CAPÍTULO 4
Encontros criativos na Brasília de Nicolas Behr
O livro de verbetes de Nicolas Behr, BrasíliA-Z: cidade-palavra (2014), mostra como inúmeros encontros criativos – intercâmbios afetivos que reúnem moradores para compartilhar arte ou promover cultura – acontecem na capital desde os anos 1960 até os dias atuais. O livro funciona como um palimpsesto no qual cada relato sobre um encontro criativo no DF revela também outros exemplos desses encontros, processo que permite a exibição da longa história de Brasília como uma vibrante cidade das artes. Coletivamente, esses exemplos corroboram que, para Behr, a capital tem sido um lugar de imensa realização emocional.
Como o subtítulo aponta, o livro brinca com a ideia de ler a cidade como texto (Lynch; Barthes “Semiology”; Lefebvre, The Production 142-45; Certeau 93-100; B. Carvalho 1-4). No entanto, o termo também alude a como, na escrita criativa, uma cidade sempre representa mais do que uma realidade objetiva. Como Virginia Woolf escreveu em 1905, insistir que uma cidade em um romance “tem qualquer contrapartida nas cidades da terra é roubar metade de seu charme” (35). Em textos ficcionais (e eu diria que também em textos não-ficcionais e semi-ficcionais, como BrasíliA-Z) a cidade incorpora o estado mental de uma personagem, captura o humor de uma geração, reflete as relações sociais ou enfatiza uma emoção desejada. Behr afirma que “todo mundo tem o direito de criar a sua cidade” (BrasíliA-Z 166) e, em BrasíliA-Z, a capital desse autor – o lugar onde ele vive, do qual se lembra e que também inventa – oferece arte, amor e alegria. Mas a Brasília de Behr é, principalmente, o local onde encontros criativos levam à realização emocional.
Um palimpsesto consiste em um pergaminho que foi escrito ou pintado mais de uma vez. Cada vez que o pergaminho recebe um novo texto, o anterior é em grande parte apagado, mas vestígios dele permanecem, o que revela camadas inferiores de textos diferentes. A metáfora do palimpsesto também se aplica às cidades, funcionando tanto espacial quanto temporalmente. As reformas urbanas, por exemplo, destroem estruturas antigas que evocam prioridades passadas, mas ao mesmo tempo podem deixar para trás vestígios desse passado (B. Carvalho 1-4).
Behr é uma celebridade local, o caso único no Brasil (e talvez no mundo) de um poeta do século XXI que se tornou ícone popular de uma cidade. Muitos escritores são inseparáveis de uma determinada urbe: Dublin pertence a James Joyce, Londres a Charles Dickens e Rio de Janeiro a Machado de Assis. Mas Brasília tem um poeta vivo, ainda ativo, desempenhando o mesmo papel, o que constitui um caso extraordinário. No DF, Behr é um nome familiar: pode-se beber uma cerveja ou comer um pastel que têm o seu nome.[1] Miniaturas a sua semelhança podem ser compradas em uma banca de jornal e é possível adquirir sacolas estampadas com seus versos. O mosaico da parede externa de uma biblioteca reproduz um de seus poemas e três bibliotecas têm o nome de Behr, assim como um prêmio literário da Universidade de Brasília.
As homenagens a Behr começaram em 1979, quando a banda Liga Tripa musicou seu poema “nossa senhora do cerrado” e a Legião Urbana gravou um cover da canção no álbum Uma outra estação (1997). A música se tornou um hino não oficial para a cidade (Marcelo, “Ímpeto” 31). Em 1979, o livrinho mimeografado de Behr Brasiléia desvairada foi transformado em um musical do Teatro Galpãozinho (Behr, Beije-me 83). No mesmo ano, o escritor Severino Francisco chamou o poeta de Brasília de “uma figura quase onipresente, uma pichação de carne e osso” (cit. em Marcelo, “Ímpeto” 33). Um pequeno documentário e dois livros (um escrito por um crítico literário e outro por um jornalista) são dedicados exclusivamente à obra de Behr.[2] Muitos escritores do DF fazem alusão à poesia do autor em sua própria obra, dentre os quais se encontram: Chico Alvim, Vinicius Borba, Daniel Cariello, Letícia Fialho, Marcos Fabrício Lopes da Silva e Augusto Rodrigues. Behr também figura em uma cena que se passa no bar Beirute em 1972, no romance A noite da espera (2017), de Milton Hatoum. Sérgio Maggio, escrevendo em 2018, confirma a celebridade do poeta de Brasília: “Nicolas Behr chega aos 60 fazendo o que poucos poetas conseguiram em vida. É lido, relido, falado, imprimido, discutido, pesquisado, escaneado, postado, espalhado, compartilhado, homenageado e viralizado”. Esta popularidade impressiona ainda mais se levarmos em conta que Behr é um poeta que publica grande parte de sua obra de forma autônoma e que nunca frequentou a faculdade ou os proeminentes círculos literários. Para ele, ser escritor é ser um empreendedor: ele é seu próprio editor e publicitário. Ele é empresário em outro sentido também, já que com sua esposa, Alcina Ramalho, administra um grande viveiro de plantas (Behr, A lenda, primeira orelha).
Filho de imigrantes,[3] Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr nasceu em Cuiabá, Mato Grosso, em 1958, e mudou-se para Brasília em 1974. Tornou-se parte da primeira geração de adolescentes a amadurecerem em Brasília, paralelamente ao processo da cidade de 14 anos que, como diz Behr, também “estava adolescendo” (“Travessa palavra” 48). Behr cresceu na Asa Sul, nas Quatrocentas, e associa o tempo que morou na 415 Sul com a fase mais criativa de sua vida, entre os 17 e os 20 anos (BrasíliA-Z 126). Participante da geração do mimeógrafo, ele começou sua carreira literária criando livrinhos de poesia mimeografados, que vendia informalmente em concertos e eventos locais. Seu primeiro livrinho, Iogurte com farinha (1977), chegou à impressionante marca de oito mil exemplares vendidos (Behr, Laranja seleta, segunda orelha). O DOPS prendeu Behr quando ele tinha 20 anos, em 1978, porque seus livrinhos mimeografados foram considerados pornográficos. Ele passou um dia na cadeia antes que seus pais pagassem sua fiança e o levassem para casa. No ano seguinte, um juiz o considerou inocente (Marcelo, “Ímpeto” 21-23, 31).[4]
No século XXI, Behr assumiu o novo papel de preservar a memória cultural de Brasília. O livro Beije-me (2009) é uma série de fotografias da geração mimeógrafo e das pichações na capital no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. No entanto, BrasíliA-Z (2014), que Behr publicou de forma independente, foi seu primeiro texto a fazer a ponte entre exemplos passados e atuais de encontros criativos no DF, apresentando-os como uma característica da cidade.
