradas de terra vermelha, ainda não pavimentadas, e socializavam no Brasília Palace Hotel. O romance, entretanto, é tão pedante e mal-ajambrado (a função de grande parte das personagens é apenas proferir opiniões particulares sobre a capital) que nunca teve muitos leitores. Embora a maioria das personagens sejam burocratas e militares, os candangos desempenham um papel crucial no romance, o que expõe o contraste em relação às intenções igualitárias da capital e sua realidade elitista. Uma mudança pungente ocorre quando quatro candangos – que eram personagens bem desenvolvidas na primeira parte do romance – simplesmente deixam de ser mencionados na última parte do livro. Seu desaparecimento inexplicável do enredo ilustra que, uma vez que os empregos na construção civil diminuíram e a promessa de moradias de renda mista no Plano Piloto não se tornou realidade, os moradores pobres não tiveram condições financeiras de viver na cidade que haviam construído. (Lins Ribeiro 250; Beal, Brazil under Construction 90-96).

Outro renomado escritor brasileiro, Samuel Rawet, trabalhou como engenheiro especializado em concreto armado na construção de Brasília. Ele escreveu algumas histórias que se passam na capital, como “Uma carreira bem-sucedida” (1969), conto pioneiro em abordar a cidade de uma perspectiva queer. Com a precisão característica do trabalho de Rawet, a história retrata a reação contraditória de um barman que, esperando o ônibus depois do expediente, é cantado por um homem na Rodoviária de madrugada. Como a história registra, já na década de 1960, duas das principais características da cidade estavam bem estabelecidas. Em primeiro lugar, a Rodoviária é o coração agitado da cidade que facilita a interação humana. Em segundo, os longos trajetos (o barman vai de ônibus até a última parada da linha) agravam a qualidade de vida dos trabalhadores da capital.

Vieira e Rawet publicaram seus livros de ficção sobre Brasília após a instalação da ditadura militar. Os moradores do DF ficaram impressionados com a facilidade com que uma cidade construída para ser o pilar da democracia agora serviria a um regime autoritário. Os espaços abertos do Plano Piloto e a distância entre o centro e a periferia adequavam-se às ideias da ditadura militar sobre controle e organização espacial (Gouvêa 347). A implementação desse regime em 1964, apenas quatro anos após a inauguração de Brasília, deu início a um novo capítulo da história da arte na capital.

De 1964 a 1968, o clima artístico mudou indo da cooperação com o governo para a manifesta desconfiança no poder federal. Em resposta ao regime, bem como às tendências globais relacionadas às campanhas contra a guerra e pelos direitos civis, um movimento artístico de contracultura (também conhecido como movimento do desbunde) floresceu no Brasil.[17] Suas manifestações mais conhecidas são a tropicália e a poesia marginal, essa última que ganhou visibilidade quando Heloísa Buarque de Hollanda publicou a antologia 26 poetas hoje (1975), incluindo poemas de Francisco (Chico) Alvim, morador de Brasília.[18] As artes dessa época tinham em comum o protesto contra os valores do regime militar e o elogio a soluções do tipo “faça você mesmo”, que contestavam a sociedade de consumo. Esse ethos rendeu aos poetas o apelido de “geração do mimeógrafo”, uma vez que eles produziam seus livros de poesia usando mimeógrafos e os publicavam de forma independente, seguindo uma tendência internacional.[19] Essas poesias eram conhecidas pela linguagem coloquial, palavrões, humor e postura antiditatorial. Além disso, a técnica de publicação dava controle total aos autores: às vezes, os poetas mudavam seus escritos de uma edição para outra, rotulavam propositadamente um livro com o número de edição errado e adicionavam detalhes manuscritos para personalizar ainda mais o processo de publicação (Almeida Pinto 72). Eles se preocuparam muito mais com a escrita de poemas espontâneos e acessíveis do que com a precisão técnica. Os poetas marginais de Brasília, que nasceram antes da inauguração da nova capital e se mudaram para lá nas décadas de 1960 e 1970, incluem: Nicolas Behr (nascido em 1958), Chico Alvim (nascido em 1938), Luis Turiba (nascido em 1950), Paulo Tovar (1955-2009) e José Sóter (nascido em 1953).[20] Turiba – ao lado de Jorge Borges, Lúcia Leão e Luis Eduardo Resende (Resa) – fundou a Bric-a-Brac, a primeira importante revista de arte de Brasília, com foco na arte de vanguarda brasileira, que teve seis números publicados, de 1986 a 1992 (Paniago 26).

O método de vendas dos livrinhos mimeografados e a pichação de paredes são dois exemplos de como a geração do mimeógrafo transformou a imagem de Brasília. Insatisfeita com o regime militar e ávida por imprimir sua marca na cidade, a geração do mimeógrafo escreveu nas paredes. Jovens adultos no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 picharam, às pressas, os muros públicos do Plano Piloto com os seguintes dizeres:

Beije-me,

Pare de me olhar parede,

Terrorista é a ditadura que mata e tortura!,

A arte está solta!,

A poesia passou por aqui e

As paredes têm boca!! (Behr, Beije-me cover, 30, 36, 40, 42, 47).[21] 

Em estilo hippie, consonante com o movimento internacional, suas mensagens falavam da importância da arte, da não violência, da contestação e da liberdade. Assim, uma geração deixou sua primeira marca transgressora no espaço público de Brasília. Chico Alvim descreveu Brasília como um esqueleto que, aos poucos, foi sendo coberto de carne (cit. em Paniago 71). A geração do mimeógrafo – reunindo-se em espaços públicos (e tocando violões e pandeiros), pichando paredes e vendendo livros mimeografados – começou a humanizar a capital.

Poetas, principalmente Behr, a partir de 1977, vendiam seus livrinhos pelos espaços públicos de Brasília: na Torre de TV, na Rodoviária, no Parque da Cidade, em teatros, em colégios, na UnB e em bares como o Beirute, que era o ponto de encontro cultural na época (Marcelo, “Ímpeto” 25, 30).[22] Como Charles Perrone argumenta, o inovador método de vendas da poesia marginal (bem como o estilo coloquial dos poemas) criou, em grandes cidades brasileiras, um novo círculo de leitores de poesia: a juventude urbana de classe média (118-19). O método de vendas ambulante de Behr intensificou a relação entre criador e leitor, dado o contato pessoal entre ambos. Ele ajudou a redefinir os espaços públicos de Brasília como pertencentes não apenas à política, mas ao lazer, à juventude e à contracultura. Uma das fotografias mais icônicas dessa época foi tirada por Turiba e Lúcia Leão para um filme em Super-8 que estavam fazendo em 1978 (Fig. 2.1). Nela, Behr, sem camisa, segura uma prancha de surfe na passagem subterrânea da Superquadra Sul 215 e contempla um mapa da cidade. A fotografia mostra um jovem procurando, em vão, ondas no mapa de uma capital sem litoral. De maneira mais geral, a imagem revela que sua geração estava à procura de arte, lazer e companhia no DF. A imagem também faz alusão humorística à piscina de ondas do Parque da Cidade (um popular local de lazer que funcionou de 1978 a 1997), como se fosse possível surfar ali. (Behr, Beije-me 85). A fotografia lembra ao espectador que a piscina de ondas artificial não se equiparava às lindas praias do Rio de Janeiro e funcionava como sinédoque de Brasília: era artificial, sedutora e absurda. A fotografia contrasta a lógica das ordenadas avenidas da cidade com o movimento dinâmico dos jovens que ocupavam o espaço público de Brasília. A busca por prazer e o estilo casual (cabelos longos e chinelos) redefiniram um lugar antes associado apenas a trabalhos públicos, ternos e gravatas.

Figura 2.1 Fotografia de Nicolas Behr acima da passagem subterrânea na Superquadra 215 Sul, tirada para um filme de Luis Turiba e Lúcia Leão, 1978

Os poemas mais brilhantes de Behr da época selaram sua reputação como o poeta de Brasília. Dentre eles, encontram-se “SQS ou SOS?”, de 1977; “entre”, “mapa na mão” e “eu S”, de 1978; “tô namorando” e “nossa senhora do cerrado”, de 1979; e “naquela noite” e “bem, o sr. já nos mostrou”, de 1980.[23] Behr foi preso em 1978 quando seus livrinhos mimeografados Grande Circular, Caroço de goiaba e Chá com porrada foram considerados pornográficos (Almeida Pinto 72). A prisão do poeta demonstra a preocupação frequentemente desproporcional do governo com levantes populares e o desejo de controlar o uso da linguagem e do espaço público.

