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A arte de Brasília: 2000-2019: 1. Uma introdução à arte de Brasília

A arte de Brasília: 2000-2019

1. Uma introdução à arte de Brasília

CAPÍTULO 1

Uma introdução à arte de Brasília

A imagem da cidade e os artistas contemporâneos do Distrito Federal (DF)

Brasília, para aqueles e aquelas que não moram lá, tende a ser vista como uma cidade sem cultura (Fig. 1.1). A capital do país, inaugurada em 1960 e considerada a iniciativa modernista mais ambiciosa do mundo, tem sido considerada hostil, desagradável e artificial. Um crítico a descreveu como algo que “Kim Il Sung deve ter encomendado depois de um flerte com a Cientologia” (Moser 68). “Se o inferno precisasse de um arquiteto, Niemeyer seria um bom candidato”, apontou outro estudioso, depois de visitar o DF (Daniels 37). David William Foster observou que “Brasília é a capital oficial do país há uns cinquenta anos agora. Porém, ela nunca se tornou nada além de um enclave burocrático, sem o ar icônico, mítico ou simbólico atribuído aos três centros históricos do país [Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo]” (São Paulo 15). Um fotógrafo ficcional do “Quinteto de Brasília”, de João Almino, referiu-se à cidade como “meu anti-Rio” (Livro das emoções 26). Em 1960, Simone de Beauvoir, feliz por deixar Brasília, afirmou, pessimista, que a cidade “nunca terá alma, coração ou sangue” (A Transatlantic 534). Um blogueiro de viagem, escrevendo em 2014, ecoou de Beauvoir cinquenta e quarto anos depois: “Eu não recomendaria que vocês visitassem … [Brasília porque] … ela não tem personalidade, nem alma, nem coração” (“The Impossible Search”). Aos olhos do mundo, Brasília é uma cidade sem alma.

Figura 1.1 Brasília, Brasil (Mapa por Avian Ciganko-Ford, da U-Spatial (Universidade de Minnesota)

Há mais de cinquenta anos, o DF tem sido objeto do desprezo de visitantes que, estando em Brasília apenas de passagem, não puderam conhecer nada além dos palácios do Plano Piloto, o marco zero da cidade (Fig. 1.2). Desse ponto de vista, o DF parece ser uma relíquia do passado, não uma cidade viva e pulsante. Em 1987, o Plano Piloto foi nomeado Patrimônio Mundial da UNESCO. A preservação da cidade original, exigida por essa designação, contribuiu para a construção da imagem de uma Brasília parada no tempo, na década de 1960. A nomeação da UNESCO também valorizou a arte sancionada pelo Estado (realizada quase exclusivamente por homens brancos privilegiados), em oposição às diversas manifestações culturais contemporâneas que ocorrem por toda parte nas regiões administrativas do DF.

A reputação de Brasília como um deserto cultural está desatualizada. Este livro defende que os artistas do século XXI estão transformando Brasília em uma vibrante cidade das artes e que a produção cultural reafirma o direito criativo à cidade. Vários gêneros artísticos – poesia, prosa, música, fotografia, jornalismo cultural, cinema, grafite e dança e teatro de rua – participam dessa renovação da imagem do DF. As iniciativas culturais de Brasília desmascaram as desigualdades da capital de modo criativo e vislumbram formas alternativas de habitar a cidade.

Os críticos retornam constantemente às falhas do projeto inicial de Brasília como se uma cidade não fosse mais do que sua história de origem (Markus 5). No entanto, como propõem Henri Lefebvre, Doreen Massey e David Harvey, as cidades estão em fluxo contínuo (Lefebvre, The Production 224: Massey 39; Harvey 23, 26). Ao insultar Brasília, esquece-se de que os moradores da capital, com suas vozes próprias e práticas cotidianas, inevitavelmente a modificam (Certeau 98-100; Massey 118; Lefebvre, The Production 39). A ênfase excessiva na história do fracasso do plano urbanístico da cidade ignora, de modo problemático, artistas, consumidores de arte e produtores culturais racial e economicamente diversos que transformaram o DF.

A Carta de Atenas de 1933 – manifesto de planejamento urbano do Modernismo – garantia que “a alma das cidades será animada pela clareza do plano”, mas em Brasília o oposto é verdadeiro: a alma da cidade revela-se nos desvios do plano, como demonstram os artistas contemporâneos (Congrès sec. 86 cit. em Le Corbusier 101). Especialmente nos últimos anos, quando a democracia brasileira se encontra em terreno instável, esses artistas têm procurado perturbar o status quo em relação a percepções e usos do espaço na capital.

Diante de profundas injustiças, o cenário artístico contemporâneo do DF reúne os moradores e transforma a imagem que eles têm de sua cidade. Os artistas de Brasília sempre foram ativos, mas a arte contemporânea da capital tem laços mais fortes com a cidade, desfruta de mais financiamento e é mais inclusiva para grupos marginalizados. O aumento da produção cultural focada na melhoria urbana e na justiça social pode ser atribuído a vários fatores. As mídias sociais facilitaram a divulgação de eventos artísticos e as novas tecnologias tornaram mais acessível a criação de certas formas de arte, principalmente filmes, músicas e livros. Além disso, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrida entre 2003 e 2010, a classe média expandiu-se significativamente e a pobreza foi bastante reduzida. Com essa expansão da Classe C, de acordo com Leila Lehnen, “a periferia urbana, as minorias étnicas e os segmentos economicamente desprivilegiados da comunidade cidadã – começaram a exigir seu direito à cidadania substantiva, geralmente através de ‘práticas insurgentes’ que ocorrem não apenas na esfera social e civil, mas também na arena cultural” (10-11). Cada vez mais, os moradores de Brasília têm exigido seu direito de produzir e consumir cultura e de fazê-lo em espaços públicos.

Além das demandas sociais e da crescente classe média que conduz essa transformação, novos modelos de financiamento também têm ajudado a tornar a arte de Brasília mais inclusiva. Os logotipos no verso de quase qualquer objeto artístico do século XXI no DF (livro, DVD, revista e assim por diante) revelam as fontes – públicas e privadas – que o patrocinam. Por exemplo, o DVD Vera Veronika - 25 anos (2018) – edição comemorativa da carreira da rapper de mesmo nome – lista 16 colaboradores corporativos e governamentais. No século XX, esse modelo de subsídio simplesmente não existia em Brasília e performances, livrinhos mimeografados e mixtapes eram produzidos com orçamentos apertados. A maior fonte de financiamento artístico, criada em 1991, é o Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC-DF), administrado pela Secretaria de Cultura da capital. Desde 2008, quando a Câmara Legislativa da cidade aprovou uma nova lei, um mínimo de 0,3 por cento da receita corrente líquida (a soma de todos os impostos arrecadados pelo tesouro da capital) teve que ser destinado a projetos do FAC-DF. A Lei de Incentivo à Cultura, homologada em 1991, é outra grande fonte de subsídio, pois permite que empresas e indivíduos redirecionem parte de seu imposto de renda para investimentos culturais e artísticos. Também há uma lei equivalente a essa em nível distrital, a Lei de Incentivo à Cultura Distrito Federal, que, inclusive, já apareceu na ficção. No romance O livro das emoções, de Almino, um advogado especializado em obter recursos da Lei de Incentivo à Cultura participa de uma reunião sobre um documentário que se passa em Brasília. A presença do advogado denuncia o fato de que o financiamento não é distribuído para quem mais merece, mas sim para aqueles que, com dinheiro e através de seus contatos, conseguem manipular o sistema com maior habilidade. No entanto, o FAC-DF também se esforça para subsidiar projetos das regiões administrativas periféricas. O aumento da arte ligada à melhoria da cidade e à justiça social evidencia as prioridades dos financiadores e de artistas de grupos marginalizados, que entendem seu trabalho como uma forma de ativismo, como demonstram as músicas de Vera Veronika sobre os direitos de mulheres, negros, comunidade LGBTI+ e residentes periféricos.

Para grande parte dos artistas discutidos neste livro, fazer arte em e sobre Brasília é um modo de manter vivas as tradições culturais e superar a discriminação. Por exemplo, as mulheres do grupo de rap Atitude Feminina (formado em 2000), da região administrava São Sebastião, ouviram de um rapper local que o lugar delas era na cozinha, não no palco (cit. em Rezende, “Mulheres” 14). O insulto confirma o argumento do geógrafo Neil Smith de que as metáforas espaciais, longe de fornecerem imagens inocentes que são meramente evocativas, expõem conflitos de poder social centrais ao processo inerentemente político da produção do espaço (62). Tais afrontas – que inspiraram as letras feministas do grupo – ilustram a luta contínua por justiça social e espacial.[1] 

Dois críticos foram particularmente influentes em apontar os defeitos socioespaciais de Brasília. O geógrafo Aldo Paviani começou a escrever sobre a capital na década de 1970 e ficou conhecido pelas antologias que organizou sobre planejamento urbano, moradia, injustiça social, desigualdade e ambientalismo no DF. Esses livros incluem contribuições de sociólogos, geógrafos e antropólogos. Seu trabalho, resultado de mais de quatro décadas de pesquisa sobre a cidade, abrange uma ampla variedade de temas, períodos e regiões administrativas. Em suas reflexões, a preocupação com o tratamento injusto dado aos moradores das classes populares do DF é constante: ele elaborou estudos sobre os longos trajetos diários desses trabalhadores, o escasso acesso que eles têm aos serviços urbanos e a falta de empregos perto de suas casas, entre outras dificuldades. Paviani lamenta que “em Brasília, mais do que em qualquer outra cidade brasileira, a posição socioeconômica e o status são mensurados pela localização residencial do indivíduo na cidade” (“A construção injusta”, A conquista 157). Ele repete a piada de que “o brasiliense é um ser possuidor de cabeça, tronco e rodas”, aludindo-se ao fato de que a configuração dispersa de Brasília dificulta a locomoção a pé de seus habitantes (“Demandas sociais” 88).