BrasíliA-Z é um livro de 173 páginas com 240 verbetes. Devido à popularidade do livro (disponível para venda em algumas livrarias de Brasília, na banca de Conceição Freitas e em eventos literários), Behr publicou outras duas edições em 2014 e, atualmente, o livro está em sua décima tiragem.[5] A obra é composta por fotografias e parágrafos de verbetes focados em um único tema relevante para Brasília. Fotografias, poemas, canções, filmes, esculturas, livros e histórias mencionadas ou reproduzidas formam a imagem da Brasília de Behr. Os verbetes compartilham anedotas sobre a construção da capital, descrevem plantas locais, registram os sonhos de Behr, discutem sobre pontos de encontro artísticos ou incluem crônicas fantásticas escritas pelo próprio autor.[6] As entradas mudam abruptamente: em um parágrafo, lemos uma história pessoal que se passa em uma determinada década; em outro, há a reprodução de letras de músicas concebidas em um período histórico diferente; em parágrafo seguinte, nos deparamos com um mito urbano. Esses variados assuntos, somados à linguagem informal, dão à obra um tom intimista, como se os leitores estivessem em uma conversa casual com o autor.
A estrutura de BrasíliA-Z evoca um palimpsesto em que fragmentos de diversos períodos dialogam. O texto é híbrido: antologia, memórias, guia turístico, trabalho de não-ficção criativa, livro de verbetes e coleção de anedotas orais que abrangem décadas.[7] Essa hibridez demonstra que a imagem que Behr faz de Brasília é uma mistura do que ele leu, da cultura que consumiu, dos poemas que escreveu e dos sentimentos que viver naquela cidade desperta. BrasíliA-Z confirma o argumento de Victor Burgin de que “a cidade em nossa experiência real é ao mesmo tempo um ambiente físico realmente existente e uma cidade em um romance, um filme, uma fotografia, uma cidade vista na televisão, uma cidade em uma tira de quadrinhos, uma cidade em um gráfico de pizza e assim por diante” (28). Como sugere a metáfora do palimpsesto, as representações da cidade nos fragmentos de BrasíliA-Z formam a imagem de uma capital culturalmente vibrante.
O livro conduz o leitor pela memória de Behr sobre arte e encontros criativos. O tom informal, o gênero híbrido, a criatividade e a fragmentação distinguem o texto de uma história cultural de Brasília, ligando-o mais a um conjunto de memórias pessoais e de obras de arte comentadas. A ordem não é cronológica e está sempre relacionada às emoções que Brasília desperta em Behr. Sua imagem da cidade é o produto tanto de sua voz individual (otimista, curiosa e interessada em se conectar com as pessoas) quanto de sua posicionalidade como um homem branco, de classe média, que cresceu e continua a viver em partes centrais do DF, o que lhe proporciona uma liberdade de mobilidade através dos espaços públicos da capital. Poucos têm uma memória tão aguçada ou coletaram tantos materiais da geração do mimeógrafo de Brasília quanto Behr. Em sintonia com seu extremo otimismo, sua memória enfatiza o que é bom sobre a capital, o que fortalece o sentimento de realização emocional no livro.
A mordaz citação de Simone de Beauvoir que aparece logo no primeiro verbete de BrasíliA-Z condensa a ideia contra a qual Behr está escrevendo. Em carta redigida ao seu amante em 1960, de Beauvoir previu que “Brasília nunca terá alma” (BrasíliA-Z 12; A Transatlantic 534). Outro verbete de Behr apresenta estereótipos semelhantes sobre a cidade, incluindo “Brasília é uma cidade fria . . . Brasília não tem vida noturna. / O que você vai fazer em Brasília? Lá não tem nada pra ver. / Brasília não tem gente, nem calçadas nem bares”.[8] O livro se esforça para provar que de Beauvoir e outros céticos estão errados através de exemplos de espaços públicos em Brasília que atuam como locais de encontros criativos. Os verbetes que destacam a agitação da arte de rua no DF se tornam ainda mais contundentes após de Beauvoir ter dito que “a rua, em Brasília, não existe e nunca existirá” (Beauvoir, A força 642). Behr exalta a cultura popular de rua, incluindo as festas juninas, o Carnaval (os blocos ARUC e Pacotão), a trupe Esquadrão da Vida, em atividade desde 1979, e os palhaços de rua. Ele insiste em uma definição não elitista da arte, afirmando que a palhaçaria de rua “é arte” (117).
Behr se descreve como sendo, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, parte da Turma de Cabeças (juventude que frequentava os eventos culturais mensais na Galeria Cabeças), e amigo dos músicos da Turma da Colina, que ele via na Rodoviária, tarde da noite, bebendo caldo de cana (152). Referindo-se ao poeta Pezão, Behr afirma que: “eu o encontrava por aí e ele dizia: ‘Você é o príncipe dos poetas, mas eu sou o rei’” (119-20). Tais lembranças reconstroem um vibrante cenário artístico contracultural em Brasília, cujos integrantes frequentemente se encontravam nos espaços públicos do Plano Piloto. Essas memórias retratam uma cena artística que operava em uma área geográfica relativamente pequena e incluía participantes homogêneos. Em contrapartida, na lista que Behr faz dos saraus da Brasília contemporânea, nota-se que a “geografia poética do Distrito Federal” se expandiu significativamente (Behr, BrasíliA-Z 137). Os saraus ocorrem em muitas regiões administrativas, incluindo as cinco listadas: São Sebastião, Taguatinga, Gama, Samambaia e o Plano Piloto. Para continuar com a metáfora do palimpsesto, é como se a cena literária das décadas de 1970 e 1980 apenas enchesse uma pequena parte do pergaminho, enquanto a cena do século XXI preenchesse a página até as margens. Embora a área geográfica tenha se expandido e o público tenha se diversificado, Behr se concentra no que permaneceu inalterado na cena artística do DF: o compromisso com os encontros criativos. Em referência aos saraus contemporâneos, ele afirma que “todos querem compartilhar algo . . . poesia está na roda, circulando, de mão em mão, de boca em boca” (137). Os encontros criativos transformam Brasília de um espaço frio e abstrato para um lugar pessoalmente significativo para muitos moradores, incluindo o próprio autor e uma nova geração de poetas.
No processo de construção da imagem de Brasília como uma vibrante capital das artes, Behr inventa uma cidade imaginária chamada Braxília, onde o amor, a criatividade e os cidadãos comuns são reverenciados. Ele escreve no verbete “Xis de Braxília”: “Todo mundo tem o direito de criar a sua cidade. A minha é Braxília: a Brasília não-poder, não-capital. Simplesmente uma cidade como outra qualquer, viva, feita de afetos. Por isso Braxília está retratada neste livro: uma Brasília sem o estigma do poder, sem a mácula da corrupção. Utópica, enfim” (BrasíliA-Z 166). Com essas linhas, BrasíliA-Z expressa o direito criativo à cidade, o direito de ter poder sobre como a cidade é representada. O livro concebe a ideia de que, ao fazer criações para a cidade (entendidas amplamente, de forma a incluir tanto cultivo de plantas quanto poemas), qualquer morador pode melhorar Brasília. O livro de Behr é um convite para que os leitores façam o que ele faz e se vejam que têm influência sobre a imagem de sua cidade.
Após um hiato de treze anos, Behr reapareceu na cena literária em 1993 com o livro Porque construí Braxília, apresentando seu neologismo no título e fazendo uma paródia do livro de memórias de JK, Por que construí Brasília.[9] Braxília nomeou o tipo de reinvenção da capital encontrada nos poemas de Behr desde que ele começou a publicar em 1977, então só mesmo o termo, não o conteúdo dos poemas, era novo. O vocábulo Braxília instiga os leitores a formularem uma imagem alternativa da cidade, a fim de vê-la como mais do que apenas o local do poder federal (Beal, “The art” 58-60). Para Behr, essa imagem alternativa ressalta que os cidadãos comuns e não burocratas (incluindo os artistas) podem se envolver, de maneira marcante, na transformação de sua cidade. O X no meio da palavra lembra visualmente a famosa fotografia de Mário Fontenelle, “Marco Zero” (incluída em BrasíliA-Z), que mostra o primeiro X demarcado na terra para criar o eixo central da capital, mas o ar de Braxília é menos grandioso. Behr afirma que Braxília é “construída no dia a dia pelos braxilienses que têm amor pela cidade” (166). Braxília retrata uma experiência urbana mais alegre, oferecendo integração aos moradores comuns, ao invés de reiterar a imagem entrincheirada de Brasília como uma cidade sem alma.[10]
Os poemas e as canções compiladas em BrasíliA-Z reforçam a imagem de cidade que a poesia de Behr tem projetado há anos. As várias canções de amor e poemas (incluindo os de sua própria autoria) constroem a capital como uma cidade onde o amor, embora enfrentando obstáculos, prevalece. Na canção “Brasília”, de Sérgio Sampaio, presente em um álbum póstumo de 2006, um sujeito apaixonado vê pela primeira vez o DF como frio, sem alma e não brasileiro, porque as pessoas não bebem café na esquina conversando com estranhos. Usando jogo de palavras e personificação durante toda a canção, ele lentamente vai gostando da capital e acaba por vê-la com um olhar amoroso (cit. em BrasíliA-Z 142).
BrasíliA-Z alude ao reggae “Um telefone é muito pouco” (1986), escrito por Renato Matos e gravado pela primeira vez por Leo Jaime. Trata-se de um exemplo sintético, localmente famoso, de como a distância física no DF dificulta o amor de um homem que vive no Plano Piloto e namora uma mulher que mora a mais de 20 quilômetros de distância, em Gama. Como ele não pode encontrar sua amada facilmente, sua única opção é falar com ela ao telefone. Na canção, a Asa Norte assume uma qualidade distópica (é infestada de ratos) para um homem entristecido (BrasíliA-Z 154). Um terceiro exemplo é “nossa senhora do cerrado” (1979), do próprio Behr, poema no qual o eu poético deve atravessar uma perigosa rodovia a pé para encontrar sua amada. Nas três obras reunidas, aspectos do ambiente construído dificultam tanto amar Brasília quanto estar apaixonado em Brasília, mas ainda assim o amor prepondera.
Outras obras compiladas concebem a capital como um local que deve ser admirado por seus componentes humanos (mais do que os monumentais), envolvendo muitas vezes os encontros criativos. Behr conta que em 1984 levou Paulo Leminski para caminhar pela Asa Sul, um passeio que culminou no almoço em um restaurante clandestino e inspirou Leminski a escrever um poema. Behr reproduz esse poema, “Claro calar sobre uma cidade sem ruínas (ruinogramas)”, na íntegra. Leminski reflete admirado sobre pequenas infrações ocorridas no plano diretor, que seriam mais instigantes do que os monumentos e o layout lógico da capital. Ele admira como o cotidiano das pessoas está “penetrando nos esquemas” (130). Behr foi o primeiro artista do DF a focalizar a vista das ruas da cidade, exibindo o cotidiano de uma geração nascida nas décadas de 1940 e 1950 cujos valores entraram em conflito com o regime militar. BrasíliA-Z coleta e, assim, comemora visões personalizadas de Brasília, como a de Leminski.
BrasíliA-Z inclui diversos poemas e canções sobre a capital. O efeito da inserção desses trabalhos é triplo. Primeiro, eles mostram a intensa atividade dos próprios artistas de Brasília (Anderson Braga Horta, Paulo Tovar, Haroldinho Mattos e assim por diante), chamando a atenção também para autores canônicos que viveram na capital, como João Cabral de Melo Neto, residente do DF de 1961 a 1964. Em segundo lugar, eles minimizam o status de Behr como o poeta de Brasília, demonstrando casos em que a cidade também tem servido de musa para outros artistas. Em terceiro lugar – uma vez que não foram concedidas permissões para a inclusão desses poemas e letras – as obras compiladas dão ao livro um aspecto subversivo, assemelhando-o aos livrinhos mimeografados que Behr escreveu durante a ditadura militar.