A ditadura aplicou uma lógica própria de planejamento à capital, transformando o layout urbano na tentativa de regularizar os acampamentos de trabalhadores e isolar moradores carentes em conjuntos habitacionais distantes do centro. O curta-metragem Brasília: contradições de uma cidade nova (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, retrata a injustiça desse processo, a formação da periferia e a repressão sofrida pela UnB (tropas invadiram a universidade em 1964 e mais de 200 professores foram demitidos em 1965) (Santos de Oliveira e Cardoso Xavier 45). O conjunto habitacional mais conhecido foi Ceilândia, fundada em 1971, cujo nome sinistramente se refere à Campanha de Erradicação de Invasões. Ceilândia não contava com serviços básicos suficientes, como água encanada, esgoto e luz. Portanto, aqueles que foram forçados a se mudar para lá se viram mais longe de seus empregos e em pior situação (Gouvêa 347). O governo, com a construção dos conjuntos habitacionais, criou uma cidade de dupla face. Artistas contemporâneos costumam retornar a esse episódio da história de Brasília para enfatizar o elitismo e a injustiça que oprimiram a classe trabalhadora no DF. O clipe do grupo de rap Viela 17 para sua música “20 de 40” (2012) serve como exemplo: o vídeo começa com a cena de uma propaganda do governo que, em 1971, mostrava Ceilândia como uma solução social exemplar na América do Sul, e termina com uma dedicatória aos usuários de crack e às famílias devastadas, clamando por justiça. Assim, Viela 17 defende que a violência, as drogas, a prostituição e a pobreza de Ceilândia (o que é elaborado na letra da música) são frutos de uma história de cidadania diferenciada e abandono do governo (Beal, “Making Space” 65).

Em 1979, Carlos Drummond de Andrade – após ler que Ceilândia, com sua população de 200 mil habitantes, era a maior favela do Brasil – escreveu “Confronto”, a décima nona seção de seu longo poema “Favelário nacional”, publicado no livro Corpo (1984) (Jevan 190). Nele, uma Brasília suntuosa e uma Ceilândia esquálida se contemplam, como as duas faces opostas do urbanismo brasileiro contemporâneo. O poema pergunta qual desses lugares falará primeiro, dando a entender que cada um tem uma história válida para contar na narrativa do DF. No mesmo espírito, Rawet proclamou que Brasília só realizaria seu potencial literário quando aqueles que a construíram aprendessem a ler e escrever (cit. em Paniago 26). Hoje, Ceilândia é a maior região administrativa do DF, com uma população de 489 mil habitantes, maior do que a maioria das cidades de médio porte. Os artistas de Ceilândia agora contam suas próprias histórias por meio de sua arte, criando alguns dos filmes e músicas mais instigantes da capital, conforme analisado nos Capítulos 5 e 6.

1980-2000

A arte produzida em Brasília durante a ditadura em geral circulava localmente. No entanto, logo após o fim do regime militar em 1985, a música brasiliense alcançou os holofotes nacionais. Saindo da cena punk rock, em vigor na capital desde meados da década de 1970, o movimento pós-punk do DF explodiu em 1985 (Madeira, “Rhythm” 59). Naquele ano, a Legião Urbana lançou seu primeiro álbum, ganhou o prêmio de disco do ano da Revista Bizz e vendeu mais de um milhão de cópias. Brasília, ao lado de São Paulo, foi o berço do rock brasileiro (Dapieve 135). O fato de que as bandas do DF (como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude) se mudaram para o Rio de Janeiro ou São Paulo para alcançar sucesso nacional[24] não diminui a importância de Brasília em ter gerado um cenário musical vibrante e nacionalmente relevante (Madeira, “Rhythm” 60).

O movimento do rock brasiliense começou no final dos anos 1970 nas áreas comuns do bairro da universidade, onde os adolescentes (incluindo os principais integrantes da banda que viria a se tornar a Legião Urbana) viviam e socializavam.[25] Eles ficaram conhecidos como Turma da Colina, em homenagem ao bairro. O amplo espaço de socialização da Colina foi um exemplo bem-sucedido do modelo residencial idealizado por Costa, e se tornou o local onde músicos de rock dos anos 1970 e 1980 ensaiavam, trocavam fitas cassete e conheciam futuros parceiros de banda (Dapieve 132; Marchetti 194). Dentre esses grupos, encontram-se: Aborto Elétrico, Blitz 64, Plebe Rude, Elite Sofisticada, XXX, Capital Inicial e Legião Urbana. Embora novas bandas parecessem surgir constantemente, elas eram reconfigurações do mesmo grupo de adolescentes brasilienses, muitas vezes irmãos, colegas de classe ou vizinhos.[26] Muitos deles, filhos de diplomatas e professores, tinham vivido na Europa e nos Estados Unidos e foram os primeiros a apresentar ao Brasil a música punk e pós-punk. (Alexandre 68-69, 71). As bandas eram extraordinariamente cosmopolitas e multilíngues. A banda Obina Shok (1985-1987), por exemplo, era composta pelo neto de Leopold Senghor (o primeiro presidente do Senegal), Jean-Pierre Senghor (voz e teclado); por Roger Kedyh, do Gabão (voz e guitarra); por Winston Lackin, do Suriname (bateria); e por quatro brasileiros. Embora a música de Obina Shok fosse mais inspirada em ritmos africanos e caribenhos, a maior parte do movimento do rock foi inicialmente influenciada por lendas do punk, como The Clash, Sex Pistols e Jello Biafra, do Dead Kennedys. Empolgados com a ascensão da música punk no final dos anos 1970, esses jovens brasileiros adaptaram os acordes simples, o espírito de revolta contra o sistema e as letras politicamente rebeldes ao contexto brasileiro contemporâneo.[27] Apesar de não fazer parte da Turma da Colina, Cássia Eller, com 21 anos em 1983, já gravava músicas covers em Brasília (lançadas em seu álbum póstumo de 2015, Cássia Eller em Brasília – O Espírito do Som Vol. 1 - Segredo), sem saber que chegaria ao estrelato na década de 1990.

