CAPÍTULO 6
Slams de poesia e as competições de versos em Brasília
Desde 2015, os slams de poesia têm possibilitado que grupos sub-representados de Brasília afirmem seu direito criativo à cidade através de eventos e performances poéticas individuais. As slammers ocupam o espaço público por meio de competições periódicas que ocorrem em toda a cidade e que reiteram principalmente o direito à existência, em todos os cantos da cidade, de mulheres, negras, residentes de baixa renda e/ou LGBTI+. A performance vencedora de um slam que Meimei Bastos fez de seu poema “Eixo”, por exemplo, concebe a periferia do DF como um local unificado de empoderamento feminino.
Esses slams foram precedidos por dois outros tipos de competições de versos – os duelos de repente e as batalhas de MCs – também organizados para e por grupos marginalizados em espaços públicos. Nas três competições, os participantes declamam versos originais, e os melhores, de acordo com os jurados da plateia, vencem. Em perspectiva mais ampla, nessas competições, membros de um coletivo subalterno disputam coletivamente pelo reconhecimento de seu grupo. Assim, os espaços públicos das performances assumem uma dimensão política, servindo como palco para legitimação do direito dessas comunidades à cidade. Os repentistas do DF garantiram, na década de 1980, um centro cultural para seus duelos, o que os protegeu da extinção local e reformulou sua imagem como bem instruídos cidadãos de Brasília. Sofrendo com a escassez de espaços públicos e de lazer em suas comunidades, os MCs da periferia, desde os anos 1980, têm se apropriado de lugares estratégicos em toda a cidade para batalhas de freestyle periódicas, que trazem oportunidades culturais às populações periféricas. Cada uma dessas batalhas apresenta um padrão ético do que significa criar um espaço inclusivo, revelando o desejo dos artistas de influenciar como os espaços públicos são percebidos e utilizados no DF. Por meio de competições de versos, os artistas têm concebido lugares coletivos e periféricos como vibrantes espaços de arte e desafiado a invisibilidade de moradores e artistas de grupos marginalizados. Uma vez que essas performances utilizam estruturas de competição que permitem à plateia votar, elas dispensam os guardiões hegemônicos do mérito artístico (gravadoras, editoras e assim por diante) e capacitam a comunidade local a julgar a arte por si mesma. Este capítulo começa com análises de slams de poesia e uma leitura cerrada de “Eixo”, de Bastos, seguida de seções sobre duelos de repente e batalhas de MCs para contextualizar os slams de poesia dentro da forte tradição, no DF, de competições de versos que se baseiam em estruturas de votação igualitárias.
Apesar de aparentemente abertos a todos, os espaços públicos urbanos muitas vezes são menos acolhedores para certos subgrupos (Valentine 145). Susan Ruddick argumenta que representações hegemônicas de coletividades marginalizadas nesses lugares frequentemente exacerbam a desigualdade e solidificam hierarquias sociais (138–39). Para os grupos subalternos considerados neste capítulo, tais representações hostis têm sido muito difundas, o que significa que o poder de autorrepresentação é de suma importância.[1] As imagens depreciativas e as competições de versos que as questionam revelam que os espaços públicos urbanos são territórios contestados. A forma como os moradores utilizam um espaço muda os significados ligados àquele lugar. Essas performances competitivas convidam à ressignificação coletiva de espaços públicos e periféricos ao associar tais lugares ao empoderamento, à arte de base, ao engajamento comunitário e à justiça social.
Slams de poesia
Os slams são competições de poesia falada criadas pelo poeta americano Marc Smith em Chicago, em 1984. Um júri de cinco pessoas, escolhido da plateia, atribui aos poemas uma nota de 1 a 10. Normalmente, as pontuações mais altas e mais baixas são descartadas, e as três médias são somadas para compor a nota final do participante. O slam tem três rounds: os poetas que recebem as maiores pontuações do júri avançam para a segunda rodada, e no terceiro e último round, o vencedor é anunciado. Ao contrário dos duelos de repente e das batalhas de MCs, nos slams de poesia os versos não precisam rimar, ser improvisados ou memorizados. Os poetas leem seus próprios escritos em um papel e no celular, ou recitam poemas decorados. Desde o seu início, os slams procuraram tornar a poesia mais inclusiva.
Os principais slams de poesia do Grande DF são o Slam das Minas (fundado em 2015 por tatiana nascimento), o Slam a Coisa Tá Preta (fundado em 2015 por tatiana nascimento) e o Slam Q’brada (fundado em 2017 por Meimei Bastos).[2] Das competições consideradas neste capítulo, os slams são as mais jovens e, em Brasília, as mais ideológicas, já que seu objetivo compartilhado é combater a discriminação. O Slam das Minas se caracteriza como a “primeira batalha de poesia falada exclusiva pra lésbicas y mulheres no DF”, e o júri é composto exclusivamente por mulheres (“Vídeos do Slam”). O Slam a Coisa Tá Preta se define como “o primeiro slam específico por, para y com pessoas negras: só pessoas negras podem falar seus poemas, o juri é formado só por pessoas negras” (Slam a Coisa Tá Preta). O Slam Q’brada observa que todos são bem-vindos a participar, exceto quem é machista, racista, homofóbico, transfóbico ou intolerante (Slam Q’brada, 21 de set. de 2018).
Uma característica importante desses três slams é que são itinerantes. Alguns dos espaços em que acontecem são centros culturais de ativismo social: a Casa Ipê, em Ceilândia; a Casa Frida, em São Sebastião; e a Casa Dandara, em Ceilândia. Outro local das competições é a ocupação artística Mercado Sul, em Taguatinga. Os slams também ocorrem em espaços públicos ao ar livre: na Praça do Relógio, em Taguatinga; no Parque do Bosque, em São Sebastião; e no Parque Vivencial do Paranoá. Outras instituições públicas sediam esses eventos, como a Casa do Cantador; o Cine Brasília; o Centro de Convenções Ulysses Guimarães; a Universidade de Brasília (UnB); a FUNARTE Brasília; e o Conic (os últimos cinco no Plano Piloto). Os três slams acontecem em alguns dos mesmos locais, e muitas artistas competem em mais de um deles.
Para os slams do DF, ser itinerante é uma questão política, já que afirma o direito das pessoas marginalizadas de estarem em qualquer lugar da cidade. O Slam Q’brada, por exemplo, se caracteriza assim: “somos um Slam nômade. nossa casa é todo lugar!” (Slam Q’brada, 19 mar. 2017). Os slams do DF buscam visibilidade para grupos que historicamente não são bem-vindos em espaços públicos. A slammer Kika Sena – que se identifica como negra, transgênero, de baixa renda e da periferia – enfatizou essa questão na performance de seu poema “des-cursos”, executada no FLUPP Slam BNDES, que ocorreu em 12 de novembro de 2016 no Rio de Janeiro e que fazia parte da Festa Literária das Periferias. Sena fica ao lado do microfone, com os braços estendidos, emitindo sons guturais de angústia, que expressam dor. Conforme ela grita, assovia e enrola seus Rs em uma fúria quase sem fôlego, seus gritos formam palavras alongadas distintas que se misturam: cor, corra e raça. A performance evoca perigo urgente e experiências de violência provocadas pelo racismo. Sena arranha seus braços estendidos e parece lutar para respirar, como se estivesse sendo atacada. Os sons se misturam e criam a palavra couraça (Sena “Descursos”; Sena, Periférica 51). O poema refere-se a pessoas negras, LGBTI+ e pobres que são assassinadas em praças públicas por crimes de ódio. A imagem do peitoral conjura armadura e guerra, mas o termo couraça – que contém a palavra raça – também sinaliza a cor do peito da vítima. O poema termina com Sena cantando uma palavra formada a partir de muitos dos mesmos sons encontrados no vocábulo couraça: coração. Desse modo, a performance enfatiza a humanidade de todas as vítimas que, quando mortas por sua aparência, foram julgadas pela camada mais externa e não pelo que essa couraça procurou proteger. As performances de Sena nos slams (através de sua linguagem corporal, voz e versos) abordam a violência física vivida por mulheres trans, negras e periféricas no espaço público, provocando a reflexão da plateia sobre a hostilidade desse espaço para aquele subgrupo.
O aumento do acesso à Internet facilita o formato itinerante dos Slams do DF, uma vez que potenciais poetas e consumidores de poesia podem facilmente entrar no Facebook dos grupos para saber onde acontecerá o próximo slam de poesia. Portanto, ao mesmo tempo que criam uma comunidade virtual nas redes sociais, os slams do DF fomentam uma comunidade física em suas competições. Esses agrupamentos criam espaços de inclusão para coletividades sub-representadas específicas de forma extremamente local, estimulando também uma comunhão cibernética com interesses compartilhados (Graham 167; Santiago 54). Tal diversidade de locais, reais e virtuais, anuncia: estamos em todos os lugares, ouça-nos!
Ao ocupar espaços de vários tipos, os slams atuam como locais inclusivos para a autoexpressão de indivíduos excluídos. O Slam das Minas, por exemplo, percebe que os homens acabam falando mais em público porque “desde crianças, foram treinados para expandir, ocupar espaço público com suas vozes”[3] (Slam das Minas “Carta de princípios”). Em resposta, o slam defende a importância de mulheres e lésbicas do DF serem capacitadas a falar em público. Para Pierre Bourdieu, “entre as mais radicais, mais seguras e mais ocultas censuras estão aquelas que excluem certos indivíduos da comunicação (por exemplo, por não os convidar para lugares onde as pessoas falam com autoridade, ou colocando-os em lugares sem discurso)” (“The Economics” 648–49). A autodescrição do Slam das Minas fala diretamente desse silenciamento de mulheres e da comunidade LGBTI+ a quem foram negadas oportunidades de ocupar espaços públicos. tatiana nascimento, organizadora e fundadora do Slam das Minas, enquadra a raison d’etre do slam em termos de uma história de mulheres de todas as orientações sexuais e pessoas transgênero até então silenciadas: “o desejo & a plenitude pela autoafirmação & autoexpressão abala o mundo duro que tenta o tempo inteiro nos convencer de que alguém pode nos calar, nos representar ou falar pela gente. cada qual se representa! cada uma com sua voz!” (Slam das Minas “Carta de Princípios”).
Referindo-se a poetas paulistas da periferia, Lucía Tennina afirma que, embora se identifiquem com o grupo predominantemente masculino de Literatura Marginal-Periférica, essas escritoras ressaltam o que distingue suas experiências como mulheres da periferia das experiências dos homens da periferia (“Afeto” 317). Em afirmação semelhante dessa diferença, a página no Facebook do Slam das Minas dá as boas-vindas, na linguagem coloquial do grupo, a todas as mulheres: “mina, sapa, trans*, sistah, miga, zami pode colar no slam pra partilhar seus poemas” (Slam das Minas “Slam das Minas #17”). Além disso, a escolha de um júri local exclusivamente feminino sinaliza a necessidade de desafiar os guardiões hegemônicos do mérito artístico para promover mais inclusão.
Tanto o Slam das Minas quanto o Slam a Coisa Tá Preta enfatizam que a performance da poeta não influenciará sua pontuação (Slam das Minas “Slam das Minas #17”; Slam a Coisa Tá Preta). O foco, então, não estaria na capacidade de pensar rápido ou ter presença de palco, mas na habilidade de escrever bem, muitas vezes baseando-se na experiência pessoal como fonte de conhecimento e inspiração. Ao contrário das batalhas de MCs, em que a competição é de maior importância, a página do Slam das Minas no Facebook destaca que “a competição é só uma desculpa pra estarmos juntas” (Slam das Minas “Slam das Minas #17”). Mas essa declaração é questionável, pois o DF sedia muitos saraus progressistas e os organizadores dos slams estão familiarizados com o modelo não competitivo de evento de poesia. Ao contrário, as poetas que tendem a ganhar os slams (muitas vezes atrizes, como Meimei Bastos e Kika Sena) têm habilidades performáticas – projeção vocal, presença de palco, excelente linguagem corporal, capacidade de memorizar poemas – que integram a transmissão de uma mensagem de força e resistência. Uma atuação de Bastos é exemplo disso.
“Eixo” foi o poema inicial que Bastos apresentou no primeiro Slam das Minas, em 23 de junho de 2015 no Espaço Cultural Mapati, um teatro privado no Plano Piloto fundado em 1991. Ela performou um poema em cada um dos três rounds e ganhou o slam. Sua linguagem corporal e escolhas vocais – contato visual, postura confiante, voz firme, uso efetivo de gestos manuais, memorização do poema e atenção cuidadosa ao ritmo – intensificaram a resposta emocional dos espectadores. A plateia estalou os dedos em aprovação no final das estrofes e aplaudiu entusiasticamente no final da leitura. A poderosa performance durou menos de um minuto. “Eixo” centra-se na marginalização espacial experienciada por mulheres periféricas que compartilham desejos e dificuldades semelhantes. O poema de Bastos enquadra a periferia como um espaço unificado de empoderamento feminista. Embora este capítulo analise e reproduza a versão falada do poema, o argumento serve também à versão escrita, incluída na coleção de poesias Um verso e Mei (2017), que é analisada no Capítulo 7. A versão publicada é cerca de um terço mais extensa e incorpora pequenas alterações nos versos recitados em junho de 2015.
Redefinindo o léxico do Plano Piloto para mostrar que ela experimenta divisões espaciais como forma de violência, Bastos conecta o corpo feminino à exclusão espacial que inibe sua voz:
tinha um Eixo atravessando o meu peito,
tão grande que cortava minha alma em L2
Sul e Norte.
uma W3 entalada na garganta virou nó. [4] (Bastos, “1° slam”)
A provocação envolve uma mudança de escala: a enorme infraestrutura invade o peito e a garganta de uma mulher, mostrando que o planejamento urbano elitista de Brasília silencia e sufoca a cidadã marginalizada.
“Eixo” estabelece um contraste entre espaços de privilégio e espaços de privação no DF e no Entorno do Distrito Federal. Segurando o microfone na mão esquerda, Bastos aponta com o dedo indicador e usa todo o braço direito para gesticular cada um dos seguintes versos, usando seu corpo para acentuar os contrastes expressos no poema. A suposição é de que o público-alvo conhece esses lugares e, portanto, entende as oposições:
eles têm o Parque da Cidade,
nós, o Três Meninas,
eles, a Catedral,
nós, Santa Luzia,
eles, o Lago Paranoá,
nós, Águas Lindas. (Bastos, “1° slam”)
Cada par de “nós-eles” combina com uma parte do centro rico e da periferia empobrecida através de semelhanças em suas funções ou nomes. A primeira combinação é de parques. A segunda envolve nomes com conotações católicas, emparelhando a Catedral Metropolitana de Brasília e Santa Luzia, uma favela com 12 mil habitantes que não tem água encanada ou eletricidade. A combinação final justapõe o enorme Lago Paranoá e Águas Lindas de Goiás, um município vizinho. Um local é literalmente um corpo d’água e o outro tem a palavra águas em seu nome. Na performance do poema, os lugares periféricos associados a nós reinam superiores sobre as atrações turísticas do Plano Piloto, proclamando orgulho periférico.
No poema, o termo nós é muito inclusivo e abrangente, mostrando a solidariedade entre grupos marginalizados do DF e do Entorno. O uso da palavra “nós” não pretende essencializar uma identidade de grupo, mas, ao contrário, afirma o que Etienne Balibar chama de “direito, coletivo e ético, à diferença na igualdade” (56). O “direito à diferença na igualdade” reconhece a diferença ao mesmo tempo em que admite uma luta partilhada por voz e poder dentro e ao redor de Brasília (Balibar 56). Ao conjurar vários grupos subalternos (mulheres, moradores das periferias e não brancos), Bastos está expressando o que Homi Bhabha chamaria de um “direito de narrar” compartilhado (Bhabha xxv).[5] Conforme afirma o direito de narração das mulheres negras e periféricas, a poeta rejeita estereótipos associados a esse grupo e faz um trocadilho com o nome da região administrativa de baixa renda Santa Maria:
eu sou filha da Maria, nem santa e nem puta. (Bastos, “1° slam”)
Apesar de Bastos ser aluna da UnB, seu poema reverte o domínio de uma educação tradicional:
nasci e me criei num Paraíso que chamam de Val
e me formei na Universidade Estrutural. (Bastos, “1° slam”)
Através de uma série de jogos de palavras, a artista defende que seu conhecimento é fruto da experiência vivida na periferia. Val Paraíso de Goiás é uma área de baixa renda perto de Brasília. Estrutural é o nome de um bairro construído ao lado de um aterro (fechado desde 2018) por catadores que recolhiam materiais recicláveis do lixo para vender. Bastos ressignifica esse local como um lugar de produção de conhecimento: a Universidade de Estrutural. Essa reconfiguração produz um novo espaço epistemológico para os residentes que, dentro de um sistema capitalista neoliberal, têm sido tratados como descartáveis, ou, como Alexander Weheliye diria, como “não-tão-humanos” (8). Forçados a sobreviver no lixo, eles foram despojados de sua humanidade.
O poema termina expressando orgulho da periferia. Os versos criam solidariedade entre populações vulneráveis do DF e do Entorno, para não normalizar a segregação:
eu não troco o meu Riacho de Recantos Fundos[6]
pela tua Tesourinha.
essa Bras(ilha) não é a minha.
porque antes de ser Planalto,
eu sou periferia!
porque antes de ser concreto,
eu sou quebrada! (Bastos “1° slam”)
“Eixo” brinca com os elementos bucólicos dos nomes de duas áreas de baixa renda do DF. Elas aparecem ameaçadas pelo concreto e pelas Tesourinhas, o nome das rampas de entrada e saída das rodovias trevos de Brasília. A poeta rejeita o termo Planalto – que significa, literalmente, planícies altas – como se se referisse a planos hierárquicos, alinhados ao nome Plano Piloto.
Muitas vezes os artistas de Brasília falam que “o concreto rachou”.[7] A metáfora começou com o álbum de estreia, O concreto já rachou (1985), da banda de rock Plebe Rude baseada em Brasília. A expressão refere-se tanto ao ideal utópico fraturado quanto ao fato de que seus atuais moradores agora moldam Brasília mais do que seu plano inicial. Mas no contexto do poema de Bastos (assim como em Branco sai, preto fica, de Queirós), a quebrada é o que racha o concreto, já que as vozes artísticas das periferias quebram as fronteiras que antes impediam que sua produção cultural fosse reconhecida e disseminada.
Por meio do jogo de palavras que faz referência ao planejamento urbano de Brasília, o poema registra a divisão espacial como forma de violência física e silenciamento. Em tom libertador, a slammer concebe suas experiências pessoais de mulher negra e da periferia como base para sua sabedoria. Sua poesia é uma forma de “escrevivência”, neologismo da escritora Conceição Evaristo que mistura as palavras escrever e sobrevivência. Escrevivência refere-se à escrita como ferramenta de sobrevivência em uma sociedade hostil e é um termo reiterado por escritoras afro-brasileiras contemporâneas (Evaristo). Bastos busca o reconhecimento da periferia e da personhood (personalidade)[8] de grupos marginalizados. Assim, ela ressignifica a periferia como lugar de dignidade e empoderamento.
Desde então, o Slam de Minas se espalhou por São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Além de ser um lugar em que grupos sub-representados podem afirmar seu direito de ter voz em espaço público, os slams do DF também se tornaram plataforma de lançamento para futuras publicações de livros. Pequenas editoras, como a padê editorial, de tatiana nascimento e Bárbara Esmenia, e a Nua, de Sabine Mendes Moura, são anunciadas na página do Facebook do Slam das Minas. Um novo impulso em torno da publicação independente e de apostas artesanais têm ajudado as poetas do DF a divulgarem seus poemas. Muitas artistas brasilienses que iniciaram suas carreiras em slams locais já lançaram coleções de poesia, como tatiana nascimento, Kika Sena e Meimei Bastos. Da mesma forma, as batalhas de repente são apenas uma das formas de os repentistas difundirem seus talentos. Todos os repentistas do DF publicam livros, gravam músicas ou ainda se apresentam não competitivamente. A maioria dos rappers freestyle também compõe e grava músicas, ganhando dinheiro com seus canais no YouTube ou com a venda de composições. Portanto, as competições de versos divulgam e criam uma demanda por artistas em espaços públicos. Neste meio social, o espaço público se transforma em um local onde grupos sub-representados podem ganhar reconhecimento coletivo. A seção a seguir ajuda a entender a história dessa luta pelo espaço criativo no DF.
Duelos de repente
Duelos de repente – também conhecidos como desafios ou disputas – são competições de poesia improvisada que ocorrem entre dois adversários. [9] A tradição surgiu no Nordeste rural no século XIX, trazida pelos portugueses (Barroso 563). As raízes incertas do repente provavelmente remontam a versos improvisados medievais ou à poesia pastoril da antiguidade grega (Ferreira Cazumbá 378–379; Câmara Cascudo 185–87). O nome repente deriva de “de repente”, referindo-se à natureza espontânea dessa forma de arte. Existem vários estilos de repente, com regras sobre métrica, o esquema rítmico e o número total de versos. O repente pode ser performado por um repentista solo ou por uma dupla. Às vezes, um integrante da plateia ou um membro oficial do evento sugere um mote sobre o qual os poetas devem rimar e com o qual devem finalizar cada estrofe. Nesses casos, os artistas demonstram seu conhecimento sobre eventos atuais, sociedade ou história brasileira. Muitas vezes há competição entre duas duplas (G. I. M. Nascimento 57) e, em outros momentos, os dois membros da mesma dupla participam de um duelo, competindo entre si.
Em duelos de repente, dois artistas cantam ou proclamam versos improvisados, rimados e medidos, em um dueto competitivo de bate e volta. Cada artista deve “pegar na deixa”, ou seja, seu primeiro verso deve rimar com o último verso do oponente, um costume (também usado em batalhas de hip-hop) que ajuda a garantir que os repentistas estão realmente improvisando (Sautchuk, “Poetic” 269–270; Sautchuk A poética 59). O objetivo nos desafios de repente é provar a superioridade sobre o adversário, criticando-o e elogiando a si mesmo. Ganha o poeta com as melhores rimas, métricas mais consistentes, respostas mais eficazes ao adversário, menos pausas, melhor presença de palco e versos mais inovadores. No final, os poetas “fazem as pazes”. Existem subgêneros e alguns são definidos pelo instrumento utilizado, como o violão de corda de aço acústico (na cantoria de viola) ou o pandeiro (no coco de embolada[10]), que acompanham os duetos improvisados ou semi-improvisados.[11] Em duelos de repente, o público atua como júri informal, mostrando aprovação através de aplausos, palmas e gestos de mão que determinam o vencedor. No entanto, apenas em festivais o vitorioso é oficialmente reconhecido (Sautchuk, “Poetic” 266). Na Brasília do século XXI, festivais e eventos regulares de repente são comuns. Dentre eles, encontram-se o Festival Regional de Repentistas do DF e Entorno (fundado em 1992), o Festival Nacional de Repentistas de Brasília (fundado em 2011) e a Sexta do Repente (que acontece às sextas-feiras na Casa do Cantador) (Associação dos Cantores).[12] Nos festivais, o júri de repentistas dá nota a cada competidor e, embora a pontuação possa variar entre 1 e 10, os jurados não atribuem notas abaixo de 5 (Oliveira cit. em G. I. M. Nascimento 57).
Os trabalhadores nordestinos que construíram Brasília trouxeram a tradição do repente para o DF (Silva Osório, “Cantoria” 65). Nas primeiras décadas da capital, duelos de repente ocorriam em praças públicas, feiras, encontros informais e bares.[13] Através dessas disputas, a diáspora nordestina marginalizada realizou e validou sua identidade na Região Centro-Oeste. Com a criação de Ceilândia, em 1971, uma grande concentração de nordestinos foi forçada a se mudar para o novo assentamento habitacional. Dentre eles estava Donzílio Luiz de Oliveira, natural de Itapetim, Pernambuco, um candango que construiu Brasília e que vem fazendo, desde então, apresentações de repente na cidade.[14]
Ceilândia logo ganhou notoriedade como um centro de arte popular nordestina. Na década de 1970, cerca de 30 repentistas, como Gongon e Donzílio Luiz de Oliveira, começaram a reivindicar que o governo do DF garantisse um local permanente para a arte popular nordestina em Ceilândia (G. I. M. Nascimento 27, 68). Sua luta foi tanto uma forma de autopreservação quanto uma maneira de ressignificar um lugar associado à pobreza e ao crime como um centro de arte. Os esforços dos repentistas levaram à criação da Casa do Cantador, de Ceilândia, em 1986.[15] Vários políticos nacionais e distritais, incluindo o então presidente José Sarney, presidiram a inauguração do centro cultural dedicado à arte de um subgrupo da população que tem sido mais frequentemente vítima do que beneficiário das políticas governamentais. Nesse sentido, o centro cultural poderia ser considerado um mero símbolo para satisfazer as massas, mas a conquista que ele representa como lugar público para a exibição dos talentos artísticos de grupos de baixa renda e da periferia é significativa. A Casa do Cantador possibilita uma estrutura para duelos de repente indisponível em praças públicas, já que têm banheiros; proteção contra as intempéries climáticas; assentos; cozinha; e até quartos para os repentistas forasteiros visitantes, fatores que facilitam tanto a criação quanto o consumo dessa forma de arte. Ao garantir uma instituição para sua arte na década de 1980, esses poetas nordestinos transformaram padrões de consumo e de produção do repente no espaço público.[16]
A luta bem sucedida por uma casa permanente em Ceilândia para o repente e outras formas de arte popular nordestinas teve profundos impactos sobre aquela região administrativa, o repente e o consumo cultural local. Tanto os repentistas do DF quanto a Casa do Cantador desafiaram concepções negativas sobre Ceilândia e o repente. O prédio físico da Casa do Cantador agrega status cultural a Ceilândia por ser o único edifício de Niemeyer no DF fora do Plano Piloto.[17] Embora possa parecer irônico que a Casa do Cantador seja construída em um estilo desconectado da cultura nordestina que busca representar, o prestígio de um edifício projetado pelo arquiteto mais renomado do Brasil é motivo de orgulho para ceilandenses e repentistas. Para a antropóloga Patrícia Silva Osório, “Frente aos graves problemas sociais, altos índices de homicídio e roubos, a Casa do Cantador é indicada por muitos ceilandeses como uma das melhores coisas que existem na cidade [Ceilândia]” (“Cantoria” 66).
Além disso, o estilo do edifício condiz com a tendência mais geral de se considerar o repentista do DF como um cidadão urbano, bem informado e da classe média. Silva Osório afirma que os repentistas da Casa do Cantador não querem ser associados aos típicos vaqueiros rurais nordestinos, mas sim aos códigos e valores de uma sociedade urbana de classe média (“Cantoria” 79). Os repentistas do DF vestem calças, camisas de manga comprida e sapatos engraxados (ao contrário de chapéus de cowboy e roupas de couro) e exibem, com seus versos, conhecimentos sobre a cidade, a política e os eventos atuais, em oposição aos temas rurais (Silva Osório, “Cantoria” 74, 79). Em geral, eles são homens da diáspora nordestina que trabalhavam como operários, não frequentaram a faculdade e, por meio do repente, aumentaram seu capital social. Paradoxalmente, esses artistas encontram no repente – uma forma de arte associada ao campo, ao analfabetismo e à pobreza – uma oportunidade de se desassociar dessas categorias. Os repentistas adaptam seus versos de forma pessoalmente vantajosa, e o espaço público facilita o equilíbrio entre a preservação e a transformação dessa forma de arte.[18]
O atributo mais significativo da Casa do Cantador é a sua localização. Por estar em Ceilândia, fica perto dos produtores de arte popular, o que facilita o consumo e a realização de apresentações de repente e outros eventos de arte, incluindo os slams de poesia e as batalhas de MCs (Silva Osório “Cantadores” 73; “Casa do Cantador”). Além disso, a Casa do Cantador foi o primeiro espaço a redefinir a periferia do DF como destino cultural. Historicamente no DF, o Plano Piloto foi o epicentro artístico e pessoas de toda a capital se deslocavam até lá para consumir cultura. Porém, cada vez mais, esse fluxo está se alterando, e a Casa do Cantador foi um catalisador inicial dessa mudança. Seu diretor, Neném, observa: “Quando temos alguma coisa aqui, aparece gente de tudo que é canto” (“30 anos” 24). A Casa do Cantador atua como centro cultural, reunindo diferentes gerações e gostos. Enquanto muitos eventos de arte (teatro, música e assim por diante) no DF têm lutado para encontrar espaços de performance confiáveis, a Casa do Cantador, no contexto de Ceilândia, atenua esse problema.[19]
Um duelo de repente na Casa do Cantador em 2007 demonstra como os eventos de versos competitivos desafiam expectativas sobre quem tem o direito de ocupar o espaço público. Esse duelo de coco de embolada aconteceu entre a dupla Dona Terezinha (nascida Otília Dantas Lima) e Roque José. Dona Terezinha e Roque José se apresentavam em vias públicas por toda a cidade e em eventos de repente na Casa do Cantador. Nesse duelo em particular, Dona Terezinha humilhou completamente seu oponente ao dizer que ele estava tão bêbado na feira a ponto de permitir que um cachorro urinasse em sua boca. Nesse momento, as risadas e gestos da plateia deixaram claro que Dona Terezinha havia vencido. Uma mulher gesticulava brincando com as mãos para afastar Roque José, demonstrando que, nesse cenário, as mulheres atuavam como juízas (“Vídeo Casa do Cantador”). Dona Terezinha era uma conhecida repentista do DF, e parte de sua fama devia-se ao fato de que, ao competir com adversários masculinos (principalmente Roque José, que tinha 33 anos em 2007), ela, uma mulher de 69 anos em 2007, zombava deles com conteúdo sexual chocante, versos escatológicos, linguagem rude e sotaque e entonação sugestivos da Paraíba, onde cresceu (Santos e Barbosa 61). Assim, ela desestabilizou as expectativas sobre como as mulheres (particularmente uma idosa de baixa renda) devem se comportar e falar em uma sociedade patriarcal, permitindo que o público se juntasse a ela em uma rejeição catártica a estereótipos de gênero falsamente naturalizados (Menezes, 2014; Butler 338). [20] Além disso, sua performance raivosa afirmou o direito das mulheres periféricas de serem artistas, de se expressarem abertamente e de ocuparem o espaço público.
A transformação espacial mais significativa promovida pelos duelos de repente em Brasília foi a construção do centro cultural que os impediu de serem extintos no DF. Embora inevitavelmente os duelos mudem um pouco nesse contexto mais institucional, a rispidez do repente de Dona Terezinha demonstra que essas disputas não foram higienizadas quando se mudaram da praça pública para o centro cultural. Os duelos de repente têm desempenhado um papel importante na ressignificação de Ceilândia como um centro de arte e reenquadrado os repentistas como bem informados e criativos praticantes de uma forma de arte digna de seu lugar conquistado na capital.
Batalhas de MCs
As batalhas de freestyle seguem a tradição do repente de criar uma troca de rimas improvisadas que usam a linguagem específica (sotaque, sintaxe, vocabulário e gíria) da forma de arte do grupo. No caso do DF, a maioria dos MCs são homens de baixa renda e da periferia, adolescentes ou na casa dos vinte anos, dos quais muitos se identificam como negros. As batalhas de conhecimento (como a Batalha do Neurônio) são baseadas em um tema, que muitas vezes é sugerido pelo público. Em batalhas de duelo (também conhecidas como “batalhas de sangue”), os competidores buscam humilhar seus adversários com comentários depreciativos. Qualquer rapper freestyle (também conhecido como MC) que apresentar os versos mais criativos, as rimas mais inovadoras e as respostas mais inteligentes ao oponente vence. Na primeira rodada, um competidor inicia o ataque, e então o outro reage, tentando responder as provocações específicas. No segundo round, os competidores trocam de papéis. O MC que recebe mais aplausos do público ou mãos levantadas ganha, ou, ainda, a escolha de dois juízes recebe o mesmo peso que o “voto” do público (Cabral 20). Se houver empate, a competição vai para a terceiro e último round. É comum ouvir os membros da plateia entoarem “sangue!” nessa forma estilizada de batalha em que a humilhação humorística toma o lugar da violência física. As formas de humilhação variam entre acusações hiperbólicas de incompetência artística (versos memorizados), problemas relacionados ao corpo e à aparência (doenças sexualmente transmissíveis, características físicas indesejáveis, dependência química, feiura ou falta de estilo) e o que consideram falhas de caráter (fraqueza, medo, feminilidade, superficialidade, incapacidade de representar a comunidade ou falta de respeito). Apesar da agressividade encenada, as batalhas terminam pacificamente, muitas vezes com um aperto de mão ou um abraço, seguindo a tradição do repente de “fazer as pazes”.
Embora seja mais comum identificar as raízes do rap do DF com o início desse movimento musical em Nova York na década de 1970, as semelhanças entre repentistas e rappers freestyle em Brasília são significativas e, como já discutido no Capítulo 1, foram enfatizadas pelos centros culturais (Lopes da Silva, “Literatura ‘Rapentista’” 230).[21] Através de batalhas de freestyle, uma comunidade de pessoas (em sua maioria homens jovens de baixa renda), que, como diz Teresa Caldeira, “deveriam ser invisíveis”, democraticamente reaproveitam o espaço público urbano (de forma organizada e abrangente) como locais de arte autoral para e por uma comunidade sub-representada (Caldeira, “Gender” 420).
Esse processo começa com uma escolha estratégica do local, determinado pela acessibilidade e proximidade. As dezenas de duelos semanais no DF ocorrem predominantemente em locais públicos ao ar livre de fácil acesso.[22] Em muitos casos, esses locais são os espaços públicos referenciais de uma região administrativa, o que aumenta a visibilidade das batalhas. A frequência das batalhas de MCs (desde 2012) e o destaque de seus locais fazem delas, juntamente com o grafite e a arquitetura, a forma de arte mais visivelmente proeminente no DF. Um impacto dessa visibilidade é que ela legitimou batalhas de freestyle aos olhos do público em geral. O principal jornal de Brasília – o Correio Braziliense –, por exemplo, frequentemente anuncia as batalhas e divulga informações sobre sua localização e horário. Além disso, grupos não tipicamente associados às batalhas de freestyle, como famílias, cada vez mais podem ser encontrados assistindo e participando desses eventos em seus bairros.
Devido à escassez de espaço público na periferia de baixa renda do DF, cada praça pública assume um nítido papel como um lugar para “protestar, celebrar e negociar valores comuns e relações sociais” (Lima e Pallamin 84). A Batalha do Relógio, na Praça do Relógio, em Taguatinga, fornece indicações sobre como as batalhas de freestyle influenciam e são influenciadas pela materialidade de sua localidade. Um dos fundadores da Batalha do Relógio, MC Thiago Cardoso Martins, argumenta que “A praça tem vida, muita cultura e potencial. Queremos tirar esse preconceito que a ronda” (cit. em Cabral 22). Outro participante da mesma batalha, MC Silas Augusto Pessoa da Cunha, afirma que “mostramos para a polícia que respeitamos o espaço e ajudamos a torná-lo melhor” (cit. em Cabral 22).
No caso do jovem MC BMO (nascido Bernardo Monteiro Martins de Oliveira), a proximidade da Praça do Relógio de sua casa permitiu que ele se tornasse um rapper freestyle e alcançasse o reconhecimento público. MC BMO mora em Taguatinga, a uma curta distância da Batalha do Relógio. Aos 11 anos, ele saiu de casa para batalhar e, em sua primeira competição, já conquistou o segundo lugar. O evento marcou o início de uma carreira ao longo da qual venceu muitas batalhas e esteve duas vezes entre os finalistas (em 2015 e 2016), embora nunca tenha sido selecionado para representar o DF no Duelo Nacional de MCs em Belo Horizonte, a competição freestyle mais importante do Brasil em que os rappers representam diferentes estados brasileiros (e o DF é considerado um estado). Ele compete em batalhas por toda a capital, mas às vezes sua família não tem o dinheiro do metrô ou do ônibus para eventos distantes, como a Batalha do Museu (“O pequeno” 26). Nesse cenário comum em que as limitações financeiras restringem a mobilidade espacial, a presença de batalhas próximas das casas dos participantes potenciais abre oportunidades artísticas para um público mais amplo.
MC BMO, porque é um rapper freestyle e muitas vezes ganha batalhas, cria um espaço epistemológico que valoriza as opiniões, as experiências e as emoções de crianças periféricas. Enquanto rimas freestyle podem ser salpicadas de vulgaridades, os adversários do MC BMO foram desafiados a improvisar versos apropriados para uma criança. Essa adversidade renova o orgulho de um gênero em ser uma influência positiva para jovens sub-representados. Em contraste com essa história de sucesso de base está um dos concorrentes frequentes do MC BMO, a quem ele se refere como o rapper freestyle mais talentoso contra quem já competiu, o MC Sid (nascido Lucas Luan) (MC BMO).
O sucesso de MC Sid ilustra a experiência desigual do direito à cidade. Ele é um rapper branco e de classe média do afluente Lago Norte. Até 2016, os mais conhecidos rappers freestyles do Brasil vinham de São Paulo (Emicida), Rio de Janeiro (Allan, Samurai e Orochi) e Belo Horizonte (Douglas Din e Simpson). No entanto, em 2016, MC Sid venceu o Duelo Nacional de MCs.[23] Para escolher o representante do DF, foram promovidas batalhas em cada uma das principais competições da cidade, e então os MCs vencedores competiram uns contra os outros. MC Sid, da Batalha da Escada da Universidade de Brasília (UnB), venceu.
