Skip to main content

A arte de Brasília: 2000-2019: 3. João Almino e o direito criativo à cidade

A arte de Brasília: 2000-2019

3. João Almino e o direito criativo à cidade

CAPÍTULO 3

João Almino e o direito criativo à cidade

Nenhum romancista foi mais importante que João Almino na construção da imagem do Distrito Federal (DF) como uma cidade literária. Com a publicação do “Quinteto de Brasília” (entre 1987 e 2010) pela editora Record, Almino colocou a capital no mapa literário como local em que romances premiados e amplamente traduzidos são escritos. Todos os livros do Quinteto se passam no DF. Nos quatro primeiros, a artificialidade da capital reflete a superficialidade das personagens e, no último romance da série – Cidade Livre (2010) –, a cidade ganha maior protagonismo. Cidade Livre chama atenção para as injustiças em relação a quem pode representar (e interpretar) Brasília na escrita, seja ficção ou não. O romance considera a influência de textos fundacionais na interpretação da capital e utiliza diversas técnicas literárias para refutar narrativas totalizantes sobre o DF. Essas técnicas incluem: narração disruptiva; metanarrativa; testemunhos históricos e justaposições; além de alusões literárias.

Situando Cidade Livre no Quinteto de Brasília 

O Quinteto de Brasília, de João Almino, começa com Ideias para onde passar o fim do mundo (1987), seguido por Samba-enredo (1994), As cinco estações do amor (2001), O livro das emoções (2008) e, finalmente, Cidade Livre. Em Samba-enredo, o objeto favorito da personagem Ana Kaufman, em sua coleção privada de arte brasileira, é um parangolé de Hélio Oiticica, que fica protegido por um vidro (80). Uma obra de arte que deveria ser usada e colocada em movimento sendo exibida de forma tão estática é uma ironia que as personagens não percebem.[1] O parangolé serve como uma metáfora do Plano Piloto: um ambicioso projeto de arte o qual sofre com a falta de interação humana que o traria à vida, em parte – como os romances demonstram – porque os ricos socializam em espaços privados e as classes populares vivem a muitos quilômetros de distância do centro, na periferia. Os romances de Almino referem-se ao Plano Piloto como artificial e néon e conjecturam sobre seu potencial fim apocalíptico (Cidade Livre 127, 145; As cinco 17; Ideias 34, 237; Samba-enredo 22). Trata-se de um cenário adequado para um elenco de personagens desagradáveis que parecem incapazes de agir em prol de si mesmas, de seus amigos ou de sua comunidade. Se alguém conhecesse o DF única e exclusivamente pela leitura dos romances do Quinteto, vislumbraria a imagem de uma cidade lasciva, socialmente segregada e violenta em cenas ambientadas desde os anos 1950 até cerca de 2080, quando Almino inventa um futuro para Brasília. A capital surge nos romances como metáfora de um Brasil corrupto, dividido e mal administrado.

Os primeiros quatro romances constituem uma série, revelando uma vida privada burguesa cheia de intrigas. Os livros são repletos de ação, assassinatos, suicídios, infidelidade, prostituição, sequestro, previsões do apocalipse, experiências místicas e cenas de sexo. Até fantasmas e computadores copulam nessas narrativas de Almino. A excessivo tumulto vivido pelas personagens – o presidente é morto, sua irmã comete suicídio, a amiga deles incendeia a própria casa – é normalizado por meio de um ritmo narrativo que permite pouco tempo para reflexão sobre uma situação limite antes de passar para a próxima. Em contraste com os enredos acelerados e muitas vezes sensacionalistas, a maioria dos diálogos cotidianos dos romances revela, de modo mais sombrio, uma elite racista, classista, homofóbica, transfóbica, hipócrita, desinteressada em suas profissões e temerosa da violência urbana. O primeiro e o segundo romances (como Cidade Livre) fazem referência explícita à própria ficcionalidade. Ideias é narrado por duas personagens mortas, e Samba-enredo é narrado por um computador que – dada a impossibilidade de existência de um narrador onisciente totalmente neutro – não consegue ser objetivo, apesar de inanimado. Partes de enredos e personagens reaparecem de um livro para outro e, às vezes, um romance anterior é mencionado diretamente.

Cidade Livre, porém, é uma exceção no Quinteto, pois parece um gênero totalmente diferente: há menos melodrama; as cenas são mais verossímeis; as personagens são mais complexas; o assunto é mais amplo e mais histórico: ele é, enfim, um romance mais bem elaborado. Mas Cidade Livre compartilha a crítica contundente de seus antecessores a todas as formas de religião, zombando da crença de algumas pessoas de que a fé pode resolver problemas reais, como o câncer. Além disso, esse quinto livro também se passa no DF; tem como personagem Íris Quelemém,[2] uma profetisa que era trabalhadora do sexo; apresenta famílias não tradicionais; faz alusões à literatura brasileira; tem um enredo não linear; e utiliza recursos da metaficção. Tal como Samba-enredo e O livro das emoções, Cidade Livre mostra uma das maiores qualidades de Almino como escritor: o humor. Entretanto, a característica principal que os cinco livros compartilham é o equilíbrio imprevisível entre elementos de “alta” e “baixa” literatura.