O rock de Brasília formou uma geração de jovens brasilienses orgulhos de ser do DF (Trindade; Marchetti 194) e, além disso, mudou a percepção dos brasileiros sobre a capital. Se antes Brasília era associada à política, à burocracia e a uma estética estéril, essas bandas – sempre cantando em português – lembravam ao país que Brasília era cheia de gente, de histórias, de dor, de rebeldia e de amor, conforme mostram suas canções. Depois da arquitetura de Niemeyer, a arte brasiliense mais prestigiada é o rock, o que pode ser percebido pelas festas desse gênero musical que ocorreram no DF na década de 1980. As bandas não cantavam em uníssono, mas expressavam preocupações coletivas sobre globalização, cultura do consumo, violência sistemática no Brasil, política de identidade, conflitos entre pais e filhos e medos da falta de propósito (Beal, “Brasília’s Literature” 396-97). Surgidas antes dos clubes de música, essas bandas ironicamente acabaram se apresentando em locais financiados pelo Estado – o Ministério da Cultura e teatros municipais –, apesar das ácidas críticas que faziam ao governo (Alexandre 70). Em 1980, a tolerância do governo com o rock de Brasília cessou e uma emboscada policial encurralou centenas de participantes do segundo Rockonha – uma festa organizada por amigos em um campo na região administrativa de Sobradinho (Marchetti 48-49).

Raramente essa música fazia referência aberta à Brasília, mas, de maneira mais geral, criava um senso de identidade coletiva para os jovens que buscavam seu lugar em uma sociedade aparentemente hostil. Os protagonistas dessas canções (como os da poesia mimeografada de Brasília) não têm carro, mas andam a pé ou de bicicleta. Eles representam jovens de classe média ainda sem idade para dirigir. O ato de caminhar demarca a rejeição juvenil aos ideais capitalistas e consumistas resumidos pelo sonho de se possuir um “carro do ano”, objetivo questionado na canção da Legião Urbana “Química”, do álbum Que país é este? (1987). Caminhando ou pedalando, esses protagonistas aumentam sua intimidade com sua cidade. No mesmo disco, a música “Tédio (com T bem grande pra você)” (escrita originalmente pelo vocalista Renato Russo para sua banda anterior, o Aborto Elétrico) imagina um adolescente entediado de Brasília, que não tem carro e anda sob a chuva à noite. Na balada de grande sucesso da Legião Urbana, “Eduardo e Mônica” (1986), a bicicleta (camelo) de Eduardo, um jovem de 16 anos, simboliza a diferença de idade entre ele e sua amante, por quem se apaixona depois de um encontro no Parque da Cidade. A canção “Música urbana”, escrita pelo Aborto Elétrico por volta de 1981 e gravada pela primeira vez pelo Capital Inicial em 1986, traz a imagem surreal de alguém que tem pedras nos sapatos onde os carros estão estacionados. Através da mudança de escala, o pedestre domina o carro, embora os veículos, transformados em pedras, ainda compliquem a caminhada. Os versos sugerem os sentimentos conflitantes de ser maior do que a vida, mas ainda assim estar imobilizado (Beal, “A arte de andar” 74). A música “Meninos e meninas” (1989), da Legião Urbana, usa a imagem de um lugar físico para refletir sobre como é sentir-se emocionalmente perdido: o protagonista bissexual confessa “quero me encontrar, mas não sei onde estou”. Como afirma o jornalista Arthur Dapieve, Renato Russo, ao abordar temas polêmicos – como crise da AIDs, desigualdade no Brasil e políticas de identidade – vocalizou o que os jovens brasileiros se sentiam incapazes de dizer (Dapieve 216).

Em 1987, mesmo ano em que Que país é este? foi lançado, a UNESCO designou o Plano Piloto como Patrimônio Mundial. As longas distâncias entre as áreas de baixa renda e o opulento centro (composto pelo Plano Piloto e suas regiões administrativas anexas: Lago Sul, Lago Norte e, desde 1989, Sudoeste / Octogonal) já exacerbavam a desigualdade, e a nomeação da UNESCO agravou essa divisão. Uma música do Que país é este? – “Faroeste Caboclo” – sintetizou Brasília como a capital do desenvolvimento desigual e dos sonhos desfeitos.[28] De todos os hits de sucessos da banda, este foi o mais improvável (Dapieve 138). A balada de nove minutos não tinha refrão e combinava música sertaneja, baião, reggae e punk rock. A música transpôs a saga heroica de um bandido que virou santo para o contexto da Brasília moderna. Esse herói é um resumo da curta história da capital: ele era um trabalhador de baixa renda em busca de uma vida melhor, um traficante, um entusiasta do rock, um homem apaixonado, uma espécie de ícone religioso e uma vítima da violência armada. Culminando em um tiroteio em Ceilândia, a música descreve uma capital de violência das gangues, segregação e salários injustos. A presença de Ceilândia em uma história de amor fumegante remete aos fracassos da solução habitacional que o governo impôs aos construtores de Brasília 16 anos antes do lançamento da canção.

As canções raivosas e enérgicas da Legião Urbana conquistaram o público por serem, por um lado, facilmente reproduzíveis e, por outro, totalmente diferentes da MPB. Para a crítica Angélica Madeira, o rock brasileiro dos anos 1980 constituiu sua identidade própria a partir das diferenças significativas em relação à MPB: “Distanciando-se dos arranjos bem comportados, das letras metafóricas ou alegóricas e da tradição melódica da música popular brasileira, as bandas de rock da década criaram sons únicos, com distorção de violão, percussão pesada, uma crítica a todas as instituições sociais e uma poética da aversão e da abjeção” (“Rude Poetics” 96). No entanto, foram os fãs que acabaram se comportando pior do que os músicos.

Se a arquitetura de Niemeyer simbolizou a sofisticação de Brasília e os livros de poesia mimeografados de Behr sua espontaneidade, a Legião Urbana – em seu show de 1988 – simbolizou a ameaça do rock à ordem civil. Como uma jovem havia morrido durante uma briga no show da Legião Urbana em dezembro de 1986 em Brasília, a banda evitou se apresentar em sua cidade natal por um ano e meio. Porém, era hora de voltar. Como ninguém tinha previsto que em Brasília, até então uma cidade relativamente sonolenta, um enorme contingente de pessoas seria atraído ao Estádio Mané Garrincha, o espetáculo carecia da infraestrutura típica de megaeventos, como palco alto e ampla equipe de seguranças. Depois de vender 41 mil ingressos, a equipe de produção, pressionada pela crescente multidão indisciplinada, começou a deixar os fãs sem ingressos entrarem na tentativa de evitar um tumulto (Dapieve 195). Ninguém sabia quantas pessoas estavam no estádio. Quando a multidão começou a se juntar, a banda percebeu a extensão de seu estrelato e ficou apavorada. Um homem subiu no palco e começou a estrangular Renato Russo por trás, até que o cantor o atingiu com seu microfone. Depois disso, o público começou a jogar objetos (alguns deles incandescentes) no palco (Dapieve 196). Em resposta, Russo encerrou o show mais cedo, o que alimentou ainda mais o fogo da barulhenta multidão. Seguiu-se um motim massivo no qual 60 pessoas foram presas, fãs furiosos danificaram 64 ônibus urbanos e jovens tiveram confrontos violentos com a polícia que, a cavalo, reagiu com gás lacrimogêneo. A Legião Urbana foi acusada de ser responsável pela violência que aconteceu naquela noite e pelas 385 pessoas que tiveram que receber atendimento médico (Dapieve 139). Na história de Brasília, esse show foi o evento artístico que causou maior dano público e, ironicamente, a destruição não foi motivada por causas políticas. A confusão refletia a raiva vazia de uma geração não engajada em uma luta coletiva. O motim também revelou a inepta infraestrutura de segurança de uma cidade relativamente jovem para eventos culturais de grande porte e a necessidade de melhorias imediatas. Apesar desse concerto desastroso, a importância de Renato Russo como um ícone da cidade continua a ser evidente nas muitas referências ao seu trabalho, que incluem o centro cultural erigido em seu nome.

Com sua voz inconfundível, letras poéticas e longas canções, Russo rapidamente alcançou o estrelato. Durante sua vida, a banda vendeu 20 milhões de discos, e a Rolling Stone, em 2008, listou Russo como um dos 25 músicos brasileiros mais importantes de todos os tempos. Sua vida privada, no entanto, foi atormentada, pois ele sofria de depressão, passou por uma tentativa de suicídio, tinha vício em heroína e era soropositivo. Ele também enfrentou a dificuldade em se identificar como bissexual em meio à homofobia galopante. O músico faleceu aos 36 anos em 1996 de causas relacionadas ao HIV. Talvez mais do que qualquer outra figura pública do final dos anos 1980, Russo foi o porta voz de uma geração jovem que se sentia revoltada, alienada, sem rumo e sem o inimigo comum da ditadura que havia unido uma geração anterior. O título de sua canção de sucesso “Geração Coca-Cola” (1985) rapidamente se tornou o apelido da sua própria geração, nascida sob o signo do consumo (Madeira, “Rhythm” 62-63).

O movimento rock de Brasília na década de 1980 era predominantemente de classe média, branca, deixando as vozes periféricas de baixa renda do DF silenciadas. A ascensão do hip-hop na capital e em seus arredores nas décadas de 1980 e 1990 (centrada em Ceilândia e Planaltina) foi motivada, em parte, pelo desejo de jovens negros marginalizados de se tornarem autores de suas próprias histórias e de criarem um clamor coletivo contra a negligência do governo em relação às suas comunidades.[29] Seu artista mais conhecido nacionalmente é GOG (Genival Oliveira Gonçalves), que nasceu em Sobradinho em 1965 e cresceu principalmente na região administrativa do Guará, onde viveu de 1973 a 1991. Ele iniciou a carreira na década de 1990 com o grupo Viela 17 antes de lançar carreira solo. Outros artistas, DJs e grupos conhecidos incluem Câmbio Negro, Cirurgia Moral, Código Penal, DJ Raffa e DJ Jamaika. Sempre se referindo ao seu trabalho como rap nacional, esses artistas se viram (e se veem) como parte de um empreendimento maior, que conecta as periferias urbanas do Brasil. Músicas, como “Sub-raça” (1993), do Câmbio Negro, denunciam o racismo e a violência.[30] Sua canção “Círculo vicioso” (1998) alerta contra a falsa atração do narcotráfico e sua capacidade de destruir as comunidades. A canção de GOG “Brasília periferia - parte 2” (1998) lista dezenas de nomes de favelas e regiões administrativas de baixa renda do DF, celebrando a dignidade das quebradas de Brasília que eram “antes desconhecidas hoje reconhecidas” em parte, graças ao rap nacional. Diversos artistas do rap nacional compartilhavam o objetivo de empoderar os negros da periferia de Brasília. Eles afirmaram sua legitimidade cultural e denunciaram a segregação espacial em uma capital que era, em 1997, mais segregada socialmente que qualquer outra cidade brasileira (Hall “For Allon” 301; Bursztyn e Ferreira de Araújo 32). Como Lehnen argumenta no contexto de romancistas periféricos, ao enquadrar a periferia como um lugar cultural, seus artistas contestam representações daquele local como primariamente violento e não criativo (11). 

No entanto, o Plano Piloto também continuou a ser um importante local de arte. Em 1970, o cineasta Vladimir Carvalho mudou-se para Brasília para trabalhar na UnB, tornando-se um dos intelectuais mais influentes da capital.[31] Seus documentários frequentemente abordavam o DF, como Brasília segundo Feldman (1979) e Rock Brasília – era de ouro (2011). Seu Conterrâneos velhos de guerra (1991) é, indiscutivelmente, o melhor documentário do DF até hoje, tanto pelo excelente material de arquivo quanto pela qualidade das entrevistas com pessoas ligadas à construção de Brasília, de Niemeyer a uma lavadeira. Além disso, o filme aborda três décadas de pobreza no Brasil vistas pelas lentes da capital. A atriz Dulcina de Moraes fundou o Teatro Dulcina em 1980, um dos mais importantes espaços performáticos da cidade. Em 1982, a capital sediou sua primeira Feira do Livro de Brasília. Em 1987, João Almino publicou o primeiro romance, Ideias para onde passar o fim do mundo, do que viria a ser seu “Quinteto de Brasília”, analisado no Capítulo 3. A cena contemporânea de artes visuais de Brasília tem fortes laços com a UnB, onde lecionam alguns de seus artistas mais destacados, como Suzete Venturelli e Bia Medeiros, ambas conhecidas por integrar arte e tecnologia.[32] Em 1998, a banda de ska Móveis Coloniais de Acaju – amada pelos brasilienses – foi formada. O Centro Cultural Banco do Brasil foi inaugurado em 2000 em um amplo prédio projetado por Niemeyer, tornando-se um dos principais espaços para eventos de arte da capital. Seu jardim inclui várias esculturas escaláveis de Darlan Rosa, um dos escultores mais conhecidos do DF.

Artistas ao longo da segunda metade do século XX desempenharam um papel fundamental na transformação da imagem da cidade, passando a considerá-la uma capital cultural. Seu trabalho abriu caminho para as renovações artísticas do DF do século XXI, concebendo a capital como uma vibrante cidade das artes, onde a produção cultural reafirma o direito criativo à cidade.


Notas


[1] Para uma análise do “Pagode em Brasília”, ver Dent 244-49.

[2] Para mais sobre a Forlândia, ver Grandin.

[3] A idade da Terra (1980), filme de Glauber Rocha, oferece um retrato sugestivo de Brasília. Na longa cena inicial, a câmera captura a residência oficial do presidente junto ao Lago Paranoá, o Palácio da Alvorada. Diferente da maior parte das representações de Brasília que focam os monumentos oficiais, a câmera de Rocha lentamente se afasta daquela construção. O palácio vai desaparecendo no cerrado que o cerca, enquanto os vocais cerimoniais e a percussão de Naná Vasconcelos acompanham o sol nascer. Brasília parece ser tomada pela natureza, pela arte e pelas tradições indígenas, composição que coloca em xeque o Brasil moderno que a capital supostamente representa (para mais informações sobre a apresentação de Brasília neste filme, ver “A arte de Brasília”, de Beal).

[4] Para comparações visuais entre as duas cidades, ver Baan.

[5] As tomadas da câmera drone no documentário de Petra Costa, Democracia em vertigem (2019), habilmente exibem a vastidão desalentadora da Praça dos Três Poderes e da Esplanada dos Ministérios do Plano Piloto.

[6] Por ser facilmente reconhecível e pela presença de espaços não comerciais ao ar livre, o Plano Piloto constitui o oposto do que o antropólogo Marc Augé chama de não-lugar (non-place) e o arquiteto Rem Koolhaas de espaço-lixo (junkspace). Os estudiosos usam seus respectivos termos em referência a uma arquitetura sem alma, que poderia estar em qualquer lugar no mundo e que caracteriza uma economia de mercado global.

[7] Para uma história concisa das artes visuais de Brasília de 1958 a 1967, ver “A itinerância” ou o primeiro capítulo de Itinerância dos artistas, de Madeira.

[8] Para uma comparação histórica da vida nas ruas e da cultura automobilística em Brasília e no Rio de Janeiro, ver Miller 308-13.

[9] O historiador da arquitetura Henry-Russell Hitchcock e o arquiteto Philip Johnson inventaram o termo estilo internacional para sintetizar semelhanças arquitetônicas que começaram a aparecer em 1922 (ver Hitchcock e Johnson). Brasília se enquadra nesta categoria em sua estratégia de construção e estética. Muitos dos edifícios de Brasília foram padronizados para serem reproduzíveis, feitos com material pré-fabricado e construídos rapidamente. Muitos dos designs, em teoria, eram determinados pela função dos edifícios. As edificações de Brasília usam traços e materiais do estilo internacional, que são sinônimos dos traços associados a Le Corbusier, anteriormente mencionados. Como o próprio nome indica, o estilo internacional tendeu a rejeitar o estilo vernáculo e a história local, o que é evidente no caso de Brasília.

[10] Originalmente, esse termo era pejorativo. As definições de candango no dicionário incluem uma pessoa deplorável ou de mau gosto. No entanto, o termo já não tem mais conotação negativa quando usado para se referir aos trabalhadores braçais de Brasília. Além disso, o termo se refere aos primeiros moradores do DF e, mais amplamente, a qualquer morador daquela cidade.

[11] Para uma síntese de 50 filmes sobre Brasília, ver Daehn.

[12] Para uma história da UnB, desde a luta para fundá-la até a invasão militar do campus em 1968, ver o documentário Barra 68 - sem perder a ternura, de Vladimir Carvalho.

[13] Seguiram-se a essas muitas outras antologias literárias sobre Brasília. Para uma lista de mais de 20 dessas compilações e para análises de muitas delas, ver Horta.

[14] Para uma descrição cronológica dos principais eventos e locais de artes visuais de Brasília de 1960 a 2010, ver Santos de Oliveira e Cardoso Xavier.

[15]A exposição foi feita pela primeira vez no Salão Bússola do Rio de Janeiro.

[16] O jornalista Edson Beú postula que os candangos que construíram Brasília pensavam na cidade e em seus fundadores com orgulho, num primeiro momento. Holston defende o mesmo argumento, lembrando que o ressentimento veio no período pós-inauguração (Beú 18-19; Holston, The Modernist 113).

[17] Paradoxalmente, durante a ditadura militar, a arte dissidente do Brasil floresceu (Schwarz “Cultura”). Para um estudo abrangente sobre a contracultura no Brasil, ver Dunn.

[18] Para uma excelente introdução à poesia marginal e suas imperfeições literárias, ver “The Airs and Adventures of Poesia Marginal”, de Perrone. O texto é uma seção dentro de “Margins and Marginals: New Brazilian Poetry of the 1970s”, o quinto capítulo de Seven Faces: Brazilian Poetry since Modernism.

[19]Para mais sobre o lugar de Brasília na geração do mimeógrafo nacional, ver Cabañas. Para imagens de alta qualidade das capas e páginas dos livrinhos mimeografados originais de Behr, ver Ferraz.

[20]Para mais sobre esses poetas, ver Almeida Pinto. Um dos poetas brasilienses mais queridos da época era Cassiano Nunes (1921-2007). Porém, ele era de uma geração anterior, não fazia parte do movimento e não era antissistema.

[21]Para a localização exata das pichações, muitas das quais se encontravam em passagens subterrâneas, ver Beije-me 83-90, de Behr.

[22] Historicamente, o local mais famoso da boemia de Brasília é o Beirute, um bar do Plano Piloto que abriu em 1966 e está funcionando (agora em dois locais) desde então. Embora nunca tenha sido um local de apresentações musicais, o bar sempre foi um ponto de encontro de poetas, músicos de rock e atores. Ele também é tema de livros (Beirute, final do século e Beirute, bar que inventamos, de Fonseca) e de um pequeno documentário (Nove, uma rua de Brasília, de Gomes et al.), que captam sua importância como centro político e cultural.

[23] Para mais análises desses poemas, ver “The Art of Brasília”, de Beal.

[24] Essa migração para o Rio de Janeiro e São Paulo também era comum entre os artistas plásticos de Brasília, como observa Angélica Madeira em Itinerâncias dos artistas.

[25] Para uma análise das bandas de rock brasilienses dos anos 1980, seus nomes e as letras de suas músicas, ver “Rhythm and Irreverence”, de Madeira. Muitos dos nomes das bandas faziam referência divertida a Brasília, como Detrito Federal, Capital Inicial, Legião Urbana e Elite Sofisticada.

[26] Para uma história do rock brasiliense (organizada por centros culturais, bandas, personalidades e eventos marcantes) contada a partir de trechos de entrevistas com integrantes da Turma da Colina e de fotos, ver Marchetti. Em sua genealogia das bandas de rock brasilienses de 1978 a 1986, o autor mostra como os músicos trocavam facilmente de banda e de instrumentos (193). A experiência musical não era um pré-requisito para a adesão a uma banda, e a integração na cena social do rock brasiliense muitas vezes prevalecia sobre o talento artístico.

[27] Para mais sobre a Turma da Colina, ver o documentário Rock Brasília: a era de ouro (2011), de Vladimir Carvalho.

[28] Em 2013, René Sampaio lançou o longa-metragem Faroeste caboclo, vagamente inspirado na música, mas com um conflito de classe e de raça que não convence (um homem negro pobre se apaixona por uma mulher branca rica). Os diálogos, a fotografia e o enredo clichês giram em torno da impossibilidade de união entre os amantes (Beal “A arte” 77).

[29] Em parte devido ao pequeno tamanho da cena musical de Brasília, o hip-hop e o rock, nos anos 1980, como postula Derek Pardue, apoiaram-se mutuamente (abrindo os shows uns dos outros). Além disso, certas bandas – como Câmbio Negro e Baseado nas Ruas – combinaram rap e hard rock (Pardue 49).

[30] Para mais sobre “Sub-raça”, ver Rap: o canto da Ceilândia, de Queiróz.

[31] Para mais sobre Vladimir Carvalho, ver Vladimir Carvalho – pedras na lua e pelejas no Planalto, uma compilação das reflexões e fotografias de Carvalho organizada por Carlos Alberto Mattos.

[32]Para uma leitura dessas duas artistas dentro da trajetória mais ampla de artistas trabalhando com novas mídias que vêm inovando as perspectivas femininas críticas desde 1960, ver “De musas a autoras”, de Osthoff.

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3. João Almino e o direito criativo à cidade
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