CAPÍTULO 8
Traços, a arte de rua e o renascimento cultural de Brasília
A revista cultural Traços, fundada em novembro de 2015, apresenta Brasília como uma cidade em processo de renascimento cultural. O periódico conta a história de como os artistas, os consumidores de arte e seus vendedores estão ocupando o espaço público de modos inovadores. Traços descreve várias iniciativas culturais individuais como integrantes de um projeto coletivo que incentiva os cidadãos a exercerem seu direito criativo à cidade. Esse, como argumentado no Capítulo 1, consiste no direito de poder usar os espaços públicos para a comunhão criativa e de representar a cidade. A revista concebe o consumo da arte local não como mero entretenimento, mas como ato cívico coletivo e radical que visa melhorar a qualidade de vida no DF. Exemplos dessas iniciativas incluem festas de bairro, feiras de arte, grafite, dança de rua, teatro de rua, shows públicos e a arte que ocupa especificamente a Rodoviária e as passagens de pedestres.
A transformação do Plano Piloto pelos Porta-Vozes
A revista mensal é vendida por pessoas em situação de rua e é produzida, em parte, para atender a essa população.[1] À medida que vendem a Traços no Plano Piloto, esses cidadãos enriquecem o espaço público, alteram os tipos de interações humanas que lá ocorrem e refutam ideias depreciativas sobre quem está desabrigado e por quê. Don Mitchell, enfatizando a necessidade de focar no direito à moradia (e não no direito à propriedade) e de reconhecer os fatores econômicos que engendram o problema habitacional, afirma que “o direito à moradia, o direito de habitar a cidade, exige mais do que apenas casas e apartamentos: exige a reconstrução da cidade de forma que atenda a necessidades, desejos e prazeres de seus habitantes, especialmente de seus habitantes oprimidos” (21). Em consonância com a visão de Mitchell sobre o direito à cidade, Traços apresenta pessoas em situação de rua, uma população notoriamente estigmatizada, como cidadãos dignos que engrandecem a capital. A revista começa esse processo com uma mudança de nome: os vendedores da Traços são chamados de Porta-Vozes da Cultura, um título estampado nos coletes verde fluorescentes, que combinam com seus bonés da Traços. Desde a quinta edição da revista, todos os nomes dos Porta-Vozes estão listados na contracapa, o que também contribui com a estratégia de contestação das percepções correntes sobre esses cidadãos como criminosos anônimos.
A revista segue um modelo de jornal de rua que está em vigor há décadas: a criação de um meio de comunicação vendido por pessoas desabrigadas e de interesse do público geral. O movimento foi originado pelos jornais Street News em Nova York (1989–2007) e The Big Issue em Londres (1991) e depois se espalhou para dezenas de cidades em todo o mundo. No Brasil, exemplos incluem o Boca de Rua em Porto Alegre, fundado em 2000, e a Ocas no Rio de Janeiro e em São Paulo, em circulação desde 2002. O pesquisador de estudos midiáticos Kevin Howley descreve os jornais de rua como “instrumentos de mudança social progressiva” e “uma forma única de democracia comunicativa”, notando a escassez de pesquisas acadêmicas sobre esses meios de comunicação (274). Este capítulo procura chamar a atenção para essa lacuna, focando-se na Traços, uma nova revista impressa, que nada contra a corrente da mídia digital.
A popularidade da Traços é impressionante. Foram impressos dez mil exemplares da primeira edição, que se esgotaram rapidamente, e os 15 primeiros números venderam um total de 120 mil exemplares (Rezende, “Os nomes” 43). Apesar das dificuldades enfrentadas pelo jornalismo impresso no século XXI, o sucesso de vendas da Traços pode ser atribuído a inúmeros fatores. Por um lado, não existe nenhuma outra revista dedicada exclusivamente à cultura de Brasília, ou seja, a Traços não tem um concorrente real. [2] Além disso, a revista se beneficia de financiamento público e privado de mais de 30 patrocinadores, o que lhe permite ter um baixo preço de venda e, portanto, maior circulação.[3] Como cada cópia do veículo de comunicação explica, dos cinco reais pagos em sua aquisição, quatro são para o Porta-Voz da Cultura e um é usado por ele para comprar outra revista e, desse modo, ampliar ainda mais a sua renda. Em janeiro de 2018, o preço de Traços subiu para dez reais, sendo sete para o vendedor e três para ele adquirir outro exemplar. Os Porta-Vozes vendem o periódico entre as mesas de restaurantes e bares que estão ao ar livre (e, tecnicamente, em área pública); em parques comunitários e em quaisquer outros lugares públicos com intenso fluxo de pedestres.
Esse método de vendas aproveita os espaços públicos do Plano Piloto para comercializar revistas e, em consequência, modifica o tipo de interação habitual que se dá entre a população desabrigada e a população assentada da capital. Os Porta-Vozes aproximam-se das pessoas nos espaços públicos e perguntam se elas estariam interessadas em comprar a Traços. Muitas vezes, ao avistarem os vendedores em seu uniforme brilhante, os clientes potenciais os procuram. Essas interações amigáveis mudam o modo mais comum de convivência, em que o sem-teto é temido ou evitado pelo público geral. As relações sociais alteram o espaço, e a estratégia de vendas da Traços modifica os espaços públicos do DF, tornando-os um pouco menos hostis às pessoas em situação de rua (Massey 118). O método de vendas sinaliza que as áreas públicas são lugares onde as pessoas desabrigadas estão trabalhando, e não vagando sem rumo. O editor-chefe André Noblat observa como a estratégia de vendas da Traços empodera os Porta-Vozes e transforma percepções usuais sobre a falta de moradia[4]: “Ver que hoje eles [Porta-Vozes] se reconhecem em uma cidade que custou a enxergá-los não tem preço . . . Serem vistos, reconhecidos e ouvidos por pessoas que antes se incomodavam com sua presença é o principal combustível para que eles mudem o rumo de suas vidas” (Traços no. 6 7). A revista inclui artigos a respeito da árdua jornada para obtenção de moradia fixa, algo que já está garantido para muitos leitores. Traços comemorou, no início da edição de janeiro/fevereiro de 2019, o fato de que 150 Porta-Vozes não estão mais em situação de rua (“Traços 2015–2018”). Assim, ao integrar os moradores sem-teto, a Traços transforma a cena cultural do DF.
Os artigos da Traços mudam a percepção da população que tem casa sobre o Plano Piloto, permitindo que os leitores vejam a Asa Sul a partir do ponto de vista dos estimados 400 moradores em situação de rua no Plano Piloto (“Distrito Federal cria centro”). Esses textos frequentemente mencionam locais importantes no cotidiano de uma pessoa desabrigada. A Escola de Meninos e Meninas do Parque, no Parque da Cidade, fornece aos residentes sem-teto educação formal e almoço. A uma curta distância dali está um Centro Pop (outro desse fica em Taguatinga), uma instituição para pessoas em situação de rua que oferece diversos serviços, desde banhos até aconselhamentos psicológicos. Não distante do centro, encontra-se o Museu Nacional, onde os Porta-Vozes têm as reuniões da Traços. Ainda perto dali está o estacionamento subterrâneo do Setor Comercial Sul, conhecido por seu conglomerado de usuários de crack. A matéria do jornalista José Rezende Jr., “A Brasília dos Porta-Vozes”, na sexta edição da Traços, inclui fotografias (tiradas por Bento Viana e Thaís Mallon) dos Porta-Vozes em sua parte favorita de Brasília. Refletindo sobre o lugar preferido de Ana Paula Benevenuti da Silva, Rezende observa que “o Parque da Cidade é antes de tudo um bom lugar, um dos poucos, para se tomar um banho com dignidade” (“A Brasília dos Porta-Vozes” 10).[5] O jornalista descreve outro lugar predileto de dois Porta-Vozes, uma igreja de Niemeyer na Asa Sul: “Fabiana e Heliovan dormiram muitas noites ao lado dela. Além disso, fizeram amizade com outros desvalidos que vivem por ali. Mas não é só por isso. ‘Nosso sonho é a gente se casar aqui na Igrejinha’, revelam, em coro” (15–16). Ao remapear a Asa Sul a partir da perspectiva de moradores desabrigados, a revista se torna uma ferramenta pedagógica para estimular a conscientização pública sobre tais cidadãos que acabam, por vezes, esquecidos.
Traços – através de sua prática de vendas, artigos e fotografias – apresenta positivamente as pessoas sem-teto do Plano Piloto e os lugares públicos onde habitam para leitores que talvez nunca tenham refletido sobre o problema da falta de moradia na capital. Por um lado, a revista combate representações estereotipadas de moradores em situação de rua, mas, por outro, os Porta-vozes não têm autoridade para se representar. Jornalistas narram as histórias dos Porta-vozes – ao contrário do jornal mais radical Boca de Rua, no qual os próprios sem-teto são os jornalistas. Nesse sentido, Traços nega a um grupo subordinado a oportunidade de produzir conhecimento (Hill Collins 252). No entanto, Rezende escreve com muita cautela, incluindo várias citações do discurso direto de Porta-Vozes, além de se concentrar em histórias individuais que honram a subjetividade dos vendedores da revista. No dia a dia das ruas, os clientes frequentemente perguntam aos Porta-vozes sobre suas vidas, o que mostra que Traços fomenta o respeito pelas experiências dos sem-teto. Um Porta-Voz, Carlos Bruno, observa que “as mesmas pessoas que tinham nojo de mim hoje me convidam pra sentar na mesa com elas, querem ouvir a minha história” (cit. em Rezende, “Carlos Bruno” 31). Rezende, o escritor mais eloquente da revista, ajuda a desencadear essas conversas através da coluna 3x4 e de suas matérias.
Traços demonstra que o modo como a história da falta de moradia no DF é contada pode contrariar o frequente “sin-talk” (segundo o qual os desabrigados são sujos e perigosos) ou o “sick-talk” (o qual apresenta os sem-teto como doentes mentais ou viciados em drogas), que “explicam” o problema da falta de moradia de modo insatisfatório (Gowan 262). A seção 3x4 geralmente inclui um retrato de página inteira do rosto do Porta-Voz apresentado. Assim, o leitor encontra a face do vendedor em tamanho real, o que chama sua atenção e faz com que a imagem pareça mais realista. Essas fotografias são extremamente profissionais e evocam a dignidade (expressões de alegria ou força) dos sujeitos, apresentados como saudáveis, limpos e bem vestidos. Assim, a seção 3x4 contraria a tendência da mídia de massa em representar os sem-teto como sujos ou perigosos, o que contribui para a sua demonização (Amster 197). Além disso, Rezende, que também é um escritor de ficção premiado, usa técnicas literárias (como mistério, repetição, ampliação, redução e metáfora) para intensificar a empatia do leitor em relação às pessoas em situação de rua (Keen 99):
Era menino quando foi para as ruas pela primeira vez, nem sabe direito por quê. Talvez porque a casa fosse pequena demais para a família grande demais. Talvez porque com tantos filhos (nove ao todo) o pai e a mãe não tivessem tempo de cuidar das dores de cada um. Talvez porque naquela época o salário mínimo fosse tão mínimo que sêo Dejacy e dona Maria do Amparo não davam conta de alimentar tantas bocas. (“Davi Silva dos Santos” 31)
Keli Araújo da Silva e Ricardo Bispo da Silva estão há muitos anos nas ruas. Keli há mais de 20, Ricardo há quase 15. Mas só há cerca de um ano a rua de um cruzou com a rua do outro. Keli demorou a perceber os olhares de Ricardo. Até que um dia Ricardo tomou coragem e arriscou quando ela passava: “Keli, meu amor”. (“Keli & Ricardo” 31)
O combate ao estigma em torno da falta de moradia demanda novas maneiras de contar a história da questão habitacional. Ao fazê-lo, Rezende destaca a dignidade de indivíduos que não têm nenhum outro lugar para chamar de lar. Sem usar uma linguagem técnica, o autor enfatiza os efeitos das Experiências Adversas na Infância (EAI) e do trauma da falta de moradia e da pobreza[6]. A reportagem de Rezende também transforma a percepção que os leitores têm do já mencionado estacionamento abaixo da Galeria Novo Ouvidor, o lugar mais famoso dos sem-teto no DF:
O som das canções natalinas não chega ao estacionamento subterrâneo do Setor Comercial Sul. O submundo em forma de T tem o cruel apelido de buraco do rato, como se fossem bichos as criaturas que ali se esgueiram entre as sombras, mas não são bichos, são homens e mulheres viciados em crack que um dia, quem sabe, tiveram teto, família, trabalho e sonhos. (“Adelcio Silva Santos” 31)
Rezende não associa o estacionamento ao horror e à criminalidade, mas ao sofrimento humano extremo. Traços, tanto em sua prática de vendas quanto em seu conteúdo, defende uma concepção inclusiva do direito à cidade, projeto que continuou em seu jornalismo sobre ocupações artísticas do espaço público.