A cidade modernista (publicado originalmente em inglês em 1989), do antropólogo James Holston, o mais respeitado texto acadêmico sobre Brasília, apresenta a capital como uma catástrofe social. Porém, desde que o livro foi publicado, os estudiosos que recorrem a ele não reconhecem o quanto a cidade mudou nas últimas três décadas. Grande parte das análises de Brasília escritas em inglês mais repetem as opiniões de Holston do que apresentam novos argumentos.[2] A cidade modernista destaca como o projeto do Plano Piloto objetivava tornar a sociedade mais igualitária, mas acabou exacerbando as divisões sociais. O plano mestre não anteviu que os desejos e os costumes dos brasileiros o transformariam. Além disso, funcionários do governo não previram que os trabalhadores da construção que ergueram Brasília quisessem permanecer lá após a inauguração da capital. A partir de excelentes comparações com layouts de cidades pré-industriais e detalhadas análises do plano inicial de Costa e de seus vínculos com o Congrès International d’Architecture Moderne (CIAM), Holston captura a natureza mítica do plano da cidade, os desafios de sua configuração espraiada “sem ruas” e as condições opressivas sofridas pelos trabalhadores de baixa renda. Em 1989, Holston postulou que Brasília “reduziu o uso do espaço urbano [por seus residentes] a um transporte coletivo que vai da casa ao trabalho”, um argumento certeiro para a época (The Modernist 24).

No entanto, Holston manteve essa mesma linha de raciocínio em 2008, quando sua afirmação já não parecia mais verdadeira: “as elites do Plano Piloto de Brasília e dos enclaves murados de São Paulo não mais se veem como partícipes de uma vida social urbana pública ao ar livre, enquanto as classes populares se veem marginalizadas, se não criminalizadas” (Insurgent 282). Ele constrói uma narrativa de declínio segundo a qual as elites de Brasília já participaram da vida nas ruas, mas não o fazem mais. Porém, o contrário é verdadeiro. O DF nunca terá a espontânea e agitada vida das cidades brasileiras mais tradicionais, mas o uso de seu espaço público para atividades culturais aumentou significativamente no século XXI: suas ruas são palcos para shows ao ar livre, feiras de artesanato[3], peças de teatro, batalhas de rap e slams de poesia. Holston argumenta que “o Plano Piloto é excepcional porque, na escala de uma cidade inteira, está livre do tipo de espaços públicos e multidões urbanas que exigem mediações da diferença social. Por isso, suas separações sociais parecem predominantemente rígidas e inegociáveis” (Insurgent 282). Embora esteja certo ao afirmar que o Plano Piloto não fornece densidade para a mediação constante da diferença social, o autor ignora os recentes esforços de ocupação do espaço público para fins culturais que têm revigorado o Plano Piloto.

Apesar de as reflexões de Holston parecerem reduzir o Plano Piloto a um lugar impossível de mudar, seu conceito de cidadania insurgente ajuda a entender como, no século XXI, indivíduos da periferia de Brasília têm usado as artes para contestar a marginalização. A cidadania insurgente refere-se a uma forma de cidadania contemporânea, pautada na luta pelo direito à cidade. Os protagonistas desse processo são os moradores das periferias urbanas, que desestabilizam o regime entrincheirado da cidadania, ao lutarem pelo registro legal de seus terrenos, construírem suas próprias casas e organizarem-se politicamente em suas comunidades. Ele argumenta que o Brasil vem promovendo, há séculos, uma cidadania diferenciada, já que a elite desfruta da proteção e dos benefícios da cidadania, enquanto as classes populares vivenciam a cidadania sob a forma de repressão, criminalização e falta de poder. Essa desigualdade reflete-se nas práticas espaciais e pode ser observada em processos de privatização, abandono, policiamento e restrição de expressão cultural no espaço público (Holston, Insurgent 19). Movimentos insurgentes nas periferias das cidades brasileiras demandam acesso igualitário à esfera pública e utilizam o discurso de reivindicações de direitos para legitimar práticas urbanas (Holston, Insurgent 21). Desse modo, os artistas das periferias do DF fazem parte de um projeto mais amplo de cidadania insurgente em todo o Brasil. Além disso, eles também desestabilizam o status quo com relação ao simbolismo de sua cidade.

A produção do simbolismo de Brasília

Brasília talvez seja o lugar mais simbólico do país. A capital é um emblema do poder nacional, da visão utópica modernista e também de um fracasso socioespacial. A escolha da região Centro-Oeste para a construção de Brasília foi estratégica, pois serviu a uma narrativa oficial que enaltecia a suposta coesão da nação. Materialmente, as regiões díspares do Brasil se conectariam no centro do país e, psicologicamente, a nova capital sintetizaria a união nacional (Bruand 353). A ideia de poder é transmitida pela escala monumental do Plano Piloto, com seus vastos campos, grandes estruturas futuristas e ordenadas fileiras de ministérios. As capitais federais – principalmente as planejadas – estão entre os lugares mais simbólicos dos países em todo o mundo, pois sua dimensão emblemática é inclusiva e pode ser compreendida por um vasto grupo: todos os membros da nação (Monnet 4). Essas capitais se enquadram no que Lefebvre chama de espaços “produzidos especialmente para serem lidos” e sua monumentalidade “incorpora e impõe uma mensagem claramente inteligível” (The Production 143).

Para Renato Cordeiro Gomes, qualquer estudo sobre o simbolismo de uma cidade deve levar em consideração os monumentos urbanos, que representam a cidade e sua história (28). O Plano Piloto é lido como um monumento colossal. O esperançoso formato de avião (embora o próprio Costa o tenha visto como uma borboleta) é um exemplo icônico. A monumentalidade de Brasília comunica poder nacional, porém, a configuração desse poder é maleável. A arquitetura do Plano Piloto serviu tanto à democracia que a construíra quanto ao regime militar autoritário que o ocupou quatro anos depois. Holston aponta para essa maleabilidade quando afirma que a capital foi “planejada por um liberal de centro-esquerda, projetada por um comunista, construída por um regime desenvolvimentista e consolidada por uma ditadura burocrático-autoritária, cada qual reivindicando uma afinidade eletiva com a cidade” (The Modernist 40). Os espaços públicos do Plano Piloto também remetem à esfera pública de todo o país, o que ocorre, por exemplo, quando manifestantes ocupam as ruas do DF para chamar atenção a um problema nacional (Ruddick 140). Assim, quando os artistas fazem trabalhos no ou sobre o espaço público do Plano Piloto, suas obras funcionam não apenas em escala local, mas também em escala nacional, simbolizando preocupações sociais mais amplas (Smith 66).

Uma amostra dessa situação pode ser encontrada no vídeo de 2013 que a banda de funk lésbica Sapabonde fez para a música “Vai não se esconde” (2010), cuja letra aborda temas do funk carioca, como a atração sexual e a objetificação da mulher, a partir de uma linguagem explícita e informal. Uma paródia do gênero de origem (por criticar seus aspectos misóginos e heteronormativos), a música ficou conhecida fora de Brasília e seu título foi muito citado nas mídias sociais em conclamação à solidariedade lésbica. O videoclipe agregou valor de caráter espacial à música. Nele, as integrantes da banda se divertem no Complexo Cultural da República de Brasília. A praça, com as curvas brancas dos prédios de Niemeyer como pano de fundo, é imediatamente reconhecida como o Plano Piloto. O vídeo pode ser entendido como um convite para que mulheres lésbicas de todo o país não se escondam (como o título da música indica), mas, ao contrário, ocupem os espaços públicos, expressando sua sexualidade sem receios. Por muito tempo, o Brasil foi governado apenas por homens cristãos e heterossexuais, que protegeram os interesses desses grupos. Ao repensar o Plano Piloto como um espaço lúdico de intimidade entre pessoas do mesmo sexo, o videoclipe problematiza tal história. Esse material audiovisual foi gravado pelo grupo em 2013, ano de legalização do casamento homoafetivo no Brasil, mas seu foco não está nas transformações legais e sim na criação de um espaço simbólico de prazer lésbico que rompe com visões consolidadas sobre o Plano Piloto e, por extensão, sobre o Brasil. Desse modo, as artistas da Sapabonde afirmam o direito de ocupar espaços onde sua existência tem sido continuamente regulada, vigiada e ameaçada.

Imagens do Plano Piloto – como um local que se abre ou se fecha para certos grupos – são encontradas em todas as obras de arte e manifestações culturais analisadas neste livro. O Plano Piloto é o que torna Brasília drasticamente diferente de qualquer outra cidade brasileira. Devido à sua designação como Patrimônio Mundial da UNESCO, o design original do Plano Piloto permanece praticamente intacto. Ao contrário da maioria das áreas urbanas, esta não pode ser destruída e reconstruída de acordo com as demandas do mercado. Embora apenas 7 por cento dos moradores da capital residam no Plano Piloto, muitos deles concebem sua identidade em associação àquele centro de poder político, financeiro e cultural. Dependendo da posição do espectador em relação ao Plano Piloto, esse centro pode representar abertura (liberdade, inovação, prosperidade) ou fechamento (exclusão, elitismo, hostilidade).

Além de simbolizar a nação, Brasília representou um ideal modernista utópico, que envolvia tanto uma estética específica quanto o desejo de transformar a sociedade através de seu design. No final da década de 1950, os edifícios de Niemeyer em Brasília, construídos em atmosfera de bonança e otimismo econômico, expressavam uma elegância sofisticada e minimalista. Naquele momento havia uma convicção de que o Brasil se destacaria na arena global. A bossa nova e a poesia concreta estavam ganhando força no país e ascendendo à popularidade internacional que alcançariam na década de 1960 (Mendonça Teles 400; Solt 7; Aguilar 365; Castro 240; McCann 1-5). O formato de avião de Brasília destacou-se como o maior poema concreto do Brasil, expressando progresso (Beal, Brazil under Construction 15-16).