A Batalha da Escada, iniciada em 2015, acontece semanalmente no Teatro de Arena (um anfiteatro ao ar livre) no campus principal (o campus Darcy Ribeiro) da UnB. Embora a batalha freestyle exista dentro do Plano Piloto em um local representativo de capital social extremo, ela se esforça para ser inclusiva e defender a justiça social. Lucas Cândia, que filma a batalha, afirma que “as pessoas vêm de todos os lugares. Vemos a periferia representada, conquistando seu direito e seu espaço. Ocupar esse lugar é muito importante. Conseguimos deixar o ambiente mais crítico, menos preconceituoso” (cit. em Cabral 23). Para a Batalha da Escada, criar um espaço público ético e convidativo significa reservar duas das 16 ou 20 vagas para mulheres e duas para recém-chegados (Cabral 23). As letras de MC Sid, em canções como “Rap news”, denunciam homofobia, racismo e sexismo.
No entanto, o fato de que o único MC da Batalha da Escada a subir à notoriedade nacional seja um homem privilegiado, branco, heterossexual e cisgênero revela os limites dessa tentativa de inclusão. A posicionalidade e a riqueza (carro, lazer e renda) de MC Sid facilitam seu sucesso, e ele confirma o receio de aparecer na Batalha da Bíblia, em Ceilândia, com seu carro: um “playboyzinho” que nunca viveu na periferia (MC Sid “Papo”). Mas sua possibilidade de fazê-lo revela que MC Sid possui uma mobilidade mais ampla do que a de rappers negros e de baixa renda da periferia. Enquanto MC Sid pode entrar em qualquer lugar do DF sem ser visto como uma ameaça, rappers marginalizados e racializados provavelmente não seriam bem-vindos nos espaços públicos do Lago Norte da mesma forma.
Embora as batalhas de MCs tenham sido dominadas principalmente por homens, cada vez mais mulheres são encontradas competindo. Os estudiosos de arquitetura Zeuler R. M. A. Lima e Vera M. Pallamin argumentam que “vozes culturais e sociais emergentes constantemente se reinventam ao mesmo tempo em que reinventam as normas do debate e os espaços da cidade onde tais negociações ocorrem” (83). Tanto nas batalhas de freestyle quanto nos slams de poesia, as mulheres reinventaram as normas do debate. Seus versos mostram como “a vida cotidiana na cidade é vivida em lugares disputados” onde o sexismo limita a mobilidade espacial (Frers e Meier 3). A presença de MCs mulheres faz com que as batalhas de freestyle confrontem suas tradições machistas. Há hoje no DF uma Batalha das Gurias exclusivamente feminina, fundada em 2013 (a segunda só de mulheres criada no Brasil). Esta batalha foi criada porque as performances de hipermasculinidade geralmente presentes nesses eventos fizeram com que as rappers mulheres e LGBTI+ fossem deixadas de lado. Uma de suas fundadoras, Dihéssika Wendy, fala de seus valores progressistas, observando que “nas nossas batalhas temos um espaço maior para falar sobre feminismo e sobre questões sociais e políticas” (cit. em Cabral 24). Além disso, as regras reais da batalha são diferentes para incentivar a diversidade de participantes e criar um espaço mais ético: “é proibido tocar no adversário e ter falas racistas ou homofóbicas” (cit. em Cabral 24). A Batalha das Gurias começou em vários locais da capital, mas desde julho de 2018 acontece mensalmente na Praça Zumbi dos Palmares, fora do Conic (nome informal do Setor de Diversões Sul) no Plano Piloto (Batalha das Gurias; Cabral 24). Para a Batalha das Gurias, encontrar um local permanente consistia em importante conquista para dois grupos (mulheres e homens gays) tradicionalmente silenciados em espaços públicos: “Conquistamos nosso espaço no CONIC, bem no centro da capital federal [...] Bora ocupar!” (Batalha das Gurias). O chamado é para tornar visível, em um espaço público proeminente, sujeitos que, de acordo com a perspectiva hegemônica, deveriam ficar invisíveis.
A transformação espacial mais significativa das batalhas de MCs tem sido a de enquadrar espaços públicos em todo o DF como locais organizados para expressar a arte original dos moradores sub-representados e deixar que esses mesmos moradores julguem essa arte. As posições éticas de diferentes batalhas variam, e não há voz unificada do freestyle na cidade. Porém, de modo geral, as batalhas freestyle apresentam os moradores periféricos como artistas que trazem cultura, entretenimento e coesão comunitária para suas regiões administrativas. O fato de mulheres e pessoas LGBTI+ da periferia terem experimentado mais animosidade nesses espaços do que homens brancos, heterossexuais e de classe média expressa as experiências desiguais do direito à cidade no DF. Esse quadro também ajuda a explicar a ênfase na política identitária dentro dos slams de poesia em Brasília, uma reação a experiências anteriores de silenciamento no espaço público.
Conclusão
Os slams de poesia no DF se conectam a uma vibrante tradição na capital de grupos sub-representados que organizam competições de versos para proclamar tanto o direito criativo dos artistas à cidade quanto seu desejo de ter a própria comunidade julgando o valor de sua arte. As competições de versos são um componente da arte contemporânea do DF que abrange diferentes definições de identidade e gêneros artísticos para enquadrar os espaços públicos da capital em termos de comunhão e comunidade. Em slams de poesia, duelos de repente e batalhas de MCs, artistas atuam como árbitros sociais, artísticos e espaciais que lutam pelo reconhecimento de grupos específicos e seu direito de ocupar os espaços públicos da cidade de modo criativo.
Notas
[1] Grupos hegemônicos consideravam os nordestinos de baixa renda, nas primeiras décadas da capital, como intrusos em terras públicas que deveriam voltar para os estados de onde vieram (Holston, The Modernist 204). Esses mesmos grupos muitas vezes veem os repentistas nordestinos no DF como mendigos que são um incômodo em espaços públicos (Silva Osório, “Cantadores”). Jovens de baixa renda (particularmente, mas não exclusivamente, homens e negros) da periferia urbana em espaços públicos têm sido representados na mídia como desocupados, criminosos, traficantes de drogas ou párias sociais (Ferreira Vaz e Fabrino Mendonça; Porto Media; Perlman; Dalcastagnè Literatura brasileira; Monteiro e Cecchetto). Mulheres transexuais no espaço público são associadas a profissionais do sexo e estão mais vulneráveis à violência física do que outros grupos (Aizura; Veiga e Guzzo). As mulheres no espaço público, particularmente as negras, têm sido alvo de discriminação verbal e violência física (Feagin; Pain).
[2] Outros slams do DF incluem o Slam Afronta e o Slam Déf.
[3] tatiana nascimento escreve sempre em letras minúsculas, então eu mantive seu estilo. Esta é uma das várias tendências gráficas dos poetas de slam e de saraus no DF que desafiam a formalidade do português padrão e servem como marca de identificação do grupo. Para mais informações sobre este tema, ver Capítulo 7.
[4] Ao reproduzir o poema falado, dividi as palavras em versos e estrofes como elas estão em Um verso e Mei, de Bastos, e segui sua pontuação. Porém, como o foco do capítulo são os próprios slams de poesia, eu transcrevi as palavras tal como a slammer as pronunciou no evento. O Instituto de Estudos Socioeconômicos de Brasília publicou o poema de Bastos online em dezembro de 2015, e aquela versão é semelhante à que ela recitou (Bastos, “Eixo”).
[5] Bastos consegue um efeito semelhante em Um verso e Mei, que começa assim: “minha só a caligrafia. nas entrelinhas destes versos sou toda gente quebrada” (9).
[6] Presumo que Bastos acidentalmente trocou duas palavras na performance e quis dizer o que está impresso em sua coleção de poesias “Recanto de Riachos Fundos”.
[7] André Gonzales, do Móveis Coloniais de Acaju, usa esse termo no documentário Mobília em casa, de José Eduardo Belmonte, e os jornalistas Marcus Lacerda e Fábia Pessoa o utilizaram em 2017 na 15a edição da Traços (8).
[8] Eu me refiro à definição de personhood (personalidade) de Jerrold Seigel como “uma dignidade transmitida pelo reconhecimento social, e às vezes uma qualidade derivada de talentos ou dons individuais” (16).
[9] João Miguel Sautchuk ressalta que os cantores são simultaneamente adversários e parceiros (“Poetic” 261). Para uma explicação detalhada dos componentes técnicos poéticos e musicais do repente, bem como comparações com as tradições de poesia improvisadas de outras nações, ver A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino, de Sautchuk. Para uma explicação em inglês, ver “Poetic Improvisation in the Brazilian Northeast”, de Sautchuk.
[10] Alguns pesquisadores consideram o coco de embolada um gênero separado (Sautchuk, “Poetic” 261; Crook, Brazilian Music 63) em parte porque ele não é sempre improvisado (Sautchuk, “Poetic” 287). Larry Crook o descreve como “a entrega rápida de poesia cômica usando duplo sentido” (Crook, Brazilian Music 63).
[11] Para uma análise da improvisação do repente, ver “Poetic”, de Sautchuk. Para descrição de diferentes subgêneros do repente, ver Brazilian Music pp. 91-106, de Crook.
[12] De acordo com Sautchuk, repentistas de alto escalão que se apresentam em festivais (onde os juízes avaliam sua precisão técnica) consideram os repentistas que performam na rua como mendigos não qualificados (“Poetic” 265). Os melhores repentistas de Brasília incluem Valdenor de Almeida, Francisco (“Chico”) de Assis, Donzílio Luiz de Oliveira, Messias de Oliveira, Ramalho de Oliveira e João Santana. Assis (que geralmente se apresenta em dupla com Santana) estima que apenas cerca de cinco moradores do DF, incluindo ele mesmo, conseguem ganhar a vida exclusivamente como repentistas. Para a maioria, o repente é um hobby (“30 anos” 24).
[13] O Bar do Seu Camilo, no Núcleo Bandeirante, foi o primeiro centro de repente no DF e o Bar do Galego, em Ceilândia – na década de 1970 –, foi o seu segundo (Moysés 71; Silva Osório, Cantoria, 65).
[14] Para uma história paralela da chegada dos primeiros repentistas nordestinos em São Paulo, a partir de 1946, e os espaços daquela cidade que eram importantes para essa forma de arte, ver Ângelo (Ângelo 69).
[15] A instituição passou por várias estruturas administrativas. Foi comandada pela Secretaria de Cultura do DF até 1999. Em seguida, foi administrada pelo governo de Ceilândia de 1999 até o início dos anos 2000, período em que caiu em desuso, deixando de sediar eventos regulares abertos ao público de 2007 a 2011. Em 2008, a Secretaria de Cultura do DF reassumiu a administração da Casa do Cantador. Em 2013 e 2014, o prédio foi restaurado (Moysés 75; Campoli; Guedes; “Frank Aguiar”; K. Costa). Para mais sobre a história da Casa do Cantador, ver G. I. M. Nascimento e ver “Cantoria de Pé de Parede”, de Osório.
[16] No Nordeste brasileiro, um “cantador” é um cantor ou poeta popular que improvisa versos, muitas vezes acompanhado de um violão. Frequentemente, o termo pode ser substituído por “repentista”.
[17] Os ceilandenses sentem-se orgulhos de ter um edifício de Niemeyer em sua região administrativa, porque é um caso singular na periferia do DF. Em contrapartida, os edifícios desse arquiteto são comuns na periferia do Rio de Janeiro. Há mais de 500 de suas escolas produzidas em massa, conhecidas como Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), no estado do Rio de Janeiro e 134 na cidade do Rio de Janeiro, muitas em áreas de baixa renda (Aberrant Architecture 13, 22). Assim como a UnB, os Cieps são uma parceria entre Niemeyer e Darcy Ribeiro (ver “The Teacher Speaks”, de Ribeiro).
[18] Enquanto o próprio prédio se assemelha ao padrão visual do Plano Piloto, detalhes mais sutis remetem às raízes rurais nordestinas dos moradores. Os arcos curvos em forma de asa em frente ao prédio supostamente foram inspirados pela canção de Luiz Gonzaga, “Asa Branca”, um hino não oficial do Nordeste brasileiro. Uma estátua proeminente de um cantador tocando violão repousa no gramado da frente.
[19] Para mais sobre a luta por espaços de apresentação em Brasília (especialmente para shows de rock), ver Samba Wheeler.
[20] Para mais sobre repentistas mulheres, ver Queiroz de Souza.
[21] Para mais sobre as conexões entre o repente e o rap, ver Moysés.
[22] Esses locais incluem a área fora das estações de metrô, como Estação Concessionárias, Estação de Furnas, Estação Ceilândia Sul, Estação Arniqueiras e Estação Guará. Também incluem praças públicas, entre elas a Praça do Relógio em Taguatinga, a Praça da Bíblia e a Praça Zoca em Ceilândia, a Praça Central de Santa Maria e o Complexo Cultural da República no Plano Piloto.
[23] Não há quase nenhum dinheiro a ser ganho em batalhas em si, exceto para o Duelo Nacional, que tem um prêmio de 5.000 reais. Com exceção da Batalha do Museu, poucas batalhas de freestyle no DF têm patrocinadores corporativos (Batalha do Museu).