Feiras de arte e festivais
A ideia que Traços assume do direito à cidade segue, de modo geral, o espírito do Estatuto da Cidade: trabalhar dentro do quadro político, ao invés de desafiá-lo radicalmente, para transformar o ambiente urbano. Noblat, por exemplo, reivindica mais financiamento público para as artes, observando que a cultura constitui 4.5 por cento do PIB brasileiro, mas recebe muito pouco financiamento federal (Traços no. 8 7). Traços define os artistas do DF como trabalhadores exemplares que contribuem positivamente para a economia urbana (ao modo do “Generation Sell”, de William Deresiewicz) e como ativistas que combatem desigualdades sociais e espaciais.[7] Ao oscilar entre essas duas definições (que funcionam dentro do status quo, ao contrário de uma caracterização dos artistas como revolucionários), Traços dilui as propostas mais radicais de suas reportagens sobre ocupações do espaço que desafiam os direitos da propriedade privada.
Porém, uma exceção notável é a reportagem de Rezende sobre a ocupação artística mais impressionante do DF: o Mercado Sul Vive. A comunidade de artistas que moram e trabalham no Mercado Sul (também conhecido como Beco da Cultura) em Taguatinga revitalizou um centro comercial abandonado, construído nos anos 1950. Uma narrativa capitalista, com foco no direito à propriedade, enquadraria esse espaço como uma ocupação ilegal de propriedade privada. Porém, Traços a concebe como o filósofo marxista Lefebvre o faria: como um direito à cidade, exercido por meio de iniciativas revolucionárias que resolvem problemas urbanos. Rezende, no artigo “Ocupações”, lembra que “quase da noite para o dia [em 7 de fevereiro de 2015], lojas fechadas há mais de uma década, persistentes focos de dengue e abandono, transformaram-se em espaços abertos à arte, cultura e cidadania” (17). Traços, então, convida os leitores a compreensões não normativas de quais práticas espaciais devem ser valorizadas em uma cidade.
Rezende também cobre ocupações artísticas menos radicais (e completamente legais) que compartilham o objetivo de difundir eventos culturais públicos na periferia, democratizando, assim, o acesso à cultura. Os ativistas da arte citados no artigo de Rezende ressaltam esse esforço. Isaac Mendes, do Movimento Cultural SuperNova (fundado em 2003) em São Sebastião, enfatiza como as divisões espaciais dificultam o acesso à cultura, já que os moradores daquela região administrativa têm dificuldade de ir aos eventos culturais no Plano Piloto por causa do preço das passagens de ônibus e do horário limitado de transporte público no período noturno. Em resposta, ele conta que o Movimento Cultural SuperNova “resolveu fazer cultura aqui mesmo” (cit. em Rezende, “Ocupações” 15). Defendendo o acesso à cultura como direito, a missão do grupo é “ser uma organização que discuta, promova, elabore e execute projetos culturais e desportivos, que garantam à população de baixa renda o acesso aos direitos e à cidadania” (Movimento Cultural SuperNova).[8] Esse trabalho ocorre geralmente no principal parque da região administrativa (Parque Ambiental do Bosque) com um evento mensal (Domingo no Parque) que tem música, poesia, teatro, dança e artes circenses. Artistas de São Sebastião se apresentam na plataforma de madeira que serve como palco e os membros da plateia sentam-se em grandes troncos dispostos como assentos, enquanto as crianças brincam nas proximidades, em calçadões elevados chamados Oficina da Natureza. O Movimento Cultural SuperNova concebe as festas, que recebem recursos do FAC-DF, como ocupações voltadas para a promoção da cultura local, o combate à criminalidade e o estímulo à manutenção do parque (Página de Facebook do Domingo no Parque). Além de buscar oportunidades culturais e atléticas para os moradores, Movimento Cultural SuperNova procura sensibilizar os cidadãos sobre a preservação do Parque, observando seu desejo de “chamar a atenção da comunidade e das autoridades constituídas para a necessidade de revitalização, manutenção, ocupação e conservação da área destinada ao parque”, como apontado no anúncio de uma audiência pública que organizou em 2016 sobre a mesma questão (“Audiência Pública”). Dessa forma, a organização entende seus eventos culturais como práticas transformadoras de cidadania e melhoria do bairro. Traços concebe o Movimento Cultural SuperNova como parte de um esforço generalizado do DF para potencializar o uso criativo das áreas públicas.
Traços reforça esse argumento ao abordar as cinco urbanistas e ativistas que compõem o MOB Movimente e Ocupe Seu Bairro, uma iniciativa de incentivo ao uso do espaço público em Brasília. O MOB, em parceria com entidades locais, sediou os eventos da Rua do Jovem do Varjão em 2015 e 2016, uma festa semelhante às atividades de lazer que ocorrem quando a Rodovia Eixão, no Plano Piloto, é fechada (Lacerda 22). Nesse evento, um trecho da artéria principal de Varjão é bloqueado ao tráfego de carros, abrindo espaço para oficinas de ciclismo, skate, caminhada e atividades culturais em geral (maracatu, capoeira, rap, karatê, pintura e oficinas de grafite). O evento surgiu a partir de entrevistas do MOB com moradores de Varjão, em que os jovens expressaram sua preocupação com os diversos casos de atropelamento de pedestres e fizeram reclamações sobre a falta de oportunidades de lazer na região administrativa. A Rua do Jovem fez parte do esforço do grupo para “estabelecer uma conexão entre os espaços públicos e o atendimento das necessidades do grupo alvo [crianças e jovens de 0 a 24 anos de idade]” (MOB Movimente e Ocupe seu Bairro, “A Rua”). A primeira edição da Rua do Jovem em 2015 também incluiu a pintura de uma faixa de pedestres na artéria principal de Varjão, a Avenida Principal, para aumentar a segurança e tornar as ruas mais amigáveis para os transeuntes (MOB Movimente e Ocupe seu Bairro, “2a Rua”). Como declara em sua página no Facebook, “Traga sua bike, skate e bola! BORA OCUPAR A RUA!”, ocupar a rua consiste em exercício de cidadania (Página do Facebook do MOB Movimente e Ocupe seu Bairro).
Com títulos de artigos como “Capital ocupada” e “Ocupações”, Traços refere-se a festas culturais e feiras como ocupações que transformam espaços públicos em áreas de encontros criativos. Traços afirma que esses eventos de rua aumentam o acesso às artes para a população local e ressignificam áreas públicas antes associadas a abandono, pobreza, drogas ou crime. Devido a uma combinação de esforços de base e financiamento público voltados para a democratização do acesso à cultura, não é preciso mais ir ao Plano Piloto para desfrutar de eventos culturais comunitários, um fenômeno que a Traços celebra.
Duas outras festas de rua abordadas pela Traços são itinerantes, incentivando as pessoas a circular em vários espaços. Uma delas é a Festa de Ocupação Dinâmica de Área Pública (conhecida como Foda Pública), iniciada e organizada pela produtora cultural Nina Puglia. A festa – que teve 23 edições em 2014 e 2015 – trouxe música, poesia e cultura para diferentes espaços públicos nas diversas regiões administrativas do DF. Puglia explica que parte da sua inspiração para a criação do evento foi baseada no desejo de colocar em ação um direito oficializado em 2012 pela Lei número 4.821, de autoria do deputado distrital Wasny de Roure: “As manifestações artísticas e culturais em ruas, avenidas e praças públicas são livres de qualquer censura, coerção, proibição, taxas, emolumentos, tributos, impostos, autorização e inscrição” (cit. em Rezende, “Ocupações” 12). Nina conta que “a gente decidiu levar a arte para as ruas. Despertar o sentido de coletividade, mostrando que manifestar-se artisticamente em qualquer área pública é um direito, uma forma de exercer a cidadania e de viver a cidade” (cit. em Rezende, “Ocupações” 12). O grupo anunciou: “queremos inverter a lógica, que prevalece no imaginário coletivo, de que o que é público não é de ninguém para o que é público é de todas e todos” (cit. em Rezende, “Ocupações” 10). As festas chamadas PicniK – criadas em 2012 e patrocinadas com verba pública e privada – são eventos diurnos em diferentes áreas públicas da cidade que incentivam as pessoas a estender uma canga de piquenique no chão e desfrutar de comidas e artesanato comercializados pelos vendedores locais. As PicniK atraem milhares de pessoas e, como argumentam os jornalistas da Traços, incentivam os moradores a interagir fora de seus setores familiares (Lacerda 10). Traços, assim, enaltece características da arte do século XXI do DF: o uso inovador do espaço público, a valorização do talento local, a utilização do discurso de direitos em apoio às artes, o foco em espetáculos públicos (legalmente sancionados) e a indistinção entre o artista e o empreendedor.
A Rodoviária e as passagens subterrâneas como espaços culturais
A Rodoviária e as passagens subterrâneas do Plano Piloto são espaços públicos que revelam as complexidades do DF. Ambas eram parte do projeto original do Plano Piloto e destinavam-se a garantir um movimento suave e eficiente através do espaço. Um dos argumentos lógicos para transferir a capital do Rio de Janeiro foi o congestionamento naquela cidade, e o plano de Lucio Costa era, em parte, tornar o trânsito mais eficiente e seguro. Seguindo a filosofia dos cinco pontos de Le Corbusier, o Plano Piloto foi concebido para proporcionar mais espaço aberto à caminhada (daí os pilotis sustentando os edifícios), criando uma sensação de liberdade e expansão. A ideia era separar carros e pedestres ao máximo possível. Agora, mais de meio século depois da inauguração de Brasília, a Rodoviária e as 16 passagens subterrâneas do Plano Piloto – outrora ícones da inovação urbana – adquiriram significados intrincados.[9] Elas tornaram-se perigosas, especialmente à noite. Em 2012, o Secretário de Segurança Pública, Sandro Avelar, classificou a Rodoviária como o lugar no DF onde se registra o maior número de crimes, como roubo e tráfico de drogas (cit. em Carone). Os meios de comunicação de Brasília frequentemente referem-se às passarelas subterrâneas como perigosas e mal iluminadas (“Assaltos espreitam”; “Rotina de perigo”). No entanto, os artistas do DF buscam ressignificar esses espaços públicos.
Parte terminal de ônibus, parte estação de metrô, parte rodovia e parte estacionamento, a colossal Rodoviária marca o ponto central do Plano Piloto. Os ônibus que viajam ao Plano Piloto se encontram neste local, que é o de convergência de duas estradas principais. Apesar desse design lógico, locomover-se em Brasília envolve desafios. O DF tem uma das tarifas de ônibus e de táxi mais caras do Brasil. Os ônibus param de circular normalmente antes da meia-noite, e o metrô, às onze e meia. As opções de transporte público, como muitos dos contribuintes da Traços se queixam, restringem o movimento dos moradores da periferia pela capital, embora os serviços de corrida compartilhada tenham amenizado esse problema. A Rodoviária, portanto, é um lugar de contradições: ela simboliza tanto as conexões quanto as divisões entre a periferia e o centro. Como coração da capital, há muito tempo a Rodoviária tem sido um centro de manifestações culturais, abrigando desde o poeta Nicolas Behr, que lá vendia seus livrinhos mimeografados na década de 1970, até a artista Rosa Luz, que, em abril de 2016, fez ali uma provocante performance intitulada “Afrontando Idéias Parte I”. Na apresentação, ela, uma mulher trans, ficou sem camisa (usando apenas saia e saltos altos) perto de uma escadaria movimentada, enquanto os passageiros reagiam e seu amigo Carlos filmava.
Caldeira sustenta que o ambiente construído é uma arena em que as ações das pessoas afirmam ou contestam a necessidade de maior igualdade social e direitos de cidadania (City of Walls 4). Traços, desejando enquadrar a arte do DF como revigoradora do espaço público, abrange trabalhos de artistas que fazem referência à Rodoviária como símbolo igualitário da capital. A décima primeira edição da Traços inclui os retratos de Alexandre Magno, tirados em 2002 na plataforma superior da Rodoviária. Nessas fotografias, os cidadãos comuns posam na posição de sua escolha, vestindo a faixa presidencial (babu, “Instantes” 36–43). A série de retratos provoca questionamentos sobre os locais de poder, a voz política do povo e a iconografia do status. A décima terceira edição da Traços apresenta as fotografias que Bento Viana fez de Daí Schmidt no desfile Beleza Negra de 2017. Tanto as fotografias quanto a própria mostra, com roupas do designer Fernando Cardoso, retratam modelos negros em diversas áreas da Rodoviária: cachos naturais, turbantes e estampas africanas coloridas celebram a cultura afro-brasileira. Além disso, a escolha de modelos economicamente diversos e a realização do desfile na Rodoviária questionam associações corriqueiras entre beleza e privilégio (“Instantes” Traços no. 13). A contribuição da fotógrafa Zuleika de Souza e da jornalista Conceição Freitas para a quinta edição da Traços também apresenta a Rodoviária como local associado à dignidade e à beleza humana.[10] As fotografias de Souza são acompanhadas pelas legendas de Freitas descrevendo a preocupação dos sujeitos com a moda, suas regiões administrativas, seus destinos e as paixões que motivaram seu deslocamento. O ensaio fotográfico é uma celebração dos estilos e das vidas de moradores das classes populares do DF, desde as drag queens que se encontraram na Rodoviária para ir patinar no Parque da Cidade, até as irmãs do Recanto das Emas que vão visitar o Museu Nacional. Como Freitas destaca em suas legendas, a coleção de retratos mostra a beleza dessas pessoas, sua vaidade e a diversidade de idade, raça e identidade de gênero. Esta arte local específica e os artigos da Traços que a abordam enquadram a Rodoviária não como um local de criminalidade e negligência governamental, mas como um lugar de interação humana, diversidade e histórias. Esse projeto continua nas passagens de pedestres.
A maioria das passarelas no mundo passam por cima das rodovias ao invés de serem construídas sob elas, principalmente porque a última opção é mais cara e de difícil execução depois que as estradas já estão em uso. No entanto, as passagens subterrâneas para pedestres faziam parte do projeto inicial do Plano Piloto, já que forneceriam aos transeuntes proteção contra as condições climáticas adversas e os carros. Porém, as passagens subterrâneas do DF (como é frequentemente o caso de lugares subterrâneos) associaram-se tanto à criminalidade, que alguns moradores não se sentem seguros em utilizá-las. Rezende ressalta que “a má fama das passagens para pedestres do Eixão – que os pedestres desde cedo aprenderam a evitar – é tão grande que muita gente, por medo de assalto, prefere arriscar a vida lá em cima, na superfície, driblando automóveis que vêm e vão em alta velocidade” (“Ocupações” 13). O assunto fascina tanto Rezende que foi também o tema de seu cômico microconto “Os amantes do Eixo Rodoviário” (2010), no qual o Eixão constitui uma divisão insuperável entre dois amantes que desconhecem a existência das passagens subterrâneas. Como muitos exemplos da literatura humorística brasiliense, o texto brinca com a questão de como encontrar amor e felicidade no Plano Piloto.
Como o microconto de Rezende, a arte contemporânea e os eventos culturais ressignificam as passarelas subterrâneas, uma vez que desassociam sua imagem da violência. Por exemplo, o produtor musical Cacai Nunes promove uma festa de forró (que foi destaque na primeira e décima quarta edições da Traços) na passarela de pedestres da Superquadra 211 Norte aos domingos. Nunes postula que “os espaços em si não são perigosos. O que os torna perigosos são a omissão do Estado e o descuido da população . . . Nada melhor para quebrar esse tipo de estigma do que uma multidão feliz dançando aqui embaixo” (cit. em Rezende, “Ocupações” 12–13). Um participante da festa entrevistado por Rezende observa que “se Brasília não tem praia, vamos ocupar nossas áreas públicas. É muito interessante quando um espaço construído com um propósito definido passa a ter outra destinação: aquela que nós desejamos” (Mariana Vitali cit. em Rezende, “Ocupações” 13). A maioria dos residentes do DF provavelmente pensa muito pouco sobre o espaço público. Entretanto, ao selecionar a dedo os mais dedicados à tal causa, Traços projeta a capital como uma cidade em que os moradores estão coletivamente empenhados para reverter a reputação cristalizada de uma Brasília cujos residentes transitam apenas entre o trabalho e o lar, em um ciclo de insularidade privada.
Traços também apresentou a fotografia “Lugar de passagem” (2007), do artista brasiliense Kazuo Okubo, em que um casal nu se abraça apaixonadamente em uma passagem subterrânea. Com a moldura de azulejos brilhantes cor de mel e os reflexos desorientadores, Okubo transforma o que seria um espaço sinistro (água parada, pichação na parede suja e escuridão) num espaço de encantamento, beleza e sensualidade. (Okubo 36–37). Enquanto Okubo torna a passagem subterrânea o cenário artístico de sua fotografia, os grafiteiros usam essas passarelas como tela, adicionando cor e vitalidade a lugares associados à sujeira e ao crime. O advogado Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, em sua contribuição para a quarta edição de Traços, argumenta que o grafite nesses locais dá personalidade à cidade: “em Brasília, os espaços públicos estão aí para serem transformados. As passarelas subterrâneas do Plano Piloto, por exemplo, contêm uma enorme variedade de arte anônima, que fazem a cidade” (28). Um exemplo disso pode ser encontrado na quinta edição da Traços, na seção “Muro”, que mostra o que parece ser, à primeira vista, um mural abstrato na passagem subterrânea 211 Norte (“Muro” 74). Em observação mais atenta, a imagem revela-se como uma versão pixelizada da pintura do século XVII de Vermeer, “Moça com brinco de pérola”. O mural brinca com expectativas culturais sobre a recepção, localização e valor artísticos, admitindo a identidade híbrida de Brasília como um polo de arte erudita (arquitetura modernista), de arte comercialmente bem sucedida (Legião Urbana) e de arte popular.
O artigo de Rezende “A Brasília dos Porta-Vozes” conta como Augusto César-Gomes, um Porta-Voz, passou um ano e meio dormindo em uma passagem subterrânea na Asa Sul. Ele lembra que “as pessoas seguravam com força as carteiras e bolsas, com medo de mim” (cit. em Rezende 15). Assim, o artigo concebe aqueles que passam a noite nas passagens subterrâneas não como criminosos perigosos, mas como pessoas que – por uma variedade de razões – não têm para onde ir. Vistas em conjunto, essas reflexões sobre a Rodoviária e as passagens subterrâneas em Traços são um chamado à utilização e ao reaproveitamento dos espaços públicos da capital, bem como à empatia para com os que neles vivem. O direito de se expressar na cidade torna-se muito mais contestado, no entanto, quando fazê-lo envolve atividades ilegais, como pichações.
Grafite e dança de rua
Em consonância com as teorizações sobre a cidadania insurgente de James Holston, discutidas nos Capítulos 1 e 7, a revista Traços elogia a arte das periferias do DF que perturba formulações repressivas e elitistas do que são usos legítimos do espaço urbano. Movimentos insurgentes nas periferias das cidades brasileiras exigem acesso igualitário à esfera pública e utilizam o discurso da reivindicação de direitos para legitimar práticas urbanas (Holston, “Dangerous Spaces” 21). Desse ponto de vista, os artistas periféricos da capital fazem parte de um projeto maior de cidadania insurgente no Brasil. O hip-hop – popular no DF desde os anos 1980 – tem um papel privilegiado nesse processo, por promover a revitalização dos espaços periféricos e ter o potencial de catalisar a mudança social, transformando a vida de pessoas econômica, racial e espacialmente marginalizadas (Abramovay 135–144). A dança foi a primeira expressão do hip-hop a ganhar popularidade no Brasil (Pardue 37). Traços aborda os quatro elementos do hip-hop (grafite, break, rap e DJ) como formas artísticas que estão transformando os espaços públicos de Brasília de modo positivo.
Ao incluir uma fotografia de página inteira de grafites detalhadamente elaborados, a seção “Muro”, da Traços, legitima um tipo de expressão cultural que o mainstream pode considerar vandalismo, mas também diminui o potencial rebelde do grafite. Quando o artista é desconhecido, a revista pergunta, em seu português coloquial característico, “Conhece o autor desta arte? Conta pra gente!” (“Muro”, Traços no. 7 74), desafiando a tendência de os grafiteiros permanecerem anônimos e enfatizando seu talento.[11] Porém, essa chamada para nomear os grafiteiros que, na maioria dos casos, atuaram sem autorização, dilui o caráter subversivo cheio de adrenalina dessa arte de rua. A antropóloga Teresa Caldeira, referindo-se a São Paulo, afirma que “não mais representada por outros que dominavam a produção de signos, jovens das periferias agora forçam suas próprias representações para a cidade. Assim, desestabilizam o sistema anterior de signos, relações sociais e regras para o uso do espaço público dominado pelas classes mais altas” (“Gender Is Still the Battleground” 413). O sistema de signos do Plano Piloto é muito mais uniforme do que na maioria das cidades. Os azulejos de Bulcão influenciaram grande parte do esquema de cores na cidade, e o design de estilo internacional de Costa e Niemeyer dá ao Plano Piloto uma estética sofisticada e minimalista. Nesse contexto, os grafites – com sua paleta de cores mais ampla, formas representativas e detalhes intrincados – desestabilizam o padrão visual do DF. Além disso, o grafite subversivamente personaliza um lugar em desafio à conduta adequada. Ao reproduzir o grafite, a equipe editorial privilegiada da Traços – a classe social que historicamente domina a produção de signos – representa obras de residentes presumidamente mais marginalizados, assim mudando seu significado. A revista não inclui informações sobre a legalidade do grafite que exibe. Essa omissão desloca o foco de atenção para as obras de arte individuais, evitando condenar grafites não autorizados e defendendo, implicitamente, esforços para tornar a cidade visualmente mais atrativa.
Quando aborda o break, Rezende ressalta que essa forma de dança de rua envolve negociações sobre quem pode ocupar o espaço público, sublinhando que todos têm o direito de dançar na calçada (“Street dance” 10). No entanto, para as mulheres, esse direito – em consonância com a tendência geral de serem marginalizadas dentro do hip-hop – não tem sido assegurado, já que os praticantes homens muitas vezes controlam e limitam sua participação (Shabazz 370). Exemplo disso é o fato de as b-girls (termo usado em referência às bailarinas de break) terem que esperar a permissão dos b-boys para dançar em batalhas contra outras equipes (Rezende, “Street dance” 14). Na sétima edição da Traços, Rezende escreve sobre o BSBGIRLS (Brasil Style Bgirls), um grupo de break totalmente feminino composto por moradoras de algumas das regiões administrativas mais pobres do DF (Paranoá, Samambaia, Estrutural e Planaltina, dentre outras) (Fig. 8.1). A criação do BSBGIRLS penetrou uma área notoriamente dominada por homens e proporcionou às mulheres um tipo de mobilidade espacial impossível de ser obtida de outra forma. Elas foram o primeiro grupo feminino de break que representou o Brasil na competição Battle of the Year, na Alemanha em 2008 e 2009, e têm viajado por todo o Brasil dando oficinas. Mas seu trabalho também as traz de volta à casa para capacitar as mais novas gerações de jovens mulheres periféricas através de projetos educacionais (Rezende, “Street dance” 15). Traços apresenta o hip-hop como parte integral da cena artística do DF, compreendendo, assim, a arte de Brasília como inclusiva da periferia. Além disso, Traços está particularmente atenta às mulheres que penetraram formas de artes dominadas por homens, com artigos adicionais sobre mulheres tatuadoras, criadoras de zines e rappers.
Figura 8.1 Integrantes do Brasil Style Bgirls, um grupo de break de Brasília formado só por mulheres, no Museu Nacional, 2012. Da esquerda para a direita: Fabiana Balduína, Louise Lucena, Sandra Kelly Lima Silva e Thaís Holanda. Fotografia de Guilherme Rosental.
Teatro de rua e shows
A cobertura da Traços da trupe Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (em sua oitava e décima quinta edições) afirma o direito criativo à cidade no sentido tanto do direito de ter poder sobre a imagem da cidade quanto do direito aos encontros criativos no espaço público. Seu Estrelo, fundado em 2004, criou um mito originário para o DF (unindo uma longa linha de mitos de origem da capital), contado em performances que misturam música, dança, artes circenses e teatro, incluindo um gênero musical original: o samba pisado. Seu fundador, Tico Magalhães, insiste na conexão da trupe com o lugar em um artigo da Traços: “A cultura popular carrega muita coisa, é mais que uma apresentação. É você ter o seu lugar, ter um território . . . A gente tem Brasília como nosso lugar do sonho mesmo. A cidade é nosso ponto de partida, nosso lugar, nossa referência” (cit. em Lacerda 18). Como o hip-hop do DF, Seu Estrelo busca empoderar os moradores de Brasília, incentivando-os a se orgulharem do lugar que chamam de lar, ascenderem socialmente pela arte e saírem às ruas para promover cultura.
Seu show “O voador e o amaldiçoado enviado da triste criatura comedora de homens”, de 2009, propaga o mito de como Brasília se formou. Assim, Seu Estrelo inventa uma tradição folclórica para o DF. O grupo de 18 pessoas refere-se ao teatro de rua como brincadeiras, um termo para festas informais com dança. O mito, escrito por Tico Magalhães, explica de maneira fantástica as origens dos componentes urbanos e naturais da capital. Essa criação de mitos leva os espectadores a prestarem atenção a seus arredores de formas renovadas. Assim como faz a personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, o narrador de Magalhães desfamiliariza aspectos do Brasil urbano, usando uma linguagem simples e oral para descrever como o país deve parecer a um estrangeiro confuso. O exemplo a seguir retrata a inauguração de Brasília e sua política:
A GRANDE COISA começou bem simples, mas foi ficando cada vez mais complicada . . . ninguém mais sabia se a COISA era mesmo controlado (sic) por alguém ou se já fazia as coisas por conta própria. Mas sempre tinha um Comandante ou pelo menos alguém que dizia que comandava a GRANDE COISA. (Magalhães 2–4)
O grupo apresentou-se diversas vezes, por exemplo, na ocupação artística do Mercado Sul, revitalizando assim um espaço anteriormente abandonado. Embora a sede de Seu Estrelo esteja no Plano Piloto, suas performances – geralmente gratuitas (graças ao financiamento governamental) – percorrem todo o DF, difundindo o apreço pelas tradições culturais populares e pelas apresentações de ruas.
De todos os gêneros artísticos, a Brasília contemporânea é mais conhecida por sua música, e exemplos abundam em Traços de instrumentistas orquestrando ocupações de maneira lúdica. Vai Tomar no Cover, por exemplo, é um grupo de músicos e organizadores de eventos que propõe que as pessoas escutem mais música autoral, e não covers. O projeto foi uma reação à tendência, no início dos anos 2000, de clubes no Plano Piloto tocarem música pop internacional ou apresentarem shows de bandas cover. Nos eventos Vai Tomar no Cover, bandas locais (como a Lista de Lily e a The EgoRaptors que fazem parte da iniciativa) chegam sem aviso prévio em locais públicos e se apresentam. Os repórteres da Traços Marcela Lembruber e devana babu compreendem explicitamente esses eventos como ocupações espaciais: “o objetivo é ter o máximo possível de bandas autorais se apresentando e ocupando de maneira simples e criativa os espaços de Brasília” (66). Destaque na edição seis da Traços, o Sistema Criolina é um grupo de DJs que criou um modelo de alto-falantes sem tomada, o Aparelhinho, inspirando o bloco de carnaval com o mesmo nome. O DJ Criolina conta que o Aparelhinho “surgiu de uns rabiscos de muitos anos atrás, que eu fazia para pensar num sistema de som móvel que não precisasse de tomada para funcionar, de modo que eu não precisasse de pedir para ninguém para ligar o som ou pedir autorização. Uma forma de fazer música na rua” (Criolina 27). A edição sete da Traços anuncia a Roda do Sudoca, um show semanal gratuito de choro no Bosque do Sudoeste (babu e Lemgruber 65). Como demonstrado nesses três exemplos, Traços atua com um chamado ao exercício do direito de desfrutar dos espaços públicos e da cultura brasiliense.
Conclusão
Além de celebrar a arte que afirma o direito criativo à cidade, Traços também é hostil a qualquer instituição governamental ou privada que limite o acesso às artes e ao espaço público, especialmente para pessoas com deficiência, afro-brasileiros, mulheres, residentes de baixa renda, moradores de rua e comunidade LGBTI+. Caldeira afirma que a destruição de espaços públicos contribuiu para a dissolução da cidadania civil, característica do Brasil contemporâneo (City of Walls 52). A autora equivocadamente admite um passado inexistente, quando o espaço público era mais democrático, mas corretamente observa que entidades poderosas no Brasil muitas vezes têm conseguido cooptar o espaço público para uso privado. Um exemplo notável desse fenômeno é a área em frente ao Lago Paranoá de Brasília. Costa pretendia que esse espaço fosse para uso comunitário, mas grande parte da orla do Lago Paranoá foi tomada por condomínios de luxo. Esses contornam a lei, alegando ser apart-hotéis, não casas privadas e, assim, conseguem se enquadrar na categoria admissível de “clubes e hotéis de turismo”. Traços tem criticado essa brecha, que diminui o acesso dos cidadãos comuns à água (F. Holanda 35).
A história espacial de Brasília, entretanto, não se resume às invasões da elite ao espaço público. O estudioso de arquitetura Frederico Holanda observa em um editorial da Traços que os casos de ocupação popular dos espaços públicos de Brasília “ilustram a reinvenção cotidiana da cidade, particularmente por sua gente mais simples” (35). Certeau afirma que a reinvenção cotidiana da cidade vem de pessoas marginalizadas que manipulam regras de entidades poderosas através de práticas espaciais oportunistas, muitas vezes ilegais (xiv, xvii, 18, 24–28). No entanto, Holanda argumenta o contrário, observando que a classe dominante manipula com sucesso a lei, enquanto os moradores comuns reinventam a cidade simplesmente exercendo seu direito de usar os espaços públicos. Certeau adota uma visão mais pessimista e polarizada da relação entre lei/poder/privilégio/instituições versus o indivíduo subalterno mal intencionado. Em contrapartida, Traços (aqui através da voz de Holanda, mas também em textos de Noblat, Rezende, Marcus V. F. Lacerda e outros) tem uma postura mais proativa, focando nas formas como os métodos de base e verticalizados podem se fundir para melhorar o acesso dos cidadãos às artes e ao espaço público do DF. Por exemplo, a revista frequentemente menciona instituições (como a Secretaria de Cultura do DF) e leis (como a Lei Rouanet[12], nacional, e a Lei 4.821, local) que facilitam o trabalho de artistas de Brasília.