Brasília chamou atenção internacional. De todos os edifícios de Niemeyer, o Palácio Itamaraty (o Ministério das Relações Exteriores) – uma caixa de vidro envolta por graciosos arcos de concreto que aparentemente flutuam acima de uma piscina refletora – foi o mais aclamado. Os artistas envolvidos na construção da nova capital integraram-se ao processo de criação de espaço simbólico e de elaboração de uma nova estética para o Brasil. Como resultado, seus trabalhos foram sancionados e totalmente subsidiados pelo governo. A elegância foi simbolizada pelos jardins de Burle Marx, pelos painéis de azulejo de Athos Bulcão e pela fluidez e aparente flutuabilidade da Suprema Corte, do Ministério das Relações Exteriores e do Palácio da Alvorada de Niemeyer, edifícios federais monumentais que expandem os limites do material de trabalho favorito desse arquiteto: o concreto armado.

A música de 2004 do rapper GOG “Eu e Lenine (a ponte)” critica o simbolismo de elegância associado aos monumentos de Brasília, especificamente o mais novo deles, a Ponte JK, projetada por Alexandre Chan e inaugurada em 2002. A música destaca que as representações convencionais da Ponte JK desviam a atenção do público da corrupção e dos gastos excessivos envolvidos naquele projeto. Obras públicas menos glamorosas – como a ampliação do metrô –, que beneficiariam mais pessoas, ficaram inacabadas, enquanto a ponte já ilustra selos postais e estampa materiais turísticos de Brasília (Beal; “The Art” 45-47).

As ambições utópicas do Modernismo exigiam a criação de projetos mais igualitários para as cidades. Esse ideal é evidente no planejamento das superquadras de Costa, às quais ele se referia como “espaço residencial aberto ao público” (“Brasília Revisitada” 331).[4] Costa concebeu as áreas residenciais para torná-las mais igualitárias e coletivas. Ele queria que pessoas de todas as classes sociais vivessem nos mesmos prédios, para que as hierarquias estabelecidas no trabalho se dissipassem, já que o filho de um zelador e o filho de um juiz brincariam juntos nas áreas comuns. No entanto, devido à falta de regulamentos para habitação de renda mista, as superquadras quase imediatamente se tornaram residências exclusivas. Ainda assim, esses aglomerados de apartamentos de classe média alta não são cercados por muros e por seguranças privados, aparentando ser um lugar de interação entre diferentes classes sociais. Essa aparência contrasta com os muros ameaçadores de muitas cidades brasileiras, que se tornaram um símbolo de segregação social, bloqueando favelas da visão de quem não mora lá ou fortalecendo enclaves de elite.[5] Brasilienses ricos – acostumados a divisões de classe bem demarcadas, casas que exibem ostensivamente seu status social e amplo espaço doméstico – rejeitaram os apartamentos homogêneos das superquadras (Vanderbeek e Irazábal 50). Ao contrário, eles optaram por morar em casas independentes, um pouco além da área original da cidade. Apesar das tentativas de Costa de criar uma ordem social mais igualitária, Brasília – ao se expandir cinco vezes além da população para a qual foi projetada – reproduziu as divisões de classe presentes na maioria das cidades brasileiras.

O significado do simbolismo de Brasília fica evidente quando comparado ao Rio de Janeiro e a São Paulo. Os símbolos dominantes do Rio de Janeiro são os ícones naturais (Corcovado, Pão de Açúcar, Praia de Copacabana), que expressam beleza e descontração, e a Estátua do Cristo Redentor (um presente da França), que revela uma identidade cristã coletiva. O Rio de Janeiro – mesmo quando era a capital do país – não conseguiu elevar seus edifícios oficiais ao nível de símbolos populares da cidade. Na verdade, a cidade sempre foi mais conhecida por sua extrema beleza natural do que pelos grandes feitos dos cariocas, o que os deixa um pouco ressentidos. Com a fundação de Brasília – celebrada por seus palácios e igrejas – uma capital brasileira finalmente foi elogiada por algo que os brasileiros fizeram com as próprias mãos: o ambiente construído (Beal Brazil under 162). Embora São Paulo simbolize a economia do país (como seu centro financeiro), existem poucos lugares físicos (exceto, de maneira mais geral, o arranha-céu como emblema de poder econômico) que representam a cidade com a mesma eficácia que o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro e os edifícios de Niemeyer em Brasília (Monnet 5). Segundo Monnet, como São Paulo nunca foi a capital do país, seu governo não investiu na deliberada “monumentalização” do espaço público (4-5).

Devido à pouca idade e aos atributos singulares, Brasília constitui-se como enigma interpretativo para muitas teorias consolidadas sobre as cidades e sua representação na arte. Georg Simmel defendeu em 1900 que as metrópoles afetam a vida mental de seus residentes de modo determinante. Ele refletiu sobre as contradições da vida urbana, que oferece maior liberdade individual e espiritual (em comparação a “pequenez e preconceitos que atrofiam o homem da cidade pequena”), mas também leva à inevitável solidão de se perder na multidão indiferente (20). Da mesma forma, Baudelaire retratou o apaixonado flaneur que se energizava com imagens e sons da movimentada rua, onde ele se sentia em casa. Brasília é uma cidade muito dispersa para ter sua imagem associada à de uma rua agitada e anônima (5-12, 26-29). Julio Ramos afirma que a cidade “cristaliza a problemática do irrepresentável”, uma constatação verdadeira muito mais em relação a São Paulo do que a Brasília, que existia em mapas e planos como representação antes mesmo de existir na realidade (121). Certeau distingue entre duas perspectivas urbanas, uma de cima para baixo e outra das ruas. Embora tenda a privilegiar a perspectiva das ruas (individualizada, ativa e movimentada), a arte urbana de Brasília costuma aumentar e diminuir o ângulo de visão, brincando tanto com os símbolos icônicos do Plano Piloto quanto com as experiências pessoais e subjetivas dos moradores da capital.[6] Ramos e Certeau escreveram sobre como o ato de caminhar ordena o caos da cidade, mas na capital, caminhar não é, com frequência, uma opção (Ramos 126; Certeau 96-100). Seria difícil imaginar no DF um João do Rio, pioneiro no Brasil da escrita (de reportagens e contos) inspirada na investigação sobre intrigas, desejos, crimes e pobreza no Rio de Janeiro. Brasília também não se expandiu de uma pequena cidade para uma megalópole industrial, processo que inspirou grande parte da arte modernista da década de 1920 sobre São Paulo. Artistas como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e Oswald de Andrade abordam o sublime (excessivo, vertiginoso) de São Paulo, ao representarem, em suas obras, a velocidade e a profundidade da transformação industrial. Artistas tão diversos quanto Machado de Assis e Caetano Veloso brincaram com o significado dos nomes de ruas, mas os nomes das ruas de Brasília – como W3 – evocam conotações mais matemáticas e impessoais.

Existem, no entanto, outras formas artísticas de conceber a cidade que parecem mais verdadeiras para o contexto de Brasília. Os escritores do DF tendem à tradição literária e cinematográfica de imaginar a destruição total da cidade tanto para elevar seu status quanto para abordar problemas sociais e ambientais. Cenários apocalípticos podem ser encontrados nas representações que Almino, Nicolas Behr, Alexandre Ribondi e Adirley Queirós fizeram da capital. Essa destruição ficcional eleva Brasília à categoria de cidade artística (não mais estritamente histórica, ela entra para o rol de cidades míticas como Babilônia ou Nínive), apresentando-a como um lugar digno de ter registrado seu desaparecimento imaginado (Casanova 27). Segundo Raymond Williams e Franco Moretti, em romances, a cidade é uma rede para negociações sociais (Williams 155; Moretti 122). Os exemplos brasileiros mais clássicos dessa afirmação são os romances de Machado de Assis, nos quais a imagem do Rio de Janeiro – sofisticadamente elaborada com nomes de ruas e referências a edifícios específicos – serve para evocar as relações sociais entre as personagens. Quando os romances de Brasília, assim como outras obras de arte, representam a cidade, eles sugerem o oposto: que as negociações sociais raramente acontecem em espaços públicos. Essa tendência dialoga com o argumento de Holston de que a rua, no Plano Piloto, não consiste em uma “sala pública” onde a convivência social ocorre com frequência (Insurgent 282). No Quinteto de Brasília, de Almino, as personagens ricas evitam contato com residentes fora de seu círculo social. A socialização dessas personagens geralmente ocorre em casas majestosas ou em bares e parques do Plano Piloto, onde elas encontram-se com outros membros da elite. São, no entanto, os artistas da periferia que retratam com mais frequência o convívio social no DF. De modo geral, a arte brasiliense revela como a classe média e a elite usam livremente o espaço e os serviços públicos, ao passo que as classes populares precisam a todo momento lutar por esse direito. Além disso, a arte sobre cidades não objetiva fazer uma cópia fiel das mesmas. Ao contrário, a produção artística desestabiliza a percepção sobre o ambiente urbano, provocando emoções e experiências particulares que moldam a imagem de um indivíduo sobre sua cidade.

São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Belo Horizonte compartilham o prestígio de serem as cidades artísticas brasileiras, mas os artistas e produtores culturais de Brasília (editores, organizadores de evento e assim por diante) trabalham para elevar a capital a essa categorização (Dalcastagnè Literatura brasileira contemporânea 161). A atriz e poeta Marina Mara notou, em abril de 2019, que o DF está em uma “fase de afirmação cultural. Vivenciamos uma cultura que tem a diversidade como principal característica” (cit. em Rocha Lima 13). Em 2018, um grupo de escritoras mulheres de Brasília lançou o coletivo editorial Maria Cobogó pela convicção de que a cidade tem autoras excepcionais desconhecidas para o resto do Brasil e de que as premiações literárias estão concentradas em São Paulo e no Rio de Janeiro (Ana Maria Lopes cit. em L. Carvalho). Daniel Morais, da dupla de grafite Toys e Omik, comenta: “estou um pouco cansado de ouvir as pessoas falarem do eixo Rio-São Paulo”, chamando atenção para a riqueza da excelente arte local (cit. em Gentil). Mesmo que o resto do país e a comunidade internacional ainda não reconheçam Brasília como uma vibrante cidade das artes, ela se percebe como tal e essa convicção vem transformando a imagem da cidade.

O direito criativo à cidade

O direito à cidade é um grito de guerra cunhado por Lefebvre em 1968 no ensaio Le droit à la ville. No final do século XX, o termo se tornou influente, referindo-se ao direito que todos os habitantes urbanos têm de viver com dignidade em cidades justas e inclusivas. O direito à cidade é um ideal por uma cidade mais igualitária que contraria “as relações de poder que levam à exploração e à exclusão” (Marcuse 7). O termo tem sido usado por pesquisadores e ativistas que reivindicam uma melhor experiência urbana para cidadãos desprovidos de direito. A teorização inicial de Lefebvre focalizou o proletariado, mas reflexões contemporâneas (e suas aplicações práticas, pelas alianças pelo direito à cidade, em âmbito nacional e local) ampliaram a concepção de direito à cidade para englobar pessoas em situação de rua, mulheres, refugiados, comunidade LGBTI+ e assim por diante (Mitchell; Whitzman et al.; Millington; Lyytinen). Porém, o termo é tão abrangente que corre o risco de cair num vazio de significado. Combinando aspectos das teorizações de Lefebvre sobre o direito à cidade e sobre a oeuvre, proponho o conceito de direito criativo à cidade para explicar como a arte contemporânea de Brasília está comprometida com a melhoria da cidade. Após comentários sobre as duas teorizações de Lefebvre, esta seção apresenta elaborações sobre o direito criativo à cidade.

O direito à cidade é frequentemente reivindicado em resposta a estratégias de planejamento capitalista que ameaçam a integridade de bairros, aumentam a especulação imobiliária, privatizam o espaço público e forçam os moradores desprivilegiados a se afastarem de áreas valorizadas. Lefebvre descreve o direito à cidade como o direito dos habitantes a uma experiência urbana moldada mais por atividades satisfatórias (vida social, eventos culturais e lazer) do que por aspectos que ele considera desagradáveis (mercantilização, longos trajetos diários e segregação). Sua preocupação é com os moradores que usam ativamente os espaços públicos, em oposição a uma aristocracia urbana que passa a maior parte do tempo em espaços privados. Ele sustenta que a sociedade urbana deveria ser entendida como uma força criativa, não como uma desumanizada engrenagem do sistema capitalista (“The Right” 149). Seu ensaio defende a necessidade de se reimaginar a cidade, usando tanto a arte quanto a ciência, para melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, o que poderia ser feito através de estratégias verticalizadas ou de base. Do ponto de vista da crítica cultural, a proposta mais convincente do ensaio é a de que essa melhora na qualidade de vida implica a transformação não apenas da cidade material, mas também da cidade simbólica (a oeuvre). O autor defende que os artistas são responsáveis por criar referências culturais através das quais os cidadãos possam identificar a urbe que habitam.

As teorias sobre o direito à cidade (Lefebvre, Harvey e Mitchell) reconhecem que cidadãos desprivilegiados lutam contra os interesses de iniciativas privadas e de residentes da elite. Em ensaio homônimo de 2008, Harvey, enfocando a economia e a necessidade de uma forma mais ética de capitalismo global, postula que as massas em todo o mundo foram excluídas de sua parcela legítima de riqueza, propriedade e moradia nas cidades porque elas não controlam o excedente de produção e uso (23, 32, 35-38, 40). Evocando Robert Park, Harvey afirma que “o direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização” (Harvey “O direito”). Esse foco no envolvimento dos cidadãos nos processos de urbanização interessa ao contexto no Brasil, onde, em 2005, apenas 64 por cento dos lares nas cidades do país tinham água encanada (Dowall 11), e, em 2017, 86 por cento da população nacional era urbana (United Nations Population Division).

A teoria do direito à cidade influenciou a política brasileira. Após mais de uma década de debate no Congresso brasileiro, o direito à cidade de Lefebvre contribuiu, em 2001, para a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257), que já foi atualizado diversas vezes.[7] A lei exigiu que cidades com mais de 20 mil habitantes (um total de 1.644 municípios no país, que compreendem aproximadamente 30 por cento das cidades brasileiras) criassem um plano mestre inclusivo dentro de cinco anos (Caldeira e Holston 2005). Até o presente momento, esses planos mestres se concentraram principalmente no direito à moradia das classes populares, na proteção contra a especulação imobiliária e na sustentabilidade ambiental.

Por um lado, o Estatuto da Cidade foi uma poderosa ferramenta de transformação no modo com que o Brasil executa o planejamento urbano, já que dá ênfase à justiça social e à democracia participativa. Essa mudança rompe com “modelos anteriores de cidade, autoritários e desenvolvimentistas, que supunham a prioridade da modernização liderada por uma elite iluminada” (Caldeira e Holston 2004). Por outro lado, o Estatuto da Cidade tem sido, muitas vezes, incapaz de competir com iniciativas privadas no processo de tomada de decisões sobre o uso do espaço público, sem mencionar sua incapacidade de desencadear discussões sobre os alicerces da propriedade privada (A. F. A. Carlos). Na prática, as visões opostas do planejamento urbano baseado nos direitos e da política urbana neoliberal capitalista impediram a implementação dos planos mestres elaborados (Rolnik 59-60). Embora não seja uma panaceia, o Estatuto da Cidade tem incentivado os cidadãos das classes populares a protagonizarem mudanças que permitam que os moradores vivam com mais dignidade (Caldeira e Holston 2013).

O Estatuto da Cidade, com sucesso desigual entre as cidades brasileiras, teve foco quase exclusivo em moradia e transporte, o que significou que a atenção que Lefebvre concede à oeuvre foi ignorada. Lefebvre define a oeuvre como a necessidade compartilhada que as pessoas têm por atividades criativas, encontros humanos e diversão. A oeuvre sintetiza a preocupação do autor com aspectos do cotidiano urbano que transcendem atividades relacionadas à mera sobrevivência. Ele argumenta que a identificação dos moradores com suas cidades deveria ser determinada por esses elementos e não apenas por consumo, trabalho e transporte (“The Right” 147). Afirmando a importância de criar utopias, Lefebvre reflete sobre os tipos de lugares que levariam à felicidade, defendendo a oeuvre como necessária para que esse estado de bem-estar seja alcançado (“The Right” 151). Ele acredita que a sociedade é uma oeuvre, que a cidade é uma oeuvre e que as pessoas constroem uma oeuvre (“The Right” 149; “Industrialization” 66). Na maioria das vezes, porém, o autor emprega o termo para distinguir entre a cidade que é definida por economia e comércio e a cidade que é definida por beleza, atividades humanas e criatividade (incluindo edifícios e monumentos notáveis) (“Industrialization” 65-67; “Philosophy” 87; “The Specificity” 101; “On Urban Form” 138; “The Right” 149; “Perspective” 168; “The Realization” 175; “Theses” 180). Embora a concepção de oeuvre seja ainda pouco utilizada, ela é de extrema importância para a compreensão da arte contemporânea de Brasília. 

Para que a igualdade seja promovida em uma cidade, é necessário haver transformações legais, infraestruturais e econômicas (moradias mais acessíveis, melhor transporte público, salário-mínimo mais alto e assim por diante). Mas, além disso, o processo também envolve manifestações artísticas, como enfatizo com o conceito de direito criativo à cidade. Por meio dessa expressão, busco solucionar algumas contradições dos termos o direito à cidade e oeuvre, criando um conceito mais específico para minha pesquisa. O direito criativo à cidade refere-se à capacidade dos cidadãos de 1) fazer com que o espaço público seja um local onde eles possam se reunir para apreciar e fazer arte e 2) representar sua cidade publicamente através das artes.

Relacionada ao primeiro ponto, a Lei Distrital 4.821, redigida pelo deputado Wasny de Roure, autorizou oficialmente eventos culturais de rua em 2012. Essa lei reconhece a importância de encontros lúdicos e atividades artísticas do DF. Estipulando algumas restrições (os eventos devem ser gratuitos e não bloquear entradas residenciais e comerciais, por exemplo), a lei estabelece a legalidade de eventos culturais e artísticos em ruas e praças públicas, observando que eles não podem ser banidos ou multados.[8] Certos produtores culturais, como Nina Puglia (que organizou 23 edições das Festas de Ocupação Dinâmica de Área Pública no DF, em 2014 e 2015), consideram que a lei estimulou muito as atividades culturais (cit. em Rezende, “Ocupações” 12). O aumento desses eventos de rua desde 2012 marca aquele ano como um divisor de águas para a cena artística da capital. Pedro Cavalcante, músico e organizador do BrazOcupa, movimento que promove shows de rock e reggae em uma praça pública da região administrativa de Brazlândia, também observou, em 2018, que a lei facilita a produção de eventos de rua: “por meio da Lei n0 4.821, conseguimos ocupar a Praça do Artesão sem uma burocracia maior” (cit. em Grigori). Isso não quer dizer que a lei seja sempre aplicada. A banda e agitadora cultural Confronto Sound System reclamou em sua página do Facebook, em 2018, que durante aquele Carnaval blocos estavam sendo criminalizados por ocupar a rua e a Lei 4.821 estava sendo violada. Mesmo reconhecendo os limites da lei, a arte contemporânea de Brasília usa o discurso de reivindicação de direitos para defender ocupações de rua e acesso a ofertas culturais de baixo custo. Por que o direito criativo à cidade se enraizou no DF com tanta força no século XXI? A resposta está na história da desigualdade social de Brasília e no igualitarismo fracassado (discutido no capítulo seguinte), um fracasso que a arte busca reparar.

Os artistas contemporâneos do DF são habilidosos tanto na contestação do tradicional simbolismo da cidade quanto na produção de novos lugares simbólicos. Um lugar simbólico refere-se a um local tangível (aqui o todo ou uma parte de Brasília) que transmite emoções e valores intangíveis (o trabalho de um símbolo) os quais influenciam a identidade coletiva de um grupo (Monnet 1-2, 8, 10). Os moradores possuem, como sustenta o planejador urbano Kevin Lynch, um “mapa mental” ou uma “imagem mental” de sua cidade, que evidencia o que eles valorizam naquele local. Em seu estudo sobre a maneira com que os moradores percebem três cidades dos EUA, Lynch afirma que quando um ambiente urbano não possui símbolos distintos e legíveis, uma pessoa pode se perder rapidamente, o que diminui sua sensação de segurança e pertencimento (4, 125). Para o geógrafo urbano Jérôme Monnet, “a dimensão simbólica do espaço não deve ser desconsiderada, pois é o que confere coerência interna ao espaço em que cada pessoa vive” (2). Os artistas que produzem os lugares simbólicos do DF estão interessados em como Brasília deveria ser interpretada e em como ela influencia os mapas mentais de variados grupos. Os tipos de lugares simbólicos que esses artistas (assim como editores, coordenadores de eventos e diretores de centros culturais) criam são diversificados, mas todos concebem Brasília como uma vibrante cidade das artes.

Mesmo as produções artísticas que não ocorrem em espaços públicos também afirmam o direito criativo à cidade. Antes do século XXI, o mundo da arte de Brasília era dominado por homens ricos, brancos e heterossexuais que viviam no Plano Piloto e, de modo não surpreendente, suas representações da cidade refletiam essa realidade.[9] Ao fazer arte sobre a capital, artistas contemporâneos de grupos não hegemônicos se tornam os novos produtores do significado da cidade, desafiando assim o status quo. Por exemplo, a canção de 2009 “Senzala (a feira da Ceilândia)”, da cantora negra e lésbica Ellen Oléria, sugere de modo perspicaz como raça, gênero, classe e sexualidade influenciam a liberdade que as pessoas têm nos espaços públicos do DF. A música critica a cultura do consumo por criar ideais excludentes de beleza, feminilidade, “boa” música e “boa” aparência. Esses ideais determinam quem se sente e quem não se sente bem-vindo nas áreas comerciais do DF (Beal, “Making Space” 61-64). A música apresenta Brasília – particularmente suas feiras e shoppings – como um local disputado por grupos não hegemônicos, afirmando seu direito de existir na cidade sem discriminação. O direito criativo à cidade aparece com mais ênfase entre os grupos marginalizados cujo acesso à arte tem sido negado por não terem tempo e dinheiro extra, por viverem longe dos locais de eventos culturais ou por não terem tido oportunidades de apresentar sua própria arte. Cada vez mais, no século XXI, diversos artistas exigem maior acessibilidade à arte em Brasília.

Os nomes de Brasília

Uma das dificuldades de se escrever sobre Brasília é descobrir como nomeá-la. A capital foi planejada para uma população de 500 mil habitantes, mas cresceu rapidamente para além dessa projeção, ultrapassando seus limites geográficos iniciais. Como resultado, o significado de dois termos aparentemente simples – Brasília e cidade – varia de acordo com o contexto. Este livro geralmente emprega Brasília, cidade, capital e DF como sinônimos, mas os significados alternativos dos dois primeiros vocábulos devem ser observados.

O termo mais confuso é Brasília. O nome pode ser usado para se referir a duas áreas diferentes: uma delas sendo uma pequena subseção da outra. Brasília pode remeter à Região Administrativa 1 (RA 1), a primeira região administrativa do DF, que inclui, grosso modo, o Plano Piloto e, a noroeste, a maior parte do vasto Parque Nacional de Brasília (Figs. 1.2 e 1.3). Essa área tem uma população de cerca de 215 mil habitantes. No entanto, a palavra Brasília também pode se referir a todo o DF, que possui uma população 13 vezes superior ao tamanho da RA 1 (Fig. 1.3). O DF é uma das 27 unidades federativas do Brasil (as outras 26 são estados), com uma população de três milhões de habitantes.

Figura 1.2 O Plano Piloto. Mapa por Avian Ciganko-Ford, da U-Spatial (Universidade de Minnesota)

Figura 1.3 As regiões administrativas do Distrito Federal. Mapa por Avian Ciganko-Ford, da U-Spatial (Universidade de Minnesota)

O DF é dividido em 33 regiões administrativas, 12 das quais têm populações acima de 100 mil habitantes, o tamanho de uma pequena cidade. A jornalista Conceição Freitas observa que, como regiões administrativas é uma expressão desagradável, muitos moradores do DF recorrem a seu nome original e mais poético: cidades satélites (“É cidade” 93-94). Alguns apenas as chamam de cidades. No entanto, a palavra cidade também é usada para se referir a todo o DF. Por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classificou Brasília (referindo-se a todo o DF) como a terceira cidade mais populosa do país em 2019. O Instituto observou que, no Brasil, uma cidade é a sede de um município e que o DF, apesar de não possuir municípios, pode ser considerado como uma cidade por causa de seus aspectos urbanos. Para muitos artistas, sua “cidade” (a lugar a que se referem como tal e com o qual se identificam) é sua região administrativa.

Sem uma arrecadação de impostos própria, as regiões administrativas têm pouco poder político. O DF coleta impostos estaduais e municipais e controla serviços públicos como o corpo de bombeiros, a polícia civil e militar, as escolas, os hospitais, muitos dos quais também recebem apoio federal. Apesar disso, as grandes regiões administrativas têm um enorme valor emocional para seus moradores. Por exemplo, em 21 de maio de 2016, Nicolas Behr e eu encontramos o professor e historiador de Ceilândia Manoel Jevan na Casa da Memória Viva de Ceilândia, um museu comunitário (fundado em 1993) em sua própria casa. Ele tinha convidado também o repentista ceilandense Donzílio Luis de Oliveira, então com 82 anos, e o rapper ceilandense Wisley Dias, então com 23 anos.[10] Jevan pediu aos dois artistas que fizessem um duelo improvisado. Ele deu aos visitantes o mesmo mote, que era “Ceilândia nasceu da sigla Cei”. O mote referia-se a como, em 1971, a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) obrigou dezenas de milhares de pessoas que moravam em favelas nos arredores do Plano Piloto a se mudarem para o empreendimento habitacional Ceilândia, batizado em homenagem à Campanha. O desafio intergeracional de Jevan foi uma performance – orquestrada para não ceilandenses – que apresentou Ceilândia como um vibrante centro cultural. A escolha do mote elevou Ceilândia ao status de musa inspiradora. Oliveira mostrou as habilidades de um repentista experiente, seguindo os costumes métricos e rítmicos do repente, enquanto improvisava sobre uma cidade que “na nossa visão brilha”.[11] O rap freestyle de Dias referiu-se a Ceilândia como a “quebrada” onde ele é respeitado e onde o hip-hop promove a dignidade de jovens da periferia como ele. A dupla de artistas convidada por Jevan também enfatizou a afinidade através das gerações, criando uma genealogia cultural de Ceilândia, desde o repente dos mais velhos ao rap dos jovens. Esta apresentação ilustra como a identidade de lugar [12] geralmente ocorre na escala da região administrativa. Artistas e produtores culturais criam imagens alternativas das cidades satélites, colocando em xeque sua associação estereotipada com a violência e a pobreza. Assim, os artistas do DF, ao representarem sua cidade, imaginam formas alternativas de entender e transformar a capital. O palco mais comum para essas atividades é o espaço público.

Ocupando o espaço público

Em uma terça-feira em dezembro de 2016, participei do Sarau Vá, um sarau semanal, em um bar onde os clientes se amontoavam na Praça da Bíblia, em Ceilândia.[13] Um homem e uma mulher montados em seus cavalos galopavam pela praça, disputando um tipo de competição conhecida como corrida de cancha reta. Perto da enorme estátua de uma Bíblia aberta, estava ocorrendo um evento semanal de rap, a Batalha da Bíblia, formada por um grupo em torno dos MCs. Enquanto isso, no sarau, os organizadores pediam a atenção do público, repetindo o tradicional mantra de que “o silêncio é uma prece”. Eles lembravam a todos os presentes – incluindo aqueles que jogavam sinuca, bebiam cerveja e que não estavam lá pela poesia – que os poetas passaram a semana toda memorizando seus poemas, deixaram o trabalho mais cedo para chegar a tempo e fizeram outros sacrifícios para estar ali. Tudo o que eles pediam era nosso silêncio durante suas apresentações. Os poetas recitavam principalmente versos originais memorizados, contando experiências com racismo, sexismo, transporte público precário e relações familiares. Durante suas declamações, eles eram interrompidos por um frequentador do bar embriagado, que continuava a pegar o microfone, e pelo barulho dos jogadores de sinuca. Vários cidadãos estavam afirmando seu direito de ocupar um lugar em nome da diversão ou da arte e suas preferências não eram consensuais. Isso é típico dos contextos não tradicionais em que grande parte da arte contemporânea em Brasília é realizada. Embora o centro da capital possua amplos espaços públicos, na periferia da cidade eles são escassos e tendem a ser usados simultaneamente com múltiplas finalidades. Todos os grupos mencionados estavam atribuindo um sentido para a Praça da Bíblia. Na medida em que os artistas se apresentam em áreas disponíveis, geograficamente convenientes e gratuitas, o uso que fazem desses espaços públicos inevitavelmente revela conflitos e desejos concorrentes.