A combinação do Quinteto de Brasília entre “alta” e “baixa” literatura coloca em xeque a distinção desses termos. Nelson H. Vieira postula que os romances brasileiros pós-modernos desafiam os discursos de poder no Brasil cotidiano por meio da combinação de inovação estética e tema desconfortável (“Closing” 109-110; “Evil Be Thou” 356-58; “Hitler” 432; “Metafiction” 584). Esse contraste deixa os leitores inquietos, nunca muito certos de como interpretar a combinação entre linguagem eloquente e alusões literárias somadas a conteúdo sensacionalista e extremo. Por exemplo, em As cinco, quando quatro jovens homens heterossexuais matam uma mulher transgênero no Plano Piloto, a cena parece totalmente inacreditável. No entanto, se a passagem for lida como uma alusão às altíssimas ocorrências de assassinato contra mulheres trans no Brasil (as maiores do mundo em 2018), a inadmissibilidade do crime de ódio ficcional sugere a inadmissibilidade desses horríveis crimes reais (Honorato). Muitas cenas nos primeiros quatro romances podem ser lidas como uma paródia de personagens de elite frívolas, mas também como críticas a leitores de elite levianos que obtêm prazer em ler cenas trash ou sentem desconforto em ver ficcionalizada sua própria hipocrisia. Por exemplo, depois de quatro romances com Joana, o leitor sabe mais sobre suas roupas íntimas, curvas, riqueza e aventuras sexuais do que sobre suas emoções, carreira ou desejos. No entanto, com Almino, o leitor sempre tem a sensação de que o texto está operando em mais de um nível. Essa caracterização superficial de Joana (e da maioria das outras personagens) também induz à reflexão sobre a tendência humana de julgar as pessoas de maneiras mesquinhas e equivocadas.

Além da mistura de “alta” e “baixa” literatura, todos os romances do Quinteto envolvem metaficção, pois os narradores refletem sobre as frustrações desencadeadas pela realização de grandes projetos de escrita: um roteiro de filme, um samba-enredo, um livro acadêmico, uma autobiografia fotográfica comentada e um livro de memórias. Escrevendo antes da publicação de Cidade Livre, Pedro Meira Monteiro afirma que um fio condutor dos romances de Almino é “o exercício metanarrativo, as experimentações e a exposição das vozes de onde se crê emanar a história contada” (“Todo instante” 62). Para ele, o que surpreende é que os romances conseguem ser tanto experimentais quanto líricos (“Todo instante” 62). De fato, Almino é um especialista em palavras que pode criar uma bela frase sobre um tópico mundano. Além disso, Meira Monteiro também sugere que uma das principais características dos romances de Almino é o “diálogo profundo com as emoções, que são por sua natureza mesma inacessíveis àquele que busca rememorá-las” (“Todo instante” 65). Sua ênfase na qualidade emocional dos textos de Almino é otimista demais. Os narradores realmente se envolvem em metarreflexões sobre sentimentos, mas isso ocorre à parte do enredo e do desenvolvimento das personagens. Essas meditações não emocionam o leitor. Nos romances de Almino (especialmente em Enigmas da primavera; Entre facas, algodão; Ideias; e Samba-enredo) as personagens não são suficientemente desenvolvidas para que o leitor se envolva com elas afetivamente. A inventividade de Samba-enredo reside na maneira surpreendente como ele mescla gêneros para criar uma alegoria humorística do Brasil, mas as personagens são bastante planas. Muitos romances de Almino (As cinco, Ideias e O livro das emoções) sofrem por ter uma superabundância de personagens que não são individualizadas. Elas tendem a não sofrer nenhuma autotransformação ou amadurecimento no decorrer dos livros, o que faz com que os leitores percam o interesse. Às vezes, a suposta mesma personagem tem uma personalidade totalmente diferente de um romance para outro, como é o caso de Berenice em Ideias e em As cinco, ou de Maria Antônia / Antonieta em As cinco e em O livro. Cidade Livre é a obra de Almino em que as personagens têm mais profundidade.

Em Cidade Livre, o narrador em primeira pessoa chama-se João, um jornalista da Brasília contemporânea que relembra a experiência de crescer no acampamento operário Cidade Livre, surgido em 1957 durante a construção da nova capital. O narrador está tentando compreender a morte e o provável assassinato do candango Valdivino, um amigo de família. Na história, João entrevista seu já idoso pai adotivo, Moacyr, que está preso. Os temas de especulação imobiliária e corrupção nesse setor surgem através de Moacyr, que acumulou fortuna negociando arrendamentos temporários de lotes na Cidade Livre (eles deveriam ser destruídos após a inauguração da capital[3]), construindo moradias e se envolvendo em projetos de construção corruptos da época da criação de Brasília. O enorme sucesso de Moacyr teve vida curta e ele acabou na prisão devido a seus negócios fraudulentos.

Em termos de vidas românticas, Valdivino e Moacyr ocupavam posições equivalentes, pois ambos estavam apaixonados pela mesma mulher: Lucrécia. No entanto, economicamente, suas situações eram bem diferentes, porque Moacyr se tornava rico e influente, enquanto Valdivino nem tinha moradia fixa, em parte porque vivia fugindo da dívida com o coronel que arranjou sua viagem do Nordeste ao Planalto Central.[4] Capitalismo de consumo desregulado, ganância, corrupção e especulação imobiliária contaminavam a nova capital, fazendo o leitor vivenciar os dois extremos do espectro social. A atenção do romance à especulação imobiliária sublinha como a desigualdade contemporânea em Brasília remete ao momento de sua construção. Alegoricamente, Valdivino passa a representar a luta dos brasilienses de baixa renda para encontrar moradia e fazer com que suas vozes e convicções sejam ouvidas. O mistério do assassinato nunca é resolvido, aumentando a sensação de que os brasilienses das classes populares são tratados como descartáveis. Embora esse tipo de crítica esteja presente nos quatro primeiros romances do Quinteto, ele é mais pronunciado em Cidade Livre, livro em que uma personagem socialmente marginalizada tem um papel mais central.