Behr opta por compilar quatro de seus próprios poemas: “L2 é pouco” (1979), “nossa senhora do cerrado” (1979), “naquela noite” (1980) e “nem tudo” (1993). Ao reproduzir os três últimos poemas, que foram apropriados por artistas e empresários, ele enfatiza o quão profundamente sua poesia se envolveu em colaborações criativas que moldaram a imagem da cidade. Ele observa que os artistas de mosaicos do grupo Loucos de Pedra (liderados por Gougon) incluíram “naquela noite” (além de poemas de Chico Alvim, Ana Maria Lopes e Cassiano Nunes) em seus mosaicos na Biblioteca Maria da Conceição Moreira Salles e que “nossa senhora do cerrado” foi transformada em canção. Embora Behr não mencione, os artistas do Loucos de Pedra e Gougon também transpuseram “nem tudo” para um mosaico na 705/706 Sul em 2004, e tal poema estampa, ainda, sacolas que são vendidas em Brasília (Gougon).[11] Esses quatro poemas mostram a façanha de Behr em criar versos humorísticos para uma cidade retratada frequentemente com desprezo.
Com os poemas de 1979 e 1980 que Behr reproduz no livro, ele sintetiza uma de suas maiores realizações: a capacidade de criar uma nova imagem do DF, capturando de forma brincalhona os desejos da juventude da classe média que estava se tornando adulta na capital durante a ditadura militar. Em sua poesia do século XX, Behr transformou a imagem de Brasília subvertendo o plano original sem alma da capital através do humor, do jogo de palavras e da intertextualidade (Beal, “The Art”; Butterman; Furiati; Guazina; Manzoni; Salgueiro; Vieira da Silva). Ao fazê-lo, ele contrastou as experiências cotidianas e emocionais da juventude de classe média à imagem hegemônica da capital como monumental e alienante.[12] Por exemplo, no poema “naquela noite” (do livro L2 noves fora W3, de 1980), o DF inspira novas formas de erotismo. Suzana, em quem o eu lírico está interessado, “estava / mais W3 do que nunca / toda eixosa / cheia de L2” (BrasíliA-Z 95). As rodovias de Brasília – com seus nomes desconhecidos e aparentemente frios – servem paradoxalmente para aproximar uma sensualidade impossível de capturar em palavras. “L2 é pouco”, do livrinho mimeografado Saída de emergência, conjura a imagem absurda de um motorista que dá as mãos a um assento do transporte público e vê no “passeio” de ônibus circular por Brasília um elixir para sua tristeza:
L2 é pouco
W3 é demais
quando estou muito triste
pego o Grande Circular
e vou passear
de mãos dadas com o banco (BrasíliA-Z 72).
O início do poema incorpora nomes de rodovias de Brasília em alusão à expressão “um é pouco, dois é bom, três é demais”, que também é o título português da sitcom estadunidense Three’s Company, apresentada no Brasil na época da publicação do poema. A voz poética torna a expressão nonsense, como se desistisse do sistema numérico do DF e optasse por viajar em círculos em um transe de flerte com a cidade.
Em “nossa senhora do cerrado”, originalmente publicado em Entre quadras, o locutor recita uma oração antes de enfrentar a travessia da Rodovia do Eixão a pé:
nossa senhora do cerrado,
protetora dos pedestres
que atravessam o eixão
às seis horas da tarde,
fazei com que eu chegue
são e salvo na casa da noélia (Behr, Poesília 46)
A Brasília dos carros parece tão hostil aos pedestres que eles devem solicitar a ajuda de um santo padroeiro inventado para conseguir atravessar a rodovia ilesos. No entanto, a solenidade dessa interpretação é enfraquecida pelo contexto da travessia. O eu lírico não está enfrentando a Rodovia Eixão a pé na hora do rush por necessidade, mas pelo desejo pessoal de ver Noélia – uma referência à poeta Noélia Ribeiro, que foi namorada de Behr por cinco anos e cuja casa se tornou um ponto de encontro cultural (Marcelo, “Ímpeto” 27, 30). Como já afirmei anteriormente, a voz poética “transforma Brasília em um lugar de pedestres e de sujeitos desejantes, distanciando a cidade de sua relação capitalista com o trabalho, a velocidade e o enriquecimento (simbolizada pelos carros apressados) e de sua relação burocrática com a legislação e a lei (simbolizada pela rede de rodovias e por proibições quanto ao trânsito de pedestres)” (Beal, “The Art” 56). Desejando encontros criativos, o eu lírico invoca um falso santo cristão, um dos muitos exemplos na poesia de Behr de alusões lúdicas ao cristianismo.
O último poema da própria autoria de Behr é “nem tudo”, que evoca a expressão “Deus escreve certo por linhas tortas” e exalta a beleza das ignoradas árvores do cerrado:
nem tudo que é torto
é errado
veja as pernas do Garrincha
e as árvores do cerrado (BrasíliA–Z 36)
A referência a uma estrela do futebol brasileiro acrescenta à informalidade do poema, mostrando que a poesia pode tratar de temas da cultura popular e não precisa se restringir a ideais e emoções elevadas. Vistos juntos, os poemas e os comentários de Behr sobre como eles foram reaproveitados enquadram Brasília como um local de alegria, colaboração criativa e realização emocional.
Embora BrasíliA-Z aborde muitos gêneros de arte, ela concebe Brasília principalmente como uma cidade literária. Isso é feito por meio de poemas compilados e também através de verbetes sobre grupos literários, eventos e publicações (“Saraus”, “Bric-a-Brac”, “Lira Pau-Brasília”, “Oi Poema” e “Noite Cultural T-Bone”) e sobre poetas individuais da capital. Como o DF é frequentemente associado à corrupção, à burocracia e à agitação política, BrasíliA-Z fornece um novo ângulo para ver a cidade.
Além da foto do autor no final do livro, BrasíliA-Z contém vinte e seis fotografias, uma para cada letra do alfabeto. O fato de que a maioria dessas imagens se relaciona tanto com a arquitetura e o design originais da capital (11 fotografias) quanto com o movimento da juventude contracultural (quatro fotografias) dos anos 1970 evidencia a importância desses dois momentos artísticos para a percepção que Behr tem de Brasília. As imagens da construção da capital não captam o que Behr testemunhou, mas constituem uma iconografia famosa (dos arquivos públicos do DF) enraizada na imaginação das pessoas (BrasíliA-Z 2). No entanto, a inclusão de quatro fotografias da cena cultural dos anos 1970 sugere que – após o projeto inicial e a arquitetura do final dos anos 1950 e 1960 – o próximo movimento mais vibrante artisticamente de Brasília foi o da juventude contracultural dos anos 1970.