Lefebvre, com a publicação de La production de l'espace (1974), afirmou que as pessoas utilizam o espaço com objetivos práticos e ideológicos. Para o autor, no contexto capitalista, o espaço é o produto das relações sociais (83). Desse modo, Lefebvre criticou concepções anteriores de espaço como algo estático, neutro ou natural, abrindo caminho para a chamada virada espacial nas humanidades e nas ciências sociais. Em trabalho influenciado pelo filósofo francês, Massey defende a necessidade de compreender a espacialidade material como produto de heterogeneidade e de interações, atentando-se às trajetórias que se cruzam em um determinado local e insistindo no fluxo contínuo do espaço (94). Seus argumentos destacam a importância de se analisar transgressões, movimentos, interações e confrontos que redefinem continuamente o limite – que nunca é fixo e determinado – entre periferia e centro. Em Brasília, por exemplo, como as linhas de transporte público se encontram em um terminal central no Plano Piloto, esse espaço é o palco, desde a década de 1980, das mais importantes performances de break e das batalhas de rap, embora essas sejam formas de arte periféricas por excelência (Sowto cit. em Rezende, “Street dance” 10).

Ao analisar como os artistas criam uma imagem de sua cidade, estou estudando um lugar. Em trabalhos acadêmicos associados a cultura e questões espaciais, o termo lugar geralmente remete à ocupação de um local, que envolve experiências vividas, interações humanas e emoções. Já a palavra espaço frequentemente se refere a uma concepção de localização mais objetiva, tal como as representações de um mapa ou os endereços postais.[14] Monnet postula que a produção de símbolos “também pode ser vista como um dos principais fatores que diferenciam o espaço de lugares específicos, uma vez que esse processo atribui a uma parte do espaço um nome, uma identidade, uma permanência, uma razão de existir e uma relação particular com certos valores e significados (2). Brasília foi considerada uma cidade sem alma e sem cultura em grande parte porque as imagens icônicas da capital (os esboços iniciais de Costa, as fotos aéreas do Plano Piloto e os cartões postais dos palácios monumentais) não incluem pessoas. Nessas imagens, Brasília é retratada como um espaço desabitado.

Este livro define espaços públicos como locais abertos e acessíveis às pessoas. Os exemplos mais prevalentes nas páginas que seguem são praças, parques, estações e transportes públicos, passagens subterrâneas, prédios governamentais e centros comunitários. Esses são lugares associados à democracia e à cidadania porque, teoricamente, estão abertos a todos e são bens coletivos. Para Mitchell, os espaços públicos são um componente crucial da cidadania porque “é aqui que os desejos e as necessidades de indivíduos e grupos podem ser vistos” (33). Pensar no espaço público como qualquer local onde as pessoas são vistas (onde a performance de sua identidade está em exibição pública) implica ampliar essa definição para incluir restaurantes, bares, lojas e outros locais privados abertos ao público. Muitas vezes, essa distinção é confusa, como o bar em Ceilândia, mencionado anteriormente, cuja clientela acaba ocupando também a praça pública, ou os muitos restaurantes do Plano Piloto que possuem mesas ao ar livre em áreas públicas. Apesar de aparentemente estarem abertos a todos, muitos desses lugares são menos acolhedores para certos subgrupos (Valentine 145). Tainá Caminho, uma atriz trans da Cidade Estrutural – uma das áreas mais empobrecidas do DF, que foi construída ao lado de um depósito de lixo por pessoas que coletavam materiais recicláveis antes de seu fechamento, em 2018 – contou que foi apedrejada em espaços públicos tanto na Estrutural quanto no Plano Piloto (cit. em Rezende, “A felicidade” 38). Tais crimes de ódio foram incorporados à peça do diretor Alexandre Ribondi, Felicidade (2016), sobre identidades queer e pobreza na Estrutural, na qual Caminho atuou. Na peça, atores LGBTI+ das classes populares, que frequentemente não têm liberdade de mobilidade no espaço público, conscientizam os espectadores sobre a necessidade de maior inclusão socioespacial.

Certeau compara a maneira com que pessoas poderosas e cidadãos comuns influenciam os espaços públicos da cidade. Para o autor, a cidade criada por quem tem poder (planejadores urbanos, financiadores, políticos e outros) impõe ordem e disciplina e geralmente favorece as necessidades da elite e do consumo capitalista (xix, 117, 121). Ele celebra o modo com que intervenções de pessoas comuns (que criam atalhos, ressignificam lugares e quebram regras) transformam a cidade. Entretanto, o impacto dos argumentos de Certeau, como Massey demonstra, é diluído pelo uso de termos vagos, como “poder panóptico” – seria esse o capitalismo? Regimes autoritários? Algum governo? Qualquer decisão hierarquizada? Algo oficialmente autorizado? Mapas? – contra o qual as pessoas comuns lutam constantemente (Certeau 95; Massey 45-47). Nem tudo que é hierarquizado é ruim, e a transformação do espaço público geralmente envolve colaborações entre indivíduos e setores público e privado.

O ponto fraco de Certeau ao teorizar sobre a transformação do espaço público é a criação de um inimigo vago e abrangente. Bruce Robbins aponta outra armadilha em muitas análises do espaço público: a falsa suposição de um passado idílico, quando o espaço público costumava funcionar de forma mais democrática. Essa falácia leva a discursos de “retomada” ou “recuperação” do espaço público, como se sua história, que iria da utopia igualitária à privatização neoliberal, fosse linear. Robbins afirma que “o usufruto do que é público, nos dizem repetidas vezes, é uma qualidade que já tivemos, mas que agora perdemos, e que devemos recuperar de alguma forma” (viii). Mas ele pergunta: “para quem a cidade era mais pública do que agora?” (viii). Robbins critica a noção de uma esfera pública fantasma, que nunca existiu de fato, mas que muitas pessoas querem resgatar. Em Brasília, essa ideia é reproduzida por alguns integrantes da classe média alta, os quais acham que, entre as décadas de 1960 e 1980, os espaços públicos das superquadras eram mais utilizados do que são hoje. Com discurso nostálgico, eles concebem o passado em termos de comunhão igualitária perdida, quando, na verdade, as superquadras promoveram interação apenas entre vizinhos de colarinho branco. Em 1989, Holston lamentou a ausência da “vida pública ao ar livre na cidade” (The Modernist 163). Mais do que em outras cidades brasileiras, naquela época os eventos sociais e de lazer do DF ocorriam em residências e locais particulares.

Brasília tem a maior proporção de espaço público per capita dentre as grandes cidades do país, mas esse espaço é distribuído de modo tão desigual que acaba não sendo acessível a muitos moradores.[15] Há um nítido contraste entre os gramados públicos do Plano Piloto (cuja manutenção é subsidiada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN) – e as áreas públicas da periferia, que tendem a ser mais escassas e com pouca flora. Em 2003, a Novacap – empresa federal responsável pelas obras públicas de Brasília – gastou dez vezes mais dinheiro (R$ 2 bilhões) com a manutenção das áreas verdes do Plano Piloto do que com todas as regiões administrativas periféricas combinadas, que ocupam uma área dez vezes maior (Gouvêa 348). Além disso, a maioria dos centros culturais está no Plano Piloto, o que cria um fluxo desigual de consumo artístico: os moradores da periferia frequentam o centro para produzir e consumir cultura, mas os residentes do centro raramente deslocam-se para a periferia.

A produção cultural de Brasília é gerada a partir do questionamento das dinâmicas hegemônicas de poder, esboçadas aqui brevemente. Os objetos de arte não produzem significado no vazio. Em vez disso, o contexto – incluindo condições sociais, ambientais e interações humanas – potencializa seu significado (Canclini 101). As classes populares estão profundamente conscientes das demandas capitalistas que limitam seu acesso a espaços públicos, áreas verdes e de lazer da cidade. Eles estão resistindo à elitista disposição espacial de Brasília através do uso do espaço público e estão utilizando a arte para contestar sua marginalização socioeconômica (Lehnen 20). Num clima de protestos e de reivindicação de formulação de políticas públicas, muitos artistas do DF veem seu trabalho também como uma forma de ativismo que combate as desigualdades da capital, da nação e do mundo. Esses artistas destacam sempre a importância de ocupar o espaço público e encontram maneiras inovadoras de fazê-lo.

Situando meus métodos e minha pesquisa

Ao selecionar o corpus de pesquisa para este livro, esforcei-me para ser o mais inclusiva possível. Reconhecendo o quanto a posição geográfica e os marcadores identitários influenciam a imagem que alguém faz de sua cidade, eu estudo diferentes artistas (da periferia e do centro urbano; homens e mulheres; cis e transgêneros; heterossexuais e LGBTI+; brancos e negros; velhos e jovens), procurando contar uma história mais complexa. Como pesquisadora com formação e experiência em crítica literária, muitas vezes minha atenção voltou-se mais à escrita criativa de Brasília, mas eu também abordei vários outros gêneros artísticos.