Narração disruptiva

O direito criativo à cidade envolve a possibilidade de representar a cidade em termos próprios. Cidade Livre emprega técnicas de narração disruptiva, como intervenções do autor no fluxo narrativo, para refletir sobre quem tem o poder de representar Brasília discursivamente. Retomando os prólogos de Machado de Assis à quarta edição de Memórias póstumas de Brás Cubas e a Memorial de Aires – assinados pelo autor, mas com autoria atribuída aos narradores – a introdução de Cidade Livre é assinada por JA, mas escrita por um narrador-jornalista chamado João, que agradece a João Almino pelas revisões.[5] O jogo literário que confunde autor, narrador e editor enfatiza o poder criativo de Almino ao longo de todo o texto.

Almino brinca com sua própria posição, pois ele é uma figura pública cujos escritos influenciam as interpretações coletivas sobre o DF. Afinal, ele foi apelidado de “o romancista de Brasília” (Costa Couto; Resende). As muitas referências ao autor no romance chamam a atenção para o seu capital social e cultural em comparação à falta desse capital pela personagem Valdivino. Almino ocupa um lugar incontestável no meio literário brasileiro: ele é membro da Academia Brasileira de Letras, publica em uma editora de primeira linha, tem seus romances traduzidos para vários idiomas e frequentemente é finalista e ganhador de importantes prêmios literários (como Casa de las Américas, Portugal Telecom de Literatura, Jabuti e Prêmio São Paulo de Literatura). Além disso, o autor faz parte de uma longa tradição latino-americana de intelectuais públicos que trabalham simultaneamente como diplomata e escritor. A intervenção de Almino na narrativa como editor chama a atenção para a distância entre sua realidade e a de sua personagem Valdivino. Essa estratégia de empathic unsettlement (inquietação empática) enfatiza tanto o lugar de privilégio de Almino quanto sua incapacidade de compreender totalmente as dificuldades de outras pessoas (LaCapra 40). O conceito de Dominick LaCapra de empathic unsettlement – desenvolvido em Writing History, Writing Trauma (2001) – refere-se a um meio-termo entre uma estrutura narrativa convencional, que permite aos leitores o entendimento do outro representado, e técnicas literárias surpreendentes, que destacam a incapacidade de compreensão total sobre a dor de outra pessoa.

Às vezes, o termo de LaCapra é análogo a outros cunhados anteriormente, como a desfamiliarização, de Viktor Shklovsky, e a Verfremdungseffekt, de Bertolt Brecht, nenhum dos quais LaCapra cita em seu livro. Desfamiliarização, um conceito que Shklovsky articula no ensaio “Arte como técnica” (1917), refere-se à habilidade da linguagem literária em tornar o familiar estranho, ampliando a percepção do leitor: “A técnica da arte é tornar os objetos ‘não familiares’, tornar as formas difíceis, aumentar a dificuldade e a duração da percepção” (12). Brecht criou a técnica do Verfremdungseffekt (traduzido como “efeito de estranhamento” ou “efeito de distanciamento”) em “Alienation Effects in Chinese Acting” (1936). Mais abertamente político do que a desfamiliarização, esse conceito de teatro aborda a ideia de que uma peça não deve simplesmente entreter. Em vez disso, deve tirar os espectadores de uma fantasia confortável, para que eles se lembrem das implicações do espetáculo teatral no mundo real. Nesse ensaio, Brecht descreve esse conceito como “atuar de tal maneira que o público fica impedido de simplesmente se identificar com as personagens da peça. A aceitação ou a rejeição de suas ações e declarações deveria se situar no plano consciente, ao invés de, como tem sido até agora, no inconsciente do público” (91). A inovação do conceito de empathic unsettlement está em sua aplicação específica. LaCapra desenvolveu o termo para descrever a maneira com que alguns historiadores e artistas (principalmente cineastas e escritores) representam eventos traumáticos reais, como o Holocausto, sem recorrer a problemáticas conclusões edificantes ou à “objetivação extrema” (LaCapra 103). Se Brecht está mais atento a como as pessoas agem no presente, LaCapra preocupa-se em como elas se lembram do passado. É nesse sentido que o conceito é adequado à leitura de um romance empenhado em evitar interpretações monolíticas da história de Brasília. Embora a construção do DF não tenha sido um evento traumático, o termo empathic unsettlement é uma ferramenta útil para analisar o modo com que o romance – por meio de Valdivino – apresenta as dificuldades (e em alguns casos o próprio trauma) vividas por residentes carentes da capital. A narrativa convencional de Cidade Livre desperta empatia dos leitores por Valdivino ao contar sua história, expressar suas emoções, usar densas descrições e narrar tragédias reais ocorridas durante a construção de Brasília. Mas Cidade Livre também usa métodos literários surpreendentes – como a narração disruptiva – para reconhecer os limites do entendimento do narrador sobre Valdivino e, consequentemente, os limites da compreensão dos leitores sobre os moradores menos privilegiados da capital.

O narrador explica que postou os capítulos (de suas memórias aparentemente verdadeiras) em um blog, na esperança de que o processo de escrita fosse coletivo. Ele interrompe sua narração para inserir ou debater as edições sugeridas pelos comentadores do blog. A interferência criada pelos múltiplos autores e editores do texto nega a possibilidade de fechamento. Nenhuma interpretação de Brasília é definitiva. De acordo com LaCapra,“o empathic unsettlement impõe uma barreira para o fechamento do discurso e coloca em xeque relatos harmoniosos ou espiritualmente edificantes de eventos extremos dos quais tentamos obter garantias ou algum benefício (por exemplo, confiança imerecida sobre a capacidade do espírito humano de suportar qualquer adversidade com dignidade e nobreza)” (41-42). Embora a construção de Brasília não tenha sido uma atrocidade em massa, foi um grande evento nacional narrado em relatos edificantes que asseguram sua importância para a melhoria do Brasil.[6] Cidade Livre mostra o incômodo do narrador com as declarações de verdade (principalmente aquelas que idealizam o DF), preferindo ressaltar o incognoscível para evitar uma conclusão simplista. Juracy Assman Saraiva e Ernani Mügge, baseando-se no livro Vida líquida, de Zygmunt Bauman, argumentam que o uso de um blog interativo pelo narrador de Cidade Livre destaca a natureza multiforme de seu texto, em oposição à ordem, regulamentação e confiabilidade (211-12). No entanto, eu interpreto essa decisão de forma diferente: o fato de os leitores terem em mãos um livro publicado enquanto o narrador diz que estão lendo um blog de não ficção acentua a literalidade (falsidade, invenção) do romance. A desconexão torna o leitor mais consciente dos laços históricos dos romances com o controle cultural e ideológico elitista. O alegado esforço para ser colaborativo e inclusivo é evidentemente falso.

Por meio dessas escolhas estilísticas, Cidade Livre aborda Brasília como um texto cuja interpretação tem sido excessivamente policiada. Tal circunstância pode ser refletida com base nos ensaios seminais “A morte do autor”, de Roland Barthes, e “O que é um autor?”, de Michel Foucault. Barthes, tentando libertar os textos de uma leitura unívoca, defende o abandono das interpretações baseadas na biografia ou nas crenças do autor e admite a centralidade da linguagem, já que um livro é um “tecido de signos”. Ele afirma que cada leitor trará sua própria interpretação para um texto. Além disso, Barthes ressalta que nenhum texto é totalmente original, pois seu autor recicla ideias, fraseados e normas culturais. Mas o argumento de Barthes sobre a interpretação contradiz seu argumento sobre a originalidade. Como um leitor poderia entender o que o autor toma emprestado sem conhecer o contexto do momento histórico e a localização geográfica desse autor? Essa contradição é abordada por Foucault: “seria puro romantismo imaginar uma cultura em que a ficção circularia em estado absolutamente livre, à disposição de cada um; desenvolver-se-ia sem atribuição a uma figura necessária ou obrigatória” (288). O questionamento da autoridade em Cidade Livre, alinhado com Foucault, procura “reexaminar os privilégios do sujeito” e questionar como autores e críticos policiam o significado (287). O romance explora o contraste entre as interpretações de Brasília divulgadas por figuras públicas, que influenciaram enormemente a opinião geral sobre a cidade, e as interpretações das classes populares sobre a capital, que não foram publicadas. Embora o conteúdo de Cidade Livre seja de romance histórico,[7] o estilo o afasta dos fatos, o que convida à crítica social, como será considerado na próxima seção.

Metanarrativa

Todos os romances de Almino combinam elementos associados à ficção pós-moderna (como metaficção, fragmentação, interrupção narrativa, narradores não confiáveis, pastiche e alusão literária) com componentes de pulp fiction e de romances policiais (como assassinatos, prostituição, drogas, sexo, diálogos enérgicos, incesto e sessões espíritas). Essa mistura da chamada “alta literatura” e da “literatura de entretenimento” provoca desfamiliarização porque o leitor fica perdido entre os registros: ele nunca pode se entregar totalmente à fantasia do enredo e também nunca sabe exatamente como abordar o livro. Em referência às misturas das chamadas “alta” e “baixa” literaturas que caracterizam muitos dos romances pós-modernos do Brasil desde os anos 1980, Vieira afirma que essa ficção questiona como uma elite literária dominante estabeleceu falsos limites em relação à “alta” e à “baixa” cultura para manter seu status e exercer controle ideológico. Este processo silencia grupos marginalizados e desvaloriza sua expressão artística (“Closing the Gap” 109-115). Ao fazer essa mistura em um romance que discute a especulação imobiliária elitista, Almino estabelece uma relação entre o controle que as classes dominantes têm sobre distribuição de terras no Brasil e o controle que elas exercem sobre a distribuição e a interpretação das obras de arte. Ao longo do romance, o leitor fica ciente de que segurança habitacional e possibilidade de divulgação de ideias são privilégios sociais. Valdivino, na medida em que representa as pessoas carentes de Brasília, vive uma vida marcada justamente pela falta da garantia de moradia e pelo silenciamento de suas convicções.

Cidade Livre e os romances tardios de Machado de Assis constituem o que a crítica literária Patricia Waugh chama de romances metaficcionais, capazes de criticar a sociedade através de intervenções estilísticas. Essas narrativas se desviam das convenções do romance realista, que, tal como a “linguagem cotidiana”, tende a sustentar estruturas de poder através de “uma naturalização pela qual as formas de opressão são construídas em ‘representações’ aparentemente ‘inocentes’ do ‘mundo ‘real’” (11). Ela sustenta que “a metaficção converte o que considera como valores negativos de convenções literárias ultrapassadas na base de uma crítica social potencialmente construtiva” (11). O brilhantismo da metaficção de Machado de Assis vem da construção de narradores que – apesar da preocupação autoconsciente em narrar suas histórias – não percebem que estão expondo a autossatisfação e a hipocrisia de uma elite governante, como postula Roberto Schwarz (“A Brazilian” 103). A narração de Cidade Livre também perturba os leitores. Os comentaristas do blog ficam tão envolvidos com pequenos detalhes da fundação de Brasília que não conseguem ver o quadro geral que seus relatos evocam: uma história de especulação imobiliária que assombra a capital e um sentimento avassalador de violência não regulamentada e de desigualdade.

Para além das citadas profissões, Valdivino e Moacyr Ribeiro são escritores que funcionam como mediadores, o primeiro se imaginando como o “anotador oficial” da construção de Brasília e o último trabalhando como “escriba” para os operários analfabetos da capital (Cidade Livre 103). Por ter duas personagens escritoras, o romance chama a atenção para o quanto as opiniões sobre o DF sempre foram influenciadas pelos textos com maior divulgação e circulação. As reações que os visitantes ilustres tiveram de Brasília (como as que Moacyr registra) foram reproduzidas de inúmeras formas e afetam as interpretações sobre a cidade.[8] Já as visões sobre a capital contidas nas cartas que os escribas transcreveram para os trabalhadores braçais analfabetos estão perdidas. Para Samuel Rawet, Brasília não poderia realizar seu potencial literário até que quem a construiu aprendesse a ler e escrever (cit. em Paniago 26). Mas, no caso de Valdivino, saber escrever não é suficiente para que sua voz seja ouvida devido às divisões socioespaciais na cidade. Seus saberes – como testemunho de um massacre e conhecedor da flora e fauna locais – ameaçam o ethos capitalista. A constante justaposição, no romance, entre a história oficial e a esquecida história popular provoca um questionamento: como representar Brasília? Sem dúvida, o livro defende representações atentas às dificuldades dos moradores mais marginalizados da capital. Os leitores são levados a ter empatia com os verdadeiros problemas dos residentes mais desfavorecidos do DF através de Valdivino, que esbarra nos componentes mais opressivos da fundação da capital.

Testemunhos históricos e justaposições

Embora o narrador pareça não dar crédito às crenças místicas de Valdivino (como sua convicção na cidade perdida de Z), sempre que essa personagem fala de suas experiências pessoais, João as registra como verdadeiras. Desta forma, o romance reconhece a validade dos testemunhos de pessoas subalternas que se contrapõem à ideia fetichizada chamada por LaCapra de “documento escrito como o único repositório de ‘verdade’ histórica” (xx). Valdivino, por exemplo, conta sua experiência pessoal com o massacre da Pacheco Fernandes. Em fevereiro de 1959, a polícia da Guarda Especial de Brasília atirou e matou dezenas de operários que trabalhavam para a construtora Pacheco Fernandes depois que salários suspensos e comida estragada geraram um confronto.[9] O evento só começou a ser reconhecido publicamente décadas depois. O romance de Almino registra o testemunho de Valdivino sobre o crime, pois ele conta como cerca de 30 policiais abriram fogo contra trabalhadores no pátio e nos alojamentos. Uma bala atingiu o dormitório de Valdivino, e ele viu um trabalhador ferido em outro quarto. Ele ouve dizer que as vítimas foram enterradas em valas comuns e jura denunciar todos os policiais envolvidos, não desistindo até que estejam na prisão (Cidade Livre 196). O leitor reconhece a declaração irrefutável de verdade sobre o que aconteceu na História (historical truth claim) dentro do testemunho fictício. No entanto, a voz do poder, Moacyr, escolhe ignorar informações que possam potencialmente atrapalhar seus contratos de construção, afirmando: “diga a Valdivino para não cutucar o diabo com vara curta, que eu saiba ninguém foi morto” (198). O uso carregado do termo “ninguém” na negação da atrocidade reverbera quando João postula que Moacyr optou por não defender Valdivino em um momento crucial porque “Valdivino era um zé-ninguém” (232). Nessa perspectiva, o critério para ser considerado alguém – que é reconhecido, visto e ouvido – não é ser humano ou ser cidadão, mas sim ser pessoa com riquezas, propriedade e poder. Isso sugere como as estruturas conservadoras de poder colonial permaneceram intactas, uma continuidade a que Roberto Schwarz se referiria como o “caráter ornamental” da modernidade brasileira e que Francisco Foot Hardman chamaria de “barbárie civilizada” (tomando emprestado o termo de Lenin e Adorno) da fantasia republicana (Schwarz, “As ideias” 26; Foot Hardman 131).

Um evento que ocorreu em setembro de 1959, no Plano Piloto, ao norte de onde está hoje a concha de Niemeyer, confirma esse pessimismo. Naquele mês, a Vila Amaury, local que abrigava cerca de 16 mil trabalhadores, foi inundada para a formação do artificial Lago Paranoá. Sob sua cintilante superfície estão os vestígios das pequenas casas de madeira sem pintura dos trabalhadores, uma metáfora assustadora – retomada no romance de Almino – do apagamento dos moradores pobres da capital. Depois de descrever pela primeira vez o enorme Lago Paranoá e aludir à façanha da engenharia de transformar o cerrado árido em um corpo d’água, o romance conta como o irmão de Valdivino foi uma das sete vítimas da empreitada:

Seu irmão era alcoólatra e estava bêbedo quando as águas implacáveis tinham subido em setembro, levando todas as casas da Vila Amaury, fazendo boiar cobras e outros bichos, juntamente com o que saía das fossas destampadas. Seu irmão e mais seis pessoas tinham perecido… (203)

O conceito de empathic unsettlement é particularmente pungente nos momentos de Cidade Livre em que os leitores são convocados a ter empatia com as vítimas de tragédias reais. LaCapra escreve:

Abrir-se para a empathic unsettlement é . . . uma dimensão afetiva desejável de investigação que complementa e suplementa a pesquisa e a análise empírica. A empatia é importante na tentativa de compreender eventos traumáticos e vítimas, e pode (eu acho que deveria) ter efeitos estilísticos na maneira como alguém discute ou aborda certos problemas. Ela coloca em risco narrativas fetichizadas e totalizantes que negam o trauma que as trouxe à existência . . . (78)

Cidade Livre questiona narrativas totalizantes sobre Brasília na forma com que relata eventos reais centrais para relembrar a grande história oficial da capital (a primeira missa, o desfile inaugural, os discursos de Juscelino Kubitschek e assim por diante). A justaposição da Brasília grandiosa e da Brasília como atrocidade social chama a atenção para o poder da composição narrativa e para a tendência de representar o DF ou como um sucesso ou como um fracasso, ao invés de uma trama intrincada e complexa de ambos.

Com uma irreverente tática de colagem, Almino insere no romance declarações sobre a capital feitas por ilustres figuras públicas como se elas tivessem sido proferidas diretamente às personagens do romance. Conforme registram as diversas citações que Cidade Livre faz a documentos oficiais (dos anos 1960 a 1970), havia uma forte tendência totalizante de reduzir Brasília a uma solução perfeita, quase sublime, para os problemas nacionais, deixando pouco espaço para críticas ou ambiguidades. Quando as personagens participam da primeira missa católica oficial da capital, uma asserção, que na verdade é uma citação literal das memórias de 1975 de Kubitschek, é inserida. Nela, o ex-presidente relaciona o encontro colonial inicial no Brasil – a chegada de Pedro Álvares Cabral em 1500 – à Brasília, que se apresentaria como a última fronteira nacional a ser colonizada. Fora do contexto, a comparação perde sua grandeza. Ela implica reflexão sobre a longa história de atrocidades não registradas cometidas contra os brasileiros marginalizados. Além disso, a irreverente tática de colagem usada ao longo do romance enfatiza a inventividade da ficção. Os leitores ficam tacitamente cientes de como a representação faz uma mediação, fragmenta e também obstrui o conhecimento.

Os testemunhos históricos e as justaposições em Cidade Livre evitam interpretações idealistas do DF. No final dos anos 1950, quando o presidente Kubitschek transferiu a capital para o centro da nação, Brasília vinculou-se a slogans redutores, como a “Cidade da Esperança” ou o empreendimento de construção mais ousado de todos os tempos no Brasil. Desde 1900, o governo brasileiro frequentemente usa megainfraestruturas ostentosas como prova do progresso nacional, ao mesmo tempo em que oculta as formas pelas quais essas transformações mantiveram intactas estruturas de poder tradicionais (Beal Brazil under Construction). A falsa noção de progresso brasileiro por meio da megainfraestrutura permeia o século XX, tendo Brasília como seu exemplo mais dramático. A narrativa oficial sobre a nova capital assemelha-se à noção de mito nacional de Timothy Brennan: uma nação distorce coletivamente um aspecto de sua identidade para vincular sua comunidade imaginária a elevados valores morais em um processo que obscurece a violência e as contradições (45-49). Cidade livre desmascara o discurso simplista e monolítico do governo sobre a capital. A especulação imobiliária do DF foi marcada pela continuidade, não pela ruptura, com o passado do país. Espectros da apropriação de terras colonial, uma economia de plantação e reformas agrícolas fracassadas se escondem sob as curvas sensuais do concreto armado. A concha da capital era deslumbrante e nova, mas a distribuição de terras e poder era surpreendentemente familiar. Por meio da inserção de informações históricas (citações diretas dos fundadores da cidade, descrições de como os lotes foram distribuídos e assim por diante) e da forma de contar (a justaposição de Valdivino e Moacyr; da fanfarra inaugural e da violência, dentre outras), o romance alerta o leitor para o fato de que a especulação imobiliária assombra o DF desde o início de sua construção. Regina Zilberman entende esse elemento do romance de forma diferente. Ela argumenta que Valdivino, como representante alegórico dos candangos originais, é a figura sacrificial cujo assassinato é o crime sublimado em que Brasília se funda, e seu fantasma indestrutível paira sobre a cidade (41, 44). Ela enfatiza a importância do cadáver de Valdivino nunca ter sido encontrado, um símbolo da falta de fechamento relacionado à violência vivida pelos candangos originais da cidade (45). No entanto, Zilberman ignora o componente mais intrigante do romance: seu convite à união entre passado e presente, já que a especulação imobiliária durante a fundação da capital continua existindo e moldando a desigualdade na Brasília contemporânea.

Alusões literárias

Assim como convida o leitor a reconhecer os testemunhos históricos – conectando sua história a uma história real – o romance igualmente convoca o leitor a reconhecer as alusões literárias – conectando sua história a uma história literária real. Cidade Livre revela como as artes discursivas, apesar de inventadas, influenciam as interpretações do Brasil (Crook “Black Consciousness”; Porto “Political Controversies”; Sommer Foundational Fictions; Valente “Alencar’s”; Valente “Fiction as History”; Vieira “Testimonial Fiction”). O romance alude a textos ficcionais dos escritores brasileiros mais famosos, principalmente a narrativas consideradas fundacionais. Ao incluir tantas referências literárias, Cidade Livre revela a impossibilidade de escrever sobre uma tabula rasa. Desse modo, o romance estabelece um paralelo com a inviabilidade da criação de uma capital nacional em uma tela em branco.