Essas fotografias (e os verbetes relacionados) captam uma urgência para “humanizar a maquete” (Behr, BrasíliA-Z 16, 58) através dos encontros criativos que dão vida ao ambiente construído da capital. Uma foto foi tirada em frente ao Teatro Galpãozinho em 1979 e apresenta dois jovens vestindo uma fantasia gigante do Plano Piloto. O figurino é do já citado musical, baseado na poesia de Behr e escrito e interpretado por Zelito Passos, Gera de Castro e Behr (Behr, Beije-me 83).[13] A imagem condensa o desejo dos jovens de dar vida a Brasília através das artes, pois eles literalmente encarnam uma representação de sua cidade natal.[14] Além disso, o grupo de rapazes em frente à fantasia registra o zeitgeist do momento: um moço, de cabelos desgrenhados, sem camisa e com óculos escuros à la John Lennon toca um bandolim. A imagem sinaliza como um movimento juvenil contracultural estava mobilizando várias formas de arte e colaborações para transformar a jovem capital em uma vibrante cidade das artes.
A segunda fotografia captura uma frase de Paulo Tovar, “Sei sua sede parede”, pichada em um muro (BrasíliA-Z 115). A imagem conjura o desejo de humanizar o plano mestre, como se as paredes estivessem sedentas por spray, arte e contato humano. Behr concebe essa pichação como parte de um fenômeno maior, que são os encontros criativos: “intervínhamos nas pichações dos outros, colocando uma vírgula aqui, uma outra palavra ali. Intervenção urbana. Poetas do spray, diziam os jornais” (140). Behr não diz que muitos brasilienses provavelmente estavam menos entusiasmados com a transgressão e associa essas pichações à gratificação emocional e à poesia. A imagem registra a marca de artistas das décadas de 1970 e 1980 na cidade. O verbete termina ligando o passado ao presente: “esta outra [pichação]: A ARTE ESTÁ SOLTA. Ainda está” (140), como se uma exploração da vibração das artes da cidade no passado fosse uma ponte para a vibração artística do presente, como um palimpsesto que revela suas camadas.
Uma terceira fotografia exibe o mais célebre local de arte de BrasíliA-Z, a Galeria Cabeças na 311 Sul, com Behr e três amigos colocando suas cabeças para fora do batente da porta de madeira. A fotografia fornece uma imagem de jovens da década de 1970 intervindo com o ambiente construído de modo a transformar a imagem da cidade. Para Susan Ruddick, “os espaços públicos não servem apenas para fazer emergir comportamentos particulares previamente estabelecidos, mas se tornam um meio ativo através do qual novas identidades são criadas e contestadas” (135). Behr demonstra que isso aconteceu na Cabeças nas décadas de 1970 e 1980. Um assunto constante no livro são os shows mensais que ocorriam fora da galeria no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, estreando jovens músicos que teriam carreiras de sucesso, como Cássia Eller. No verbete “Cabeças”, Behr descreve o significado desse encontro criativo: “Pela primeira vez uma geração de brasilienses, aqui nascidos ou não, desceu dos blocos e ocupou o quintal coletivo que são os gramados das superquadras” para “ouvir música, ler poesia, se encontrar” (30). O verbete é lido como um chamado para exercer o direito de ocupar criativamente o espaço público em Brasília e conecta os esforços atuais nessa direção com a Galeria Cabeças, observando que “seria o que hoje chamamos de ‘ocupação’” (30).
Outra fotografia captura a fachada de madeira do antigo armazém da Novacap na 508 Sul, que foi invadida por atores culturais para formar primeiro o Teatro Galpão e, depois, o Galpãozinho e o Centro de Criatividade (Dornas). A atenção que Behr presta aos espaços de arte passados e atuais cria um palimpsesto no qual as ofertas culturais do passado e do presente da cidade são simultaneamente trazidas à tona. Este palimpsesto, principalmente do Plano Piloto, mostra locais culturalmente relevantes de diferentes décadas, todos visíveis e colocados em comparação. Quando Behr escreve que o Galpãozinho, o Galpão, a Escola Parque e o Centro de Criatividade eram os centros criativos das décadas de 1970 e 1980, ele afirma que esses lugares desempenhavam o papel, para a cidade, que atualmente cabe ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB): “era por ali que a cidade pulsava” (70). O autor condena o abandono do edifício Galpãozinho como “um flagrante caso de falta de amor pela cultura, pela cidade, pela arte” (70). Sua descrição do bar PDS (na 408 Norte) faz com que o estabelecimento pareça funcionar para uma geração artística atual como o Beirute (na 109 Sul) serviu para a geração de Behr. Ele faz questão de apontar os endereços e explicar se os nomes mudaram, para que seus leitores possam visualizar locais que não estão mais lá ou que foram transformados em outra coisa (como o Centro de Criatividade, que virou o Espaço Renato Russo). Ao comparar lugares dos anos 1980 e do presente, Behr sugere que a atual vibração cultural de Brasília encontra seu legado nas décadas anteriores. A memória é um processo pelo qual as lembranças do passado são trazidas para o presente, e nessas fotografias e verbetes relacionados, Behr liga explicitamente passado e presente para tornar as décadas de 1970 e 1980 mais atraentes para os leitores que não a vivenciaram. Juntos, as imagens e os textos atuam como um chamado para manter a capital culturalmente vibrante.