Embora os trabalhos analisados abranjam muitos gêneros distintos, eles compartilham características comuns: são obras do século XXI criadas por artistas que vivem no DF. Essas obras concebem Brasília como uma vibrante cidade das artes, ou porque ocupam os espaços públicos ou porque representam a capital. Elas envolvem – em suas práticas espaciais, formas ou conteúdos – afirmações de um direito igualitário à cidade. Alguns importantes artistas contemporâneos estabelecidos no DF não estão aqui incluídos porque os temas de seus trabalhos fogem do escopo da minha pesquisa. Brasília é conhecida por excelentes escritores de literatura infantil e juvenil – como Roger Mello, Stella Maris Rezende, Marcos Bagno e Lourenço Cazarré – que são renomados nacionalmente e conquistaram importantes prêmios literários, mas suas obras também não encontraram um lugar neste livro. Procurei evitar a abordagem enciclopédica descritiva, que incluiria o maior número possível de artistas de Brasília.[16] 

Meu principal método de análise foi a leitura cerrada dos textos culturais. Li livros, assisti a filmes e vídeos, examinei artes visuais e ouvi músicas. Durante minha pesquisa, viajei quatro vezes a Brasília e pude me encontrar com artistas locais e participar de eventos culturais. Eu nunca morei em Brasília, então minha perspectiva é a de uma forasteira.

Uma busca por livros em língua inglesa sobre a arte de Brasília apresenta poucos resultados, em sua maioria livros decorativos, com cintilantes fotografias da arquitetura de Niemeyer. Tais livros contribuem para a impressão de que a cena artística da cidade está congelada na década de 1960, como se novas artes não tivessem sido produzidas em Brasília no último meio século. A realidade é bem diferente, mas nenhum livro em inglês abordou o tema da arte contemporânea da capital. Mesmo em português, não há muito escrito sobre os artistas contemporâneos do DF. Uma pesquisa no Google Scholar pelos termos “Brasília” e “Oscar Niemeyer”, em todos os idiomas, mostra mais de 8.700 resultados; a pesquisa equivalente para “Renato Russo” traz mais de 2.100, mas há uma queda vertiginosa desses resultados quando a busca é por artistas mais contemporâneos: “João Almino” apresenta apenas 311 ocorrências, “Nicolas Behr”, 199 e “Adirley Queirós”, 140. A maioria desses textos (principalmente dissertações e artigos) focam em um único gênero, artista, centro cultural ou obra de arte. Devo muito a essas publicações acadêmicas, uma vez que, valendo-me de variados gêneros artísticos, esforcei-me para apresentar neste livro uma abrangente discussão sobre a arte de Brasília.

Minha própria posição como crítica literária e cultural branca dos EUA (com financiamento de pesquisa e emprego de período integral em uma universidade) influencia minha interpretação do cenário da arte contemporânea de Brasília. Pertenço a grupos que historicamente tiveram o poder de interpretar e definir a produção artística não hegemônica. Embora reconheça minha própria posicionalidade e minha incapacidade de falar por grupos aos quais não pertenço, procuro contestar critérios de valor hegemônicos, em especial a tendência de considerar dignos de estudo (no campo da literatura) apenas os livros publicados, ignorar ou rotular artistas periféricos e negligenciar textos que não circulam internacionalmente. Defendo o mérito artístico de obras criadas por artistas sub-representados e valorizo práticas de conhecimento e estéticas que historicamente têm sido silenciadas pela academia.

Este livro usa o termo arte de modo amplo, incluindo música, poesia falada, poesia escrita, prosa, teatro, dança, pintura, escultura, arquitetura, fotografia e jornalismo criativo. Analisar vários gêneros artísticos e obras produzidas por artistas de diferentes grupos sociais é importante para se perceber o que as obras têm em comum e para evitar a estigmatização da arte periférica. No DF, muitas obras de arte contemporânea dispensam a aprovação de instituições e autoridades que propagam critérios de valor hegemônico, como editoras, gravadoras, curadores, galerias de arte, júris de prêmios e assim por diante. Ao fazer isso, eventos como saraus e batalhas de rap – dos quais pode participar qualquer um que chegar a tempo de colocar seu nome na lista – desafiam o elitismo típico do mercado de arte. Grande parte dessa arte não está disponível para compra e não teria sido considerada digna de análise acadêmica há 40 anos, ganhando lugar nos debates intelectuais apenas com a ascensão dos Estudos Culturais na década de 1980. Os Estudos Culturais também valorizaram pesquisas relacionadas à resistência subalterna ao poder hegemônico. Stuart Hall e Tony Jefferson afirmam que as subculturas das classes populares “ganham espaço”. Com essa expressão, eles referem-se a “espaço cultural nos bairros e nas instituições, tempo real para lazer e recreação, espaço efetivo nas ruas ou nas esquinas” (35). Alinhado a essa ideia, meu trabalho procura compreender como artistas e consumidores de arte desestabilizam dinâmicas espaciais hegemônicas e personalizam o espaço.

Após um capítulo que apresenta uma visão geral da história da arte na capital, A arte de Brasília é organizada de forma temática e cronológica, com cada capítulo dedicado a um gênero de arte específico: um romance, um livro de não-ficção criativa, um filme, poesia slam, livros de poesia, jornalismo cultural e arte de rua. Coincidentemente, os três primeiros textos analisados estão organizados cronologicamente em termos do assunto histórico que abordam. O romance de Almino, Cidade Livre (2010), é em grande medida sobre o final da década de 1950 e a década de 1960. O livro de não-ficção criativa de Behr, BrasíliA-Z: cidade palavra (2011), inclui muitas lembranças da década de 1970 e o filme de Queirós, Branco sai, preto fica (2014), gira em torno de um evento que ocorreu na década de 1980. Os textos subsequentes são de 2015 ou posteriores e seu envolvimento com as décadas passadas varia. O Capítulo 2 é intitulado “Um panorama histórico da arte de Brasília” e tem duas funções principais: primeiro, ele mostra que a arte contemporânea do DF não ocorre no vácuo, mas responde ao momento artístico anterior, principalmente dos anos 1960 em diante; segundo, ele oferece um contexto histórico relevante para capítulos subsequentes. O Capítulo 2 está organizado cronologicamente, começando com a proposta de criação de Brasília, em 1789, e chegando até a década de 1990. Seu foco principal é a influência da arte na imagem da cidade, desde os palácios de Niemeyer, passando pelas músicas da Legião Urbana e pelos livrinhos mimeografados de Behr, até o rap de GOG.

O Capítulo 3, “João Almino e o direito criativo à cidade”, argumenta que a Cidade Livre de Almino – o quinto romance de seu Quinteto de Brasília – aborda o direito criativo à cidade, ao considerar quem tem o poder de representar publicamente a capital na escrita, tanto na ficção quanto na não ficção. O romance discute o impacto de textos fundamentais na interpretação do DF e utiliza muitas técnicas literárias para criticar narrativas totalizantes sobre a capital. Após uma reflexão a respeito do Quinteto de Brasília, as seções subsequentes desse capítulo analisam como essas técnicas específicas – como narração disruptiva, metanarrativa, testemunhos históricos e justaposições, além de alusões literárias – chamam atenção para injustiças em relação a quem tem a oportunidade de representar (e interpretar) a capital na escrita.

O Capítulo 4 é intitulado “Encontros criativos na Brasília de Nicolas Behr”. Ele argumenta que o livro de verbetes de Behr, BrasíliA-Z: cidade-palavra (2014), representa o DF como uma cidade que sempre foi agitada artisticamente, refutando a imagem dominante da capital como um deserto cultural. BrasíliA-Z funciona como um palimpsesto que sobrepõe décadas de encontros criativos – trocas afetivas nas quais os moradores do DF se reúnem em torno da arte. Conforme seu subtítulo anuncia, o livro propõe que a cidade seja lida como texto (Lefebvre, The Production 142-45; Certeau 93-100; B. Carvalho 1-4). Mas o livro de Behr também sugere como, na escrita criativa, uma cidade representa mais do que uma realidade objetiva. Em BrasíliA-Z, o DF de Behr – o lugar em que ele vive, sobre o qual se recorda e que também inventa – oferece arte, amor e alegria. Além disso, a Brasília de Behr é o lugar onde a colaboração criativa provoca satisfação emocional.

O Capítulo 5, “A arte de Ceilândia em Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós”, argumenta que o filme de Queirós Branco sai, preto fica (2014) – usando hipérbole e fantasia – retrata a guerra travada entre o Plano Piloto e Ceilândia pela imagem do DF. O filme representa Ceilândia como a alma da cidade, um centro de arte clandestino que não quer ser anulado por um Plano Piloto racista, elitista e distópico (a cidade sem alma). Lento, inescrutável, repetitivo e chocante, o documentário renuncia a explicações, diálogos extensos e linearidade narrativa. A ênfase do filme nos recursos visuais e auditivos incita reflexões sobre onde a arte de Ceilândia – particularmente a música – é produzida. Branco sai explora como os espaços de expressão artística contra-hegemônica de Ceilândia são criados, regulados e valorizados de maneiras que influenciam a identidade dos ceilandenses. Esses espaços estão associados a cidadãos negros, periféricos e das classes populares, cuja arte está entrelaçada à luta pela afirmação do direito criativo à cidade.

O Capítulo 6 é intitulado “Slams de poesia e as competições de verso em Brasília”. Ele afirma que, desde 2015, poetas de grupos minoritários de Brasília afirmam seu direito criativo à cidade por meio dos slams. Essas competições legitimam a presença de mulheres, pessoas LGBTI+, negros e a população de baixa renda em todos os cantos da capital. Dois outros tipos de competições, os duelos de repente e as batalhas de rap, precederam os slams de poesia no DF. Nas três modalidades, os participantes declamam versos originais e os melhores, de acordo com os juízes da plateia, vencem. De modo geral, nesses eventos os membros de um grupo sub-representado rivalizam coletivamente por seu reconhecimento público. Como utilizam estruturas de competição que permitem a avaliação da plateia, os slams transcendem critérios de valor hegemônicos e garantem à comunidade local o poder de criticar a arte. Esse capítulo primeiro aborda os slams e analisa atentamente a apresentação que Meimei Bastos fez de seu poema “Eixo”, em 2015 no Slam das Minas. As seções seguintes debruçam-se sobre os duelos de repente e as batalhas de rap, para contextualizar os slams dentro da forte tradição de competições de versos no DF.