Com alusões que quase beiram o pastiche, Cidade Livre chama a atenção para a escrita como práxis vinculada à tradição mais ampla de produção de obras criativas que criticam e influenciam noções da comunidade imaginária do Brasil (Anderson 16–36). O pai adotivo de João se chama Moacyr, mesmo nome da personagem conhecida como o primeiro brasileiro em Iracema, de José de Alencar. Como um dos pioneiros a se mudar para o canteiro de obras de Brasília, Moacyr representa o novo brasileiro de meados do século, ironicamente caracterizado por seu desejo egoísta de enriquecer por meio de contratos ilícitos de imóveis e de construção. O texto inclui longas listas de flora e fauna nativas no estilo de Macunaíma. Assim como no romance de Mário de Andrade, tais listas deliciam o leitor com as próprias palavras e registram epistemologias alternativas nas quais esse conhecimento do mundo natural é muito valorizado.[10] Porém, no contexto de Cidade Livre, essas listas também assinalam a perda de um meio ambiente ecologicamente rico, bastante destruído para a criação do DF. Semelhante aos exploradores geográficos do romance Quarup, de Antonio Callado, que descobrem nada mais do que um formigueiro no centro exato do Brasil, em Cidade Livre três homens explorando o centro do país encontram cupinzeiros. Assim como Clarice Lispector, que em sua famosa crônica sobre Brasília imaginou o DF como as ruínas desenterradas de uma civilização milenar, Almino volta à imagem da capital como as ruínas de uma cidade perdida. (Almino, Cidade Livre 220; Clarice 162-63). A autoconsciência do romance sobre a escrita e a autoria é semelhante a São Bernardo. Zilberman cita esse romance de Graciliano Ramos como o principal texto com o qual Cidade Livre dialoga, mas na verdade a saturação das alusões sobrepõe-se a qualquer referência única (31-32).

Uma vez que as interrupções do narrador remetem a Machado de Assis (em seus últimos romances), elas fundamentam o compromisso de Cidade Livre mais com a ficção (alusões a outros textos) do que com a realidade (um relato preciso da história). Às vezes, João, de Cidade Livre, imita a falta de controle dos narradores de Machado:

Basta! Escrevi demais sobre o dia 20 de abril e penso que talvez deva dividir este capítulo em dois, porque a partir de agora já estamos no dia seguinte, 21 de abril, dia da inauguração de Brasília… (81)

Em outros casos, o narrador de Almino compartilha a inserção de opiniões e dúvidas dos narradores do escritor carioca: “que tenha sido um dia de setembro pode ser uma informação desnecessária, mas prefiro registrá-la” (115). Ou, por fim, João, de Cidade Livre, faz recomendações ao seu leitor no estilo dos narradores machadianos: “Não tenho certeza disso e recomendo ao leitor que se interessa por esse tipo de detalhe que vá àquelas fontes conhecidas” (157). As interjeições da voz narrativa, como em Machado de Assis, ressaltam que Cidade Livre é ficção, que se dedica a inventar, resgatar o frescor da linguagem e manipular símbolos.

Várias passagens aludem a textos de Guimarães Rosa. A caracterização de Valdivino como sertanejo – cujo misticismo, conhecimento do mundo natural, modo de falar rural nordestino, medo dos próprios pecados e recebimento de ameaças de morte – o equipara a muitas personagens de Rosa, em especial Riobaldo de Grande sertão: veredas. João e Moacyr conhecem Valdivino pela primeira vez quando acampam sob as estrelas durante uma viagem de caçada. Eles acordam e encontram um estranho (Valdivino) vigiando-os, supostamente para protegê-los dos gatos-do-mato, em uma cena em que não fica claro se Valdivino é o herói ou o pretenso predador, bem ao estilo da história “Meu tio, o iauaretê”, de Guimarães Rosa. O romance traz ainda referências (inclusive em epígrafe) aos dois contos de Primeiras estórias que se passam em Brasília na época de sua construção. Essas alusões evidenciam o fato de que o jovem João, como o protagonista de Guimarães Rosa em “As margens da alegria”, fica mais emocionado com as plantas e animais da savana tropical do que com a cidade em construção.

O romance está tão saturado de referências literárias que cada leitura – dependendo da mentalidade do leitor e do conhecimento dos textos aludidos – convida a diferentes associações, o que acentua a capacidade do leitor de influenciar a interpretação, tornando Cidade Livre um exemplo do que Barthes chama de “texto escrevível”.[11] Os heróis e anti-heróis da ficção fundacional do Brasil pairam sobre o romance de Almino. Entregando-se ao jogo literário de localizá-los, os leitores se conscientizam da falsidade de Cidade Livre (seu comprometimento mais com a ficção do que com a história) e do poder das narrativas sobre a imagem da nação.

Conclusão

Vários capítulos deste livro refletem sobre quem pode representar publicamente Brasília, uma concepção do direito criativo à cidade. Behr afirma que “todo mundo tem o direito de criar a sua cidade”, mas muitos dos capítulos neste livro consideram os fatores que limitam a possibilidade de certos grupos de fazê-lo abertamente (BrasíliA-Z 166). Em seu ativismo para garantir que mais escritores LGBTI+ e negros do DF tenham a oportunidade de se fazer ouvir, tatiana nascimento proclama a importância do devaneio, de ser capaz de inventar livremente sem a necessidade de que sua prosa ou poesia seja um grito de guerra político (“o cuíerlombo” 15). Cidade Livre, ao oscilar entre a negação de seus laços com a realidade e o questionamento da história oficial da capital, compartilha a preocupação de nascimento tanto em proteger a licença criativa do escritor quanto em expor a falta de oportunidade de alguns grupos de representarem a cidade publicamente. No Quinteto de Brasília de Almino, as lutas envolvidas no processo criativo e no direito criativo à cidade se confundem. Suas narrativas expõem os obstáculos enfrentados para que o trabalho criativo e as ideias dos moradores do DF cheguem ao público.