Os vários verbetes sobre as esculturas de Brasília contribuem para a metáfora do palimpsesto, elegendo aspectos da arte pública da capital que são visíveis no presente e conectando-os à história do DF. Massey descreve o espaço como uma “coleção de histórias entrelaçadas”, e os verbetes mais interessantes do livro de Behr são aqueles que trazem os objetos culturais e o passado de Brasília à tona (119). As histórias do poeta sobre esculturas desfamiliarizam aspectos da paisagem urbana aos quais os leitores podem estar desatentos. Ele elogia as esculturas esféricas de Darlan Rosa, particularmente aquelas em frente ao CCBB, que foram construídas para interação humana, um convite para transformar os espaços públicos de Brasília em áreas de lazer (23). Behr reconta a piada de que a escultura “As Iaras”, de Alfredo Ceschiatti, do lado de fora do Palácio da Alvorada, retrata as filhas de JK arrancando os cabelos porque não queriam se mudar para Brasília. Behr aponta que o escultor francês Ange Falchi pediu que sua escultura (apelidada de “Chifrudo”) fosse colocada na entrada da cidade em 1967, mas o artista plástico não previu que sua obra seria colocada em um trecho sem importância da rodovia BR-040, a quilômetros do centro da cidade. Um verbete pondera sobre a estranheza de haver uma réplica da escultura da sereia de Copenhague fora do quartel-general naval (141). Outro simpatiza com a ex-primeira-dama Sarah Kubitschek – que teve de suportar a notória infidelidade de seu marido – retratada segurando a mão de Juscelino em uma escultura de ferro em frente ao Memorial JK (136-37). Behr observa que as esculturas de Brasília são muitas vezes conhecidas por apelidos: “Os Guerreiros”, de Bruno Giorgi, na Praça dos Três Poderes, é chamada de “Os Candangos”; “As Iaras”, de Ceschiatti, é popularmente conhecida como as “As Banhistas” e “Solarius”, de Falchi, é famosa como “Chifrudo” (33, 65, 38). Esse detalhe sugere a relação pessoal dos moradores com as esculturas, o que enfatiza o poder dos brasilienses sobre a representação de sua cidade.
O mais pungente dos verbetes sobre esculturas é “Desamor”, que contraria a tendência no livro de destaque à presença do amor em Brasília. Aqui, ao contrário, Behr relata o hediondo assassinato do indígena Galdino Jesus dos Santos por cinco jovens ricos em um ponto de ônibus do Plano Piloto em 1997. Os criminosos só cumpriram três anos de prisão. Behr conta a história de como a praça 703/704 Sul recebeu um novo nome, Praça do Compromisso, para homenagear Galdino e, em 1997, o escultor Siron Franco criou um monumento em homenagem à morte e à memória do indígena (50). A mudança de nome ressalta – voltando à metáfora palimpsesto – como situações extremas (como um crime de ódio) catalisam transformações no ambiente construído e em sua identidade. Ao fornecer os locais exatos das esculturas, BrasíliA-Z convida os leitores a visitá-las e a pensar nas origens e nos porquês da arte brasiliense. O historiador Guy Beiner afirma que “monumentos, obras de arte, romances, poemas, peças e inúmeras outras produções de memória cultural não fazem, por si só, lembrar. Sua função como aides-mémoire está sujeita à recepção popular”. As histórias de Behr sobre tais artefatos culturais servem para refrescar as memórias de certos leitores e educar outros sobre as ofertas artísticas da cidade.
Os verbetes de BrasíliA-Z sobre memória cultural compartilhada destacam o poder que os artistas têm sobre a imagem coletiva da cidade. Behr enfatiza a estima dos brasilienses por “Eduardo e Mônica” (1986), da Legião Urbana. Quando a canção de amor baseada em Brasília explodiu nas paradas de sucesso do país, deu à nação uma imagem da capital como um local de criatividade, profundo amor e gírias locais peculiares (a canção inclui o termo camelo, que significa “bicicleta” em Brasília). Behr conta que outra canção de amor ambientada em Brasília, “Léo e Bia” (1979), de Oswaldo Montenegro, inspirou os moradores do DF a votarem para que duas girafas no zoológico da cidade tivessem os nomes dos protagonistas da música (94). Ao reproduzir a letra do hino não oficial de Brasília, de Capitão Furtado e Simão Neto – que foi cantado nas escolas da capital nas décadas de 1960 e 1970 – BrasíliA-Z revela um método oficial usado para transmitir certas imagens patrióticas e redutivas da capital. Essas letras incluem o famoso apelido “Capital da Esperança” e a expressão “a mais fantástica cidade” (BrasíliA-Z 76). Outros aspectos dessa memória cultural envolvem impressões compartilhadas dos artistas que fizeram parte da criação de Brasília (Oscar Niemeyer, Athos Bulcão, Burle Marx e Lucio Costa). Behr escreve, por exemplo, que Bulcão foi o único fundador que ficou no DF pelo resto de sua vida “como que para defendê-la” (16) e que Niemeyer, ateu, ironicamente projetou a Catedral (34). O poeta de Brasília humaniza os pais fundadores com anedotas sobre suas idiossincrasias.
Como especialista em plantas, Behr presta atenção à arte paisagística em Brasília. Ele a representa como um esforço artístico contínuo envolvendo funcionários e cidadãos comuns que têm agendas concorrentes. Houve problemas com a morte de árvores na cidade até que, na década de 1980, os funcionários municipais começaram a plantar espécies nativas, aprendendo a apreciar as ofertas do cerrado (81). Behr lamenta que “Brasília vive, sim, sob a ditadura do automóvel” e que, no DF, “carros são mais importantes que jardins, árvores e flores” (19). BrasíliA-Z recorda as disputas entre Niemeyer e Burle Marx, o que levou o último a não ter um papel central na arte paisagística da cidade. Niemeyer, segundo Behr, resistiu em permitir que árvores bloqueassem seus projetos, o que – na pior das situações – deixou o Conjunto Cultural da República sem árvores, um lugar quente e inóspito devido à ausência de flora (132). Behr não aceita passivamente as ofertas culturais de Brasília, mas observa, neste caso, uma grande falha na área que deveria ser o polo cultural do Plano Piloto. Continuando seu interesse em reconhecer tanto iniciativas oficiais de arte em Brasília quanto outras não hegemônicas, Behr escreve sobre os moradores – principalmente porteiros e vigias – que plantam árvores frutíferas nas entrequadras (área comercial entre as superquadras) e na Esplanada, fazendo arte paisagística com suas próprias mãos (84). Tais anedotas ressaltam o poder dos cidadãos comuns de transformar sua cidade para melhor atender a seus desejos, um exemplo do que Certeau chama de “uma arte de manipular e desfrutar” de um lugar (xxii).