O Capítulo 7, “Os livros insurgentes de poetas negros contemporâneos de Brasília”, postula que o surgimento de jovens poetas negros que publicam livros de autoria individual no DF desde 2015 alterou a estética, a demografia e os temas da esfera literária da capital. A maioria desses poetas também se identifica como mulher, LGBTI+, pobre ou da periferia, e suas identidades interseccionais são centrais para sua escrita. O capítulo examina como Kika Sena, Marcos Fabrício Lopes da Silva, Nanda Fer Pimenta, Katiana Souto, Meimei Bastos e tatiana nascimento afirmam o direito criativo à cidade dos moradores de comunidades minoritárias do DF. Esse direito criativo implica o que eu, baseada em James Holston, denomino livros insurgentes, concebidos por meio de práticas alternativas de publicação que insistem no lugar dos grupos marginalizados na esfera literária. Esses autores denunciam as experiências de hostilidade dos moradores negros e subalternos no espaço público, principalmente nos espaços de trânsito.

O Capítulo 8 é intitulado “Traços, a arte de rua e o renascimento cultural de Brasília”. Ele argumenta que a revista cultural Traços e a arte de rua local que ela aborda (shows públicos, grafite, feiras de arte, fotografia, dança e teatro de rua) representam o DF como uma vibrante cidade das artes. Além disso, a revista mensal, tanto com sua estratégia de vendas quanto com seu conteúdo, proclama um direito criativo à cidade, predominantemente no que diz respeito aos usos culturais do espaço público. Seguindo o modelo de jornal impresso de rua, a Traços, fundada em 2015, é vendida por pessoas em situação de rua e é produzida, em parte, para atender a essa população. Como os vendedores da revista trabalham nos espaços públicos do Plano Piloto, eles refutam equívocos depreciativos sobre quem se encontra sem-teto e por quê. Traços demonstra que todas as pessoas em situação de rua, artistas e consumidores de arte têm direito a ocupar o espaço público. Mesmo assim, para fazer isso, eles se envolvem em uma luta contra agendas conservadoras que tentam manter a “ordem” e a exclusividade (Mitchell 14).

O Epílogo examina como os artistas não fazem arte no vazio, mas em um endereço específico. Ele considera como os artistas da periferia do DF tendem a se orgulhar de seus endereços, enquanto os mais ricos evitam mencionar seu local de residência. Nos dois casos, a arte mais fascinante da cidade é a que apresenta a capital de maneiras simultaneamente realistas e fantasiosas, fazendo com que as pessoas a vejam com outros olhos. A arte contemporânea de Brasília está se desenvolvendo em meio a eventos políticos tão orwellianos que parecem pertencer à ficção. Os últimos três anos, em particular, foram politicamente turbulentos para o DF. Dos quatro últimos presidentes do país, uma sofreu um impeachment duvidoso; dois foram presos; e Jair Messias Bolsonaro, o presidente atual, defendeu o retorno à ditadura militar e elogiou crenças misóginas, homofóbicas, racistas, violentas e anti-indígenas. A investigação Lava Jato, iniciada em 2014, tornou-se a medida mais severa contra a corrupção da história da América Latina e, por isso, destronou líderes políticos e de setores da construção, do agronegócio e da energia. Apesar da nobre premissa, a Operação Lava Jato provou ser partidária das causas de direita. Enfrentando um vácuo de liderança, uma onda de violência e cismas ideológicos, a democracia no Brasil hoje se encontra em terreno instável. A atual administração federal, nesse clima hostil, tanto impediu o financiamento para as artes quanto gerou uma cultura de medo para muitos grupos não normativos. Como o Brasil viu no passado, esse clima geralmente estimula a produção cultural progressista. Ansiedades em torno de eventos políticos recentes estão presentes em toda a produção cultural contemporânea da capital, que opta por uma abordagem localizada para tratar questões relevantes em escala nacional e internacional. Ultimamente Brasília tem sido manchete na mídia internacional, mas a arte contemporânea da cidade permanece nas sombras. Este livro traz essa arte para os holofotes e demonstra como os artistas têm se envolvido ativamente na transformação da imagem do DF.

A história de origem de Brasília é uma fábula de audaciosa arte e pesado simbolismo. Mais estranha que a ficção, essa história de origem foi contada e recontada de inúmeras formas. Mas pensar no DF apenas em termos de suas origens implica esquecer que a capital continuou a se desenvolver desde então. Ela não é uma cápsula do tempo, mas uma cidade habitada. Este livro procura contar uma história mais contemporânea sobre a arte de Brasília e sua capacidade de transformar a imagem da cidade. Artistas que trabalham no início do século XXI têm demonstrado um desejo crescente de retratar o DF como uma vibrante cidade das artes. Porém, esse fenômeno não ocorreu no vazio: ele responde e critica a arte anterior e as concepções simbólicas da cidade. Para entender essa trajetória, é preciso olhar para as décadas anteriores.

Notas


[1] Ver o capítulo “Mano/Mana”, de Derek Pardue, em Ideologies of Marginality in Brazilian Hip Hop, para uma análise da música “Rosas”, do Atitude Feminina, contada do ponto de vista de uma mulher assassinada por seu namorado.

[2] Por exemplo, James Scott, em Seeing Like a State, admite que “eu não poderia ter escrito o capítulo sobre a cidade modernista sem ter me aproveitado descaradamente das ideias do excelente livro de James Holston sobre Brasília” (xi).

[3] Para mais informações sobre a forte tradição de feiras do DF, ver A cidade e suas feiras: um estudo sobre as feiras

 permanentes de Brasília (Madeira e Veloso 26), de Angélica Madeira e Mariza Veloso.

[4] Para uma defesa entusiasmada da superquadra, ver “Introduction”, de el-Dahdah.

[5] Para mais reflexões sobre o significado social dos muros no Brasil urbano, particularmente em São Paulo, ver Cidade de muros, de Caldeira.

[6] Ver o microconto “Maquete”, de Rezende.

[7] Para uma discussão sobre o Estatuto da Cidade no Brasil, ver Dallari e Carvalho Filho. Para um exame sobre dez anos de discórdia entre os defensores da reforma urbana baseada em direitos e os defensores da reforma urbana orientada pelo mercado, ver Rolnik. Para um estudo de como as leis estabeleceram divisões espaciais elitistas no desenvolvimento urbano brasileiro em oposição a como o Estatuto da Cidade está agora tentando usar a lei para tornar os municípios mais igualitários, ver Fernandes.

[8] Uma cláusula da lei, no entanto, diz respeito à poluição sonora, um tópico controverso em Brasília. Desde a implementação da Lei do Silêncio (Lei Distrital 4.092), em 2008, produtores culturais, músicos e proprietários de bares reclamam que os estabelecimentos recebem muitas multas exorbitantes. Em vez de servir para proteger os moradores de ruídos perturbadores ou perigosos, parece que a lei às vezes tem sido usada de maneira antiética como uma forma de censura contra grupos ou empresas consideradas indesejáveis por certos membros dominantes da comunidade (ver Tunes).

[9] Existem exceções notáveis a essa regra. Renato Russo, Renato Rocha (baixista da Legião Urbana de 1984 a 1989), Cássia Eller, o rapper GOG, o escritor e diretor de teatro Alexandre Ribondi e Dulcina de Moraes (a atriz que fez sua carreira no Rio de Janeiro, mas se mudou para Brasília em 1972 para formar um teatro próprio) abriram caminho para uma cena artística do DF significativamente mais diversificada no século XXI.         

[10] O escritor ceilandense Vicente de Melo também estava presente.

[11] Em outras ocasiões, o tom de Oliveira foi mais condenatório. Por exemplo, no cordel “CandangoCei” (2008), ele reprova a discriminação do governo ao tornar o Plano Piloto um enclave elitista e exilar as classes populares para Ceilândia. O título desse poema transforma os substantivos candango (nome de um trabalhador que construiu Brasília) e Cei (apelido de Ceilândia) em verbo, um tipo de discurso que expressa ação ou emoção, evocando a experiência de Oliveira como construtor e morador da capital. Além disso, a última sílaba do neologismo contém os sons de duas palavras, afirmando a voz de autoridade do poeta como quem sabe (sei) e quem pode falar de Ceilândia (Cei). O poema demonstra como os candangos usaram a poesia para se inscreveram na capital como agentes sociais significativos, nesse caso lamentando como a segregação social foi planejada em Brasília.

[12] Identidade de local refere-se a como o meio físico influencia o senso de si de um residente (Proshansky et al. 59).

[13] Para uma análise da importância dos bares como espaços culturais que catalisam mudanças sociais na periferia urbana do Brasil, ver “A voz e a letra”, de Tennina, e ver Vaz. Em contraste, para um estudo da importância dos bares para o tecido social do afluente Plano Piloto, ver Lima Barral. 

[14] Para mais elaborações sobre a distinção entre espaço e lugar, ver Agnew.

[15] Em 2010, registrou-se que o DF tinha 985 metros quadrados de área verde per capita, o segundo maior ranking, depois de Quito, em uma comparação de 30 grandes cidades da América Latina (Economist Intelligence Unit 16).

[16] Livros publicados anteriormente adotam uma abordagem mais enciclopédica da produção cultural de Brasília. Repleta de fotografias coloridas, uma série publicada em 2012 pelo Instituto Terceiro Setor dedicou um livro a cada uma das seguintes formas de arte ou lazer no DF: artes visuais, arquitetura, artesanato, música, manifestações populares, literatura, fotografia, teatro, cinema e esportes. Mais descritivos do que analíticos, esses livros apresentam mais biografias e resumos curtos do que análises culturais. O Correio Braziliense também assumiu um papel de liderança na divulgação da arte de todos os gêneros em Brasília.

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