O inimigo mais flagrante em Traços é a Lei do Silêncio. Em vigor desde 2008, a lei (Lei 4.092) permite ruídos que vão de 45 a 60 decibéis e tem sido usada, segunda a revista, para coibir concertos e bares opressivamente. Um barulho é nocivo apenas a 76 decibéis, e a maioria das cidades com tal lei proíbem ruídos à noite de 60 a 70 decibéis. Uma conversa normal chega facilmente a 60 decibéis, assim como uma música de fundo. Um jornalista da Traços, em entrevista a Hamilton de Holanda, observa que “tem muito bar com música ao vivo sendo multado, fechando as portas. O próprio Beirute [um dos pontos de encontro culturais mais famosos e antigos do Plano Piloto], que não toca música nem ao vivo nem mecânica, foi multado por causa de conversa alta” (H. Holanda 20). A lei tem sido usada de forma antiética, argumentam alguns, para restringir as atividades de determinados estabelecimentos considerados indesejáveis pelos moradores. Para a especialista em cultura popular Gabriela Tunes “ao se constatar que, no Distrito Federal, há uma lei antipoluição sonora cuja aplicação só se realiza contra atividades culturais, fica evidente que se tem aí uma ferramenta de censura, disfarçada em lei de proteção ambiental e manutenção da ordem” (Tunes 29). O Balaio Café – um foco de cultura alternativa local inaugurado em 2006 e que apoia, dentre outras causas sociais, as LGBTI+ – foi forçado a fechar em 2015 devido ao custo proibitivo de muitas multas da Lei do Silêncio (“Após”). Tais fechamentos constituem um grande obstáculo para a música local e a vida noturna e, ocasionalmente, parecem ter tons homofóbicos ou tendenciosos. Mas Traços, muito otimista, prefere focar na arte e não nos empecilhos à promoção da cultura. A revista se esforça para convencer os leitores de que um renascimento artístico está em andamento em Brasília. Os moradores do DF, como registra o periódico, identificam coletivamente as ocupações artísticas do espaço público como uma forma criativa e enriquecedora de socializar que, embora sutil, tem potencial para melhorar a cidade. Traços entende que a arte do século XXI do DF está unida pelo mantra “ocupar a rua”, uma ocupação que conecta grupos diferentes através do interesse compartilhado em tornar o espaço público mais inclusivo, seguro e vibrante.
Notas
[1] Embora Traços tenha iniciado como uma revista mensal, seu cronograma de publicação tem sido mais irregular desde setembro de 2018. De setembro de 2018 a dezembro de 2019, apenas sete edições da revista foram publicadas. Em novembro de 2020, Traços havia publicado um total de 42 edições.
[2] Historicamente, revistas e instituições literárias no Brasil têm sido elitistas e somente nas últimas décadas começaram a conter uma gama mais diversificada de vozes (Dalcastagnè, “Uma vez” 34). Esse elitismo ainda caracteriza muitas das revistas culturais do DF. GPS Brasília é uma revista de luxo fundada em 2012 que abrange a cultura local, nacional e global. Evoke, lançada em 2013, atende a um leitor privilegiado socialmente e abrange moda, culinária, música, saúde e assim por diante. Revistas culturais mais de base do século XXI, como Nil Revista – que durou de 2011 a 2012 – tendem a ter vida útil mais curta. O jornal diário Correio Braziliense (fundado em 1960), sua revista e o jornal diário online Metrópoles (fundado em 2015) abrangem a cultura de Brasília (especialmente os próximos eventos), bem como a cultura nacional e global. No entanto, Traços – a única dessas publicações exclusivamente focada no DF – tem um perfil mais associado ao ativismo social, estando comprometida com a cobertura da cultura na periferia, com os eventos de arte gratuitos e com o direito à cultura.
[3] O financiamento vem da Lei de Incentivo à Cultura do Distrito Federal, do Ministério do Desenvolvimento Social e Humano, do Ministério da Cultura, do Governo de Brasília, da agência de viagens Bancorbrás e da empresa de tabaco Souza Cruz, entre outras fontes.
[4] Noblat é filho de um dos jornalistas e editores mais famosos de Brasília, Ricardo José Delgado Noblat. A fama de seu pai abriu portas para o jovem Noblat, mas também colocou desafios. As inclinações políticas de Ricardo estão muito mais à direita do que as do filho. Portanto, André teve que ganhar a confiança do público-alvo mais de esquerda em Brasília, que inicialmente o teria rejeitado pelo sobrenome. André Noblat, desde 2006, é vocalista da banda de rock brasiliense Trampa, então ele também tinha credenciais artísticas antes de fundar a revista.
[5] O interesse de Rezende em desestigmatizar a falta de moradia antecede a Traços. Sobre isso, ver seu livro infantil Fábula urbana, os microcontos em seu livro Estórias mínimas, seu conto “A triste orla do Aqueronte”, da coleção A mulher-gorila e outros contos, e sua novela A cidade inexistente.
[6] Sobre as EAIs de pessoas em situação de rua, ver Larkin e Park. Sobre o trauma relacionado à falta de moradia e à pobreza, ver Goodman et al.
[7] Deresiewicz escreveu em 2011: “a forma social ideal de hoje não é a comuna ou o movimento ou mesmo o criador individual como tal; é o pequeno negócio. Cada aspiração artística ou moral – música, comida, bons trabalhos, o que você tem – é expressa nesses termos. Chame isso de Geração de Vendas”.
[8] O Plano Piloto ainda atua como um centro de arte, mas diversas iniciativas populares e públicas buscam descentralizar eventos culturais para melhorar a acessibilidade. Apesar dos esforços conjuntos para descentralizar o financiamento, o Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC-DF) relata que em 2014, 32 por cento dos artistas que receberam seu financiamento eram do Plano Piloto, enquanto apenas 3 por cento eram de Ceilândia, uma região administrativa mais populosa e muito mais pobre (Souza 58).
[9] Para uma crônica que apresenta a passarela de pedestres como uma salvação para um recém-chegado incerto sobre como atravessar o Eixão, ver Cotrim.
[10] Em sua coluna do Correio Braziliense da década de 2000, Freitas frequentemente escrevia sobre a Rodoviária, declamando como o governo aparentemente ignorava seu estado dilapidado (Freitas Só em caso).
[11] A terceira edição da Traços pergunta “Conhece o autor deste grafite?”, mas edições subsequentes mudam a questão para “Conhece o autor desta arte?”, enfatizando assim seu mérito artístico (“Muro”, Traços no. 3 70).
[12] A Lei Rouanet, em vigor desde 1991, incentiva o investimento cultural por empresas e cidadãos comuns, permitindo que eles invistam em projetos culturais brasileiros e, em troca, paguem menos imposto de renda (até 4 por cento menos para pessoas físicas e até 6 por cento menos para pessoas jurídicas).