As listas são outra tática para capturar a vibração artística do DF. Ao incluir listas de itens culturais por categoria, Behr enfatiza em BrasíliA-Z que sua própria imagem da capital é moldada por uma gama de produção cultural muita vasta para ser descrita em detalhes, mas digna de lembrança. O autor inclui, por exemplo, uma lista de filmes, de livros de fotografia e de livros sobre Brasília. Essas listas são acompanhadas de datas de publicação, que realçam o sentimento da agitação artística contínua do DF. O verbete “Leitura” cita dez volumes da Coleção Arte em Brasília (2012), ressaltando que formas culturais não centrais para BrasíliA-Z são abordadas em livros como Artesanato, de Malba Aguiar e Marcês Parente e Artes Cênicas, de Celso Araujo (93). Ao contrário da maioria dos verbetes, que buscam chamar a atenção do leitor através do humor e da emoção, essas listas possuem pouca beleza estética. Em vez disso, elas oferecem ao leitor o nome das obras favoritas de Behr, um convite para se aprofundar em um determinado gênero artístico. Outra lista – de cinemas que existiam no passado – fornece uma visão nostálgica de como a cidade se parecia quando ir ao cinema era um passatempo popular.[15]
Behr é diferente de qualquer um dos outros artistas analisados neste livro, porque sua obra conecta Brasília à realização emocional e ao amor. BrasíliA-Z provoca esses sentimentos de modo mais contundente do que sua poesia anterior. Ele escreveu o livro aos 50 anos, contando como chegou à vida adulta, conheceu a esposa, criou os três filhos e escreveu poesia em Brasília. As histórias pessoais de Behr evocam uma experiência de imensa realização emocional, seja através de sua relação com a família, a arte da cidade ou o próprio ambiente construído. A palavra amor abunda em BrasíliA-Z. Behr escreve sobre a revista cultural Bric-A-Brac como se ela fosse um presente de Brasília para o mundo “com amor. E arte” (27). Ao comentar sobre o Açougue Cultural T-Bone, de Luiz Amorim dos Santos, que sedia eventos artísticos, e sobre outro projeto do açougueiro de colocar livros em pontos de ônibus, BrasíliA-Z ressalta seu “amor pelos livros” (34). Na descrição da escultura de Kubitschek e sua esposa no Memorial JK, Behr escreve que é feita de ferro porque “este metal, como o amor, não derrete ao sol” (137). Depois de contar uma história triste, o autor afirma que iria equilibrar a tragédia com “uma bela história de amor” (173). Ao se referir aos sorvetes com sabor de frutas do cerrado, Behr brinca que “esses sabores do cerrado também ajudam na alquimia do amor” (144). O efeito combinado de tantas referências ao amor é a ênfase na possibilidade de realização emocional no DF.[16] Todo o livro é uma declaração de amor a Brasília, especialmente à sua arte.
Se o “Quinteto de Brasília” de João Almino é marcado pela ausência de amor no Plano Piloto, a escrita de Behr é uma afirmação da presença abundante desse sentimento. Um exemplo é o verbete “Completo amor”, no qual o escritor relembra-se dos detalhes de um show no teatro Escola Parque, em 1983, onde ele e sua futura esposa se beijaram pela primeira vez. Na medida em que o livro é também uma história sobre envelhecimento, este verbete mostra como o passado de Behr como um boêmio o levou ao “amor completo”, que ele ainda sente no momento. O livro propõe a possibilidade de amor (da cidade e dos residentes) surgido nas colaborações criativas da vida urbana cotidiana.
Para concluir, ofereço uma comparação. Em Cidade Livre, de João Almino, um engenheiro de Brasília, durante a construção da capital, discursa apaixonadamente sobre o potencial cultural do DF e é, em seguida, duramente contestado pelo realismo cético de sua futura namorada:
O que mais me atrai é que a cidade vai ser viva, agradável e apropriada ao trabalho intelectual, um foco de cultura dos mais lúdicos do país, acrescentava Roberto, Só vendo, comentou tia Matilde. (Cidade Livre 117)
A conversa – em livro publicado em 2010 – tem como objetivo provocar risos nos leitores, pois eles contrastariam a vivacidade cultural prometida para Brasília na época de sua fundação com o suposto fracasso no cumprimento dessa promessa, observado na contemporaneidade. Conversas desse tipo aprofundam o estereótipo do DF como um deserto cultural. Nenhum outro texto defendeu mais veementemente a reversão dessa imagem do que BrasíliA-Z.
Apesar de pequenas reservas, a história de Behr é a de uma cidade que lhe proporcionou extrema satisfação emocional. A metáfora do palimpsesto em BrasíliA-Z descreve uma vibração artística que se desenrola ao longo do tempo na capital. Embora os temas e estilos de arte tenham mudado ao longo das décadas, Behr enfatiza a presença consistente dos encontros criativos no DF como um meio pelo qual os moradores conseguiram humanizar sua cidade.
Notas
[1] A cerveja é produzida pela Käfer, uma cervejaria de Brasília, e o pastel é feito pela Pastelaria Viçosa, como Behr, promovendo seu próprio nome, nota na antologia Brasilírica, em uma seção sobre suas influências (61).
[2] Os livros sobre a obra de Behr são: Brasília na poesia de Nicolas Behr: idealização, utopia e crítica (2012), de Gilda Maria Queiroz Furiati, e Nicolas Behr: eu engoli Brasília (2004), de Carlos Marcelo.
[3] A mãe de Behr nasceu na Lituânia e seu pai nasceu na Estônia. Ambos eram descendentes de alemães. (Carrión Carracedo 27).
[4] Para um excelente ensaio biográfico sobre Behr, ver “Ímpeto de foguete”, de Marcelo. O livro Nicolas Behr: o menino do mato que engoliu Brasília (organizado por Maria Teresa Carrión Carracedo), de Behr, inclui uma versão expandida do mesmo ensaio com fotografias adicionais.
[5] As diferenças entre as três edições são mínimas. Eu analisei a terceira delas – que teve uma tiragem de mil cópias – porque era a mais recente na época em que eu estava escrevendo este livro e, nela, Behr teve a oportunidade de corrigir pequenos equívocos e fazer outras modificações.
[6] Embora perspectivas ecológicas estejam além do escopo desse capítulo, em outro artigo eu argumentei que BrasiliA-Z desnaturaliza os espaços verdes da cidade, mostrando como são produto de intervenção humana, negociação e subversão (Beal, “Making Space” 35-36). Apesar das muitas obras que Behr escreveu sobre plantas e questões ambientais, há poucas interpretações do seu trabalho escritas com uma abordagem ecocrítica.
[7] Todos esses gêneros são novos para Behr, exceto a antologia. Seu livrinho mimeografado Grande Circular (1978) inclui poemas de nove autores locais (Marcelo, “Ímpeto” 26). Beije-me poderia ser interpretado como uma antologia de fotografias, e Behr também antologizou seus próprios poemas. Sua coleção Laranja seleta (2007), publicada pela Língua Geral, é lida como um livro tradicional de “obras reunidas”, com poucos poemas novos adicionados. Seguindo seu espírito empreendedor, Behr compila poemas próprios mais frequentemente do que uma editora faria. Em muitas ocasiões, Behr publicou de forma independente suas próprias obras reunidas, como Restos mortais (1980), Restos vitais (2005), Vinde a mim as palavrinhas (2005), Primeira pessoa (2005), Poesília – poesia pau-brasília (2002) e Brasilírica (2017). Os dois últimos trazem poemas do escritor sobre Brasília, mas não incluem as datas originais dos poemas. Para um autor tão empenhado em registrar detalhes históricos, essa omissão é intrigante e revela a consistência dos poemas ao longo das décadas.
[8] Manzoni associa a previsão de de Beauvoir (“Brasília nunca terá alma”) à anomalia da cidade ser construída sobre o túmulo vazio de JK ainda vivo (apenas para ser preenchido após sua morte), o que constitui uma inversão do que ocorreu com cidades antigas, construídas sobre os túmulos de seus fundadores. Para Manzoni, o túmulo vazio serve como uma metáfora adequada para a memorialização inventada de Brasília por meio de monumentos que soavam falsos, já que foram erguidos antes da cidade ser povoada. Manzoni afirma que a obra de Behr relê a fundação de Brasília em um esforço para incluir (enquanto o discurso oficial da época tendia ao apagamento histórico) aqueles que foram excluídos dos benefícios do projeto, para inventar uma alma para a cidade que foi supostamente construída em uma tabula rasa e para satirizar as pretensões monumentais de Brasília (92-94).
[9] Em vários textos, Behr retorna a essa concepção de Braxília como não-poder, não-oficial e não-capital, incluindo o poema “imagine brasília” (Laranja seleta 77) e o prefácio “Fala, Cidade-Palavra!” (BrasíliA-Z 5). Apesar de ele ter descoberto Braxília acidentalmente – inicialmente era apenas um erro de digitação – a contrapartida onírica da capital tornou-se uma palavra recorrente ao longo de sua escrita (Behr “Travessa palavra” 57).
[10] Para mais sobre Braxília, ver Butterman, Lago Santos, L. R. Bastos e o documentário Braxília, de Danyella Proença.
[11] As sacolas são vendidas pela companhia Tertúlia.
[12] De todos os artistas analisados neste livro, Behr, conhecido como o “poeta da cidade” é quem conta com maior fortuna crítica (Guazina 182). A maior parte das críticas cobre seus poemas sobre Brasília e é relativamente homogênea em seus argumentos, embora frequentemente inclua leituras perspicazes de poemas específicos. Seu foco geralmente é a intertextualidade (Salgueiro e Furiati) ou reflexões sobre Brasília como uma utopia fracassada (Butterman, Guazina, Vieira da Silva, Manzoni), destacando, em ambos os casos, o humor subversivo de Behr. Teresa Cabañas se desvia dessa tendência, argumentando que poetas marginais brasileiros modificaram a compreensão do que era poesia ao escrever versos cotidianos que desafiavam o status quo e sacudiam as expectativas sobre como a linguagem do dia a dia poderia ser usada na poesia (33). Manzoni e Jobim Navarro também se desviam dessa tendência em sua atenção à memória. Aproveitando fortemente a conjectura de Holston de que o discurso oficial em torno da construção de Brasília apagou o passado – como se Brasília fosse construída em uma tabula rasa – Manzoni mostra como os poemas de Behr satirizam projeções oficiais da capital como míticas ou ahistóricas e chamam a atenção para os trabalhadores esquecidos que a construíram. (97-105). Em um artigo mais pessoal, quase sem análise textual, Jobim Navarro considera a relação entre fotografia, memória e poesia, vendo em alguns poemas de Behr um convite para refletir sobre sentimentos de segurança e caos em Brasília. Butterman – embora também escreva sobre a resposta dos poemas a uma utopia fracassada e seu humor subversivo – interpreta Behr como um poeta pós-moderno devido ao uso de alusões literárias e de paródia para dialogar com o cânone literário brasileiro (228, 235). Vários pesquisadores realizaram estudos comparativos entre a obra de Behr e outros poetas marginais e da geração beat (Borges dos Santos, Dunck Santos, Cabañas). A partir das teorizações de Certeau, eu também postulo que a poesia de Behr demonstra como um residente pode, embora de forma limitada, transformar uma cidade para atender às suas necessidades e desejos (Beal, “The Art” 37-40, 47-48, 51-52).
[13] A peça é lembrada principalmente por esta fotografia, reproduzida em vários livros por ou sobre Behr (Behr, Beije-me 1; Behr; BrasíliA-Z 83; Marcelo, “Ímpeto” 29).
[14] Alguns dos textos compilados também personificam Brasília, como a canção “Te amo Brasília” (1990), de Alceu Valença, que imagina a capital como uma amante formidável que o desprezava, ou “Brasília”, de Sampaio, em que o orador se dirige diretamente a uma Brasília personificada.
[15] O romance A noite da espera (2017), de Milton Hatoum, que se passa em Brasília entre 1968 e 1972, também mostra muitos desses cinemas como pontos de encontro de protagonistas que estão no ensino médio e na faculdade.
[16] Muitos textos de outros autores diversificados enfatizam a possibilidade de realização emocional em Brasília. Ver as crônicas de Freitas em Só em caso de amor (2009) e Bravos candangos (2018); as crônicas de Honestino de Moraes em Traços; “Os amantes do Eixo Rodoviário”, “Conic” e “Maquete” (2010), de Rezende Jr.; “Diplomacia pelas janelas” (2010), de Fernanda Barreto; e “Amor capital” (2015), de Cariello, em Cidade dos Sonhos.