Notas


[1] Os romances de Almino dialogam frequentemente com as artes visuais: há referências a artistas famosos e uma das personagens recorrentes, Cadu, é fotógrafo. Apesar de considerar-se talentoso, Cadu parece ser um profissional medíocre. Suas fotografias são centrais na trama de Ideias e de O livro das emoções, mas nenhuma foto é efetivamente reproduzida nos romances, levando o leitor a ter que imaginá-las, como o próprio Cadu precisou fazer depois de ficar cego na velhice. A ausência dessas imagens, somada à preocupação dos narradores em descrevê-las, enfatiza, no Quinteto, a questão dos limites da linguagem para transmitir significado, seja visual ou emocional. Em O livro das emoções, Cadu inclui fotos em close das vulvas de suas amantes em uma exposição que, ao mesmo tempo, é um fracasso crítico e desperta debates éticos. Em paralelo curioso, o fotógrafo brasiliense Kazuo Okubo despertou a fúria das feministas em 2019 pela maneira como convidou mulheres a participarem de seu “Inventário” (trabalho em contínuo processo desde 2004), uma série de fotos em close das vulvas de mulheres de todo o Brasil (Martins Ribeiro; Pareja Norbiato).

[2] Íris Quelemém, também conhecida como Lucrécia, é uma profetiza de Jardim da Salvação cujo sobrenome alude a Quelemém de Góis, confidente espírita de Riobaldo em Grande sertão: veredas. A presença de Íris Quelemém (em todos os livros do Quinteto e no romance Enigmas da primavera (2015), de Almino) vincula a ficção do autor à forte tradição de comunidades religiosas de Brasília, em particular ao Vale do Amanhecer (a 44 quilômetros do Plano Piloto) e à falecida médium Tia Neiva, e à Cidade Eclética (a 70 quilômetros do Plano Piloto) e ao falecido médium Mestre Yokaanam. Ambos os médiuns são, supostamente, mentores de Íris.

[3] A Cidade Livre nunca foi, de fato, destruída e agora é a região administrativa Núcleo Bandeirante.

[4] De 1957 até sua morte, em abril de 1960, Valdivino morou em um barraco que construiu na Cidade Livre, em dois acampamentos operários, no acampamento operário informal Vila Amaury e na comunidade religiosa Jardim da Salvação, além de passar alguns dias na casa de Moacyr na Cidade Livre em um momento de necessidade.

[5] Cidade Livre brinca com abreviações, assim como Memorial de Aires. Esse livro de Machado de Assis é abreviado da mesma forma que o nome de seu autor: M. de. A. Para uma análise do desejo do narrador em manter sua identidade ambígua para ter mais liberdade, num jogo literário que inverte os papéis do objeto criado e do sujeito criador, ver Assman Saraiva e Mügge 202-203 e Zilberman 30-31.

[6] Exemplos incluem os discursos de Kubitschek reunidos em Discursos selecionados e seus livros A marcha do amanhecer (1962) e Por que construí Brasília (1975); a proposta de design urbano vencedora para a nova capital de Lucio Costa (1957) e seu “O urbanista defende sua cidade” (1967), incluído em Lucio Costa: registro de uma vivência; e Minha experiência em Brasília (1961), de Oscar Niemeyer.

[7] Na descrição das festividades em torno da inauguração de Brasília, Cidade Livre conta que Niemeyer e Costa fizeram parte da procissão oficial quando, na verdade, nenhum dos dois esteve presente na inauguração. Não está claro se esse detalhe histórico incorreto é um deslize do autor ou uma ficcionalização intencional.

[8] Um desses exemplos é a famosa citação de Simone de Beauvoir: “a rua, esse lugar de encontro entre moradores e turistas, lojas e residências, veículos e transeuntes – graças a essa mistura caprichosa sempre imprevista – a rua, tão cativante em Chicago como em Roma, em Londres como em Pequim, na Bahia como no Rio, por vezes deserta e sonhadora, mas cujo silêncio é vivo, a rua em Brasília não existe e nem existirá” (Sob o signo 280).

[9] Para mais sobre o massacre da Pacheco Fernandes, ver Aquino Teixeira e ver Conterrâneos, de Vladimir Carvalho.

[10] Meira Monteiro associa o fim de Macunaíma, no qual é revelado que um papagaio conta a história de Macunaíma ao narrador, a Cidade Livre, em que vários relatos orais e escritos constituem a história: “A diferença é que não há papagaio palrador na história candanga, embora o esforço de recomposição da história seja também a tentativa de escuta de uma voz teimosa e, no caso de Cidade Livre, jogada entre o pleno encantamento do futuro e a dureza que enfrentam os que resolvem dar forma a ele” (“Cidade Livre”).

[11] Barthes classifica os textos como legíveis e escrevíveis. Os textos legíveis “são produtos (e não produções)”, que permitem “uma espécie de ociosidade” na qual o leitor se torna “intransitivo”, um receptor passivo (S/Z 5). No entanto, os textos escrevíveis procuram “fazer do leitor não mais um consumidor, mas um produtor do texto” (S/Z 4).

Next Chapter
4. Encontros criativos na Brasília de Nicolas Behr
PreviousNext
Text
This text is licensed under a CC BY-NC-ND 4.0 license.
Powered by Manifold Scholarship. Learn more at manifoldapp.org