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A arte de Brasília: 2000-2019: 5. A arte de Ceilândia em Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós

A arte de Brasília: 2000-2019

5. A arte de Ceilândia em Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós

CAPÍTULO 5

A arte de Ceilândia em Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós 

O docudrama Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, através da fantasia e da hipérbole, retrata o Plano Piloto e a Ceilândia em guerra pela imagem do Distrito Federal (DF). Esse premiado filme[1] apresenta Ceilândia como a alma da cidade, um centro cultural clandestino que usa a arte como resistência à anulação imposta por um Plano Piloto racista, elitista e distópico. Inescrutável, lento, repetitivo e chocante, o filme renuncia a explicações, diálogos extensos e continuidade narrativa. Como resultado, seus admiráveis recursos audiovisuais ganham destaque, provocando reflexões sobre os lugares onde a arte de Ceilândia, particularmente a música, é produzida. O filme demonstra que a arte contra-hegemônica de Ceilândia é criada e valorizada de maneiras que influenciam os ceilandenses e seu senso de comunidade. Branco sai exibe três componentes dessa expressão artística: o Quarentão, uma boate de Ceilândia durante sua noite de música black[2] em 1986; um estúdio clandestino de rádio e de gravação, em contraste com o Plano Piloto, por volta de 2014; e os corpos dos bailarinos ceilandenses Marquim e Sartana, a partir de 1986. Esses três elementos estão associados a cidadãos de baixa renda, negros e periféricos cuja expressão artística se entrelaça à luta para ser reconhecida como possuidora do direito criativo à cidade.

No sábado de cinco de março de 1986 às 11:30 da noite, uma festa black estava acontecendo no Quarentão.[3] Um grupo de dançarinos com o mesmo figurino ensinava passos coreografados à multidão. Momentos depois, policiais armados entraram no clube e ordenaram, aos gritos, que todos os clientes brancos saíssem e todos os clientes negros (a grande maioria) ficassem onde estavam. A polícia atirou contra os moradores negros que permaneceram, e uma cavalaria de policiais aguardava do lado de fora para deter qualquer um deles que fugisse. Alguns dos participantes da festa foram baleados, golpeados pela polícia ou pisoteados por cavalos, o que lhes causou graves ferimentos. Nos dias seguintes, os jornais aparentemente não mencionaram a violência no baile, e a polícia não forneceu qualquer explicação. Enquanto os residentes de Ceilândia lamentavam o ocorrido, a polícia conseguiu mantê-lo fora da mídia.

Dirigido por um cineasta ceilandense, Branco sai narra as consequências desse tiroteio, utilizando o gênero ficção científica. Dois dos principais atores do docudrama – Marquim do Tropa (que ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Brasília) e Cláudio Irineu Shokito – são dançarinos que ficaram permanentemente feridos por causa dessa batida policial. Após levar um tiro na perna e passar seis meses no hospital, Marquim do Tropa tornou-se cadeirante (Paula 15). Depois da perna ser pisoteada pelo cavalo de um policial, Shokito teve que colocar uma prótese. Esses atores interpretam papéis semiautobiográficos como Marquim e Sartana, respectivamente. Branco sai se passa por volta de 2014 em uma Brasília em que o governo isolou sistematicamente o Plano Piloto, permitindo a entrada apenas das elites brancas. As personagens principais reúnem gravações da música de Ceilândia (e de ruídos cotidianos) para criar, em um estúdio clandestino no porão da casa real de Marquim do Tropa, a bomba sonora (um espetáculo musical e também uma arma) que eles detonam no Plano Piloto (Correia). O título do filme refere-se explicitamente ao que a polícia gritou aos frequentadores da festa e, implicitamente, ao final do filme, em que moradores negros, de baixa renda e da periferia invadem o centro predominantemente branco da cidade. Além disso, como afirma o crítico de cinema José Geraldo Couto, o título do filme inverte o que ocorre no centro de Brasília e em todas as áreas ricas das cidades brasileiras: negros saem, brancos ficam.

Queirós integra um grupo maior de cineastas que fazem documentários críticos sobre o DF. A lista da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) com os 100 melhores documentários brasileiros de todos os tempos, por exemplo, inclui quatro obras críticas sobre a capital: Conterrâneos velhos de guerra, de Vladmir Carvalho; Brasília: contradições de uma cidade nova, de Joaquim Pedro de Andrade; e A cidade é uma só? (2011) e Branco sai, de Queirós. Entre esses documentários, Branco sai é o que se aproxima mais de um longa-metragem de ficção. Queirós queria fazer um longa, mas como o financiamento que recebeu foi para um documentário, as restrições de orçamento o forçaram a fazer um filme que se enquadrasse nessa categoria.[4] Alguns dos documentários anteriores do diretor fazem incursões no cinema narrativo. Em A cidade é uma só?, por exemplo, a personagem Dildu, interpretada por Dilmar Durães (ator principal também em Branco sai), lança uma campanha política fictícia para deputado distrital (Procopio Furtado 126). Na época em que faziam A cidade é uma só?, Durães trabalhava como zelador, mas queria atuar em uma profissão diferente e propôs ser político. Mesclando ambos, sua personagem Dildu é um zelador que concorre a um cargo político (Mesquita 70). Todos os filmes de Queirós apresentam o cotidiano em Ceilândia sem glamour. As personagens frequentemente lidam com lesões ou deficiências, bem como com objetos quebrados (o portão da casa, um carro). O espectador as vê em casa com suas famílias, preparando comida, conversando de forma natural, jogando peladas, fazendo bicos e andando de bicicleta, de ônibus, de metrô e de carro. A justaposição dos filmes (com atores, temas e estética semelhantes) permite que eles sejam lidos como uma série. Temas comuns nas obras de Queirós incluem exploração do trabalho (especialmente nos filmes de 2009, Dias de greve e Fora de campo) e produção musical (particularmente em Rap, o canto da Ceilândia (2005), A cidade é uma só? e Branco sai). Visualmente, os filmes compartilham imagens provocativas de barras de metal e portões, viadutos de pedestres e sistemas de metrô. Sonoramente, eles geralmente incluem uma personagem cantando ou tocando uma canção inteira, escolha que coloca a música em primeiro plano.

Antes de Queirós, o único cineasta conhecido da periferia do DF era Afonso Brazza (apelidado de “Rambo do Cerrado”), que faleceu em 2003 (Behr, BrasíliA-Z 79). Brazza era um cineasta e bombeiro que morava na região administrativa de Gama e fez sete filmes de ação sensuais, de baixo orçamento, populares entre o público local. Ao contrário dos filmes de Queirós, Brazza nunca circulou fora da periferia de Brasília. Ceilândia – a região administrativa de Queirós, que aparece em todos seus sete filmes – é um importante centro de música nordestina e do rap, mas só começou a ser um local de produção cinematográfica recentemente. Em 2006, Queirós e outros artistas formaram o Ceicine Coletivo de Cinema em Ceilândia para criar o “cinema de rua”, que exibe as interações sociais e a “musicalidade da cidade” (Queirós, “Entrevista Adirley Queirós” 40). O processo criativo de Queirós sempre foi colaborativo, uma vez que as ideias emergem dos encontros regulares de sábado do Ceicine e de parcerias com outros cineastas, como Joana Pimenta (Mesquita 66). O ator Marquim do Tropa, amigo de Queirós há décadas, também é membro da Ceicine, e Queirós recebe contribuições substanciais de seus atores (Procopio Furtado 114, 134).[5] O diretor conta, por exemplo, que quando propôs a ideia de um documentário tradicional sobre o tiroteio policial do Quarentão para Marquim do Tropa, o ator não gostou da ideia e sugeriu, em contrapartida, um filme de aventura (cit. em Lopes).

O Quarentão

Os participantes da festa, a polícia e a mídia produzem, regulam e atribuem significado ao Quarentão de maneiras que criam ou perturbam um senso de pertencimento a esse lugar de expressão artística contra-hegemônica. O filme apresenta a boate em seus cinco minutos de prelúdio, quando o rapper negro ceilandense Marquim chega a um estúdio de rádio clandestino e começa a transmitir o relato da brutalidade policial ocorrida nesse clube.

O prelúdio do filme exemplifica o poder da narrativa criativa. Como afirma a geógrafa feminista Richa Nagar, “se reconhecermos toda teorização como um exercício narrativo, então também é possível que a violência epistêmica dos paradigmas e das estruturas existentes possa ser resistida, atenuada ou confrontada por narrativas diferentes” (161). Marquim conta sua história aparentemente verdadeira de modo inusitado, pois ele o faz em um filme de ficção científica pós-apocalíptico, utiliza o rap em seu processo narrativo e foca na alegria e não na tragédia. Além disso, não há como corroborar sua história, porque não há registros oficiais sobre o acontecimento. O prelúdio valoriza, assim, a experiência de artistas sub-representados como fonte de conhecimento (Hill Collins 257). Simone Osthoff vê Branco sai, que ela considera um “filme de protesto”, como parte da tendência que os filmes brasileiros contemporâneos têm em questionar o tratamento do “objeto” de estudo cinematográfico tradicional, dando mais autoridade criativa à pessoa em frente à câmera (“Flusser Now” 8-9).

Como Queirós sempre procurou produzir documentários que capturassem relacionamentos e cotidianos, ele, na maior parte das vezes, se afastou do “sistema de entrevista” delineado por Jean-Claude Bernardet e ainda predominante em documentários na atualidade. Em seu artigo “A entrevista” (2003), no apêndice da versão atualizada de Cineastas e imagens do povo (publicado originalmente em 1985), Bernardet critica o obsoleto sistema de entrevista predominante nos documentários brasileiros desde a década de 1970. Nessa estratégia de filmagem acessível e eficiente, as pessoas geralmente são mostradas em primeiro plano, sentadas em interiores genéricos descrevendo eventos, presumivelmente em resposta a perguntas do diretor e sem interrupções ou interações. As consequências desse sistema são que a fala predomina sobre elementos visuais e sonoros; as configurações espaciais se repetem; faltam interações entre os protagonistas; e a vida cotidiana dos sujeitos está ausente (285-87).

No monólogo criativo de Marquim, ao contrário de uma entrevista tradicional, o estilo de expressão oral tem importância significativa. Marquim do Tropa é rapper do grupo Tropa de Elite e usa seus talentos como músico para a construção de seu discurso. Tanto o conteúdo quanto o estilo dessa narração enfatizam que a música reuniu os membros da comunidade negra e não que a violência devastou tanto essa união quanto seu corpo. Marquim lembra, no tempo presente, diálogos, flertes, amizades, dança, música e a vibração da festa black como se estivesse revivendo a experiência em tempo real. Ele conta que caminha até o Quarentão, encontra amigos no clube e ensina passos de dança a uma mulher, apresentando a área ao redor da boate e o próprio Quarentão como uma comunidade unida. Seu monólogo inclui uma batida de hip-hop, e Marquim fala e faz rap. Essa escolha ressalta a abordagem emocional, personalizada e criativa do filme para contar histórias em oposição à entrevista tradicional e mais seca do estilo documentário. O monólogo de Marquim afirma o argumento de Lefebvre de que as relações sociais produzem espaços e espaços produzem relações sociais. As relações sociais entre os festeiros criaram um lugar empoderado para a expressão cultural negra, de baixa renda e gosto musical compartilhado. No entanto, o lugar em si, uma festa popular de música black em Ceilândia, também criou um senso empoderado de comunhão.

O filme apresenta o Quarentão como significativo para moradores de Ceilândia e artistas ceilandenses em sua formação como sujeitos. O clube não é um emblema típico de empoderamento local coletivo. Os símbolos comuns desse empoderamento em Ceilândia são a Caixa d’água, a Feira de Ceilândia e o centro cultural Casa do Cantador, que representam a obtenção de água encanada na área, a prosperidade comercial e o reconhecimento da vibrante música nordestina da periferia, respectivamente. A Caixa d’água, a imagem na bandeira ceilandense, é o mais próximo que essa região administrativa chega de ter um mito de origem, e o objeto representa a transição de Ceilândia de um conglomerado habitacional abaixo do padrão para uma comunidade que lutou com sucesso e obteve água encanada em 1974. Frequentemente, os artistas ceilandenses posam em frente à Caixa d’água ou a representam em seu trabalho, o que ocorre, por exemplo, na capa do álbum Lá no morro, do Viela 17 (Fig. 5.1). Em 2013, o Secretaria de Cultura do DF declarou a torre patrimônio histórico, de modo que seu exterior não pode ser alterado sem a consulta dessa instituição. A Caixa d’água, discutida pelo rapper X, do Câmbio Negro, no curta-metragem de Adirley, Rap, o canto da Ceilândia, não aparece em Branco sai. O filme engenhosamente encontra recursos visuais apocalípticos dentro da própria Ceilândia, dando a impressão de um local desolado e subpovoado. Ceilândia aparece como uma cidade estéril e meio descolorida, sem muitas árvores, crianças, mulheres e apenas com espaços públicos carentes e interiores clandestinos. Essa imagem exagera o contraste entre os gramados imaculados do Plano Piloto e a relativa falta de espaço verde na periferia. Um símbolo da obtenção de água encanada e de reconhecimento coletivo não tem lugar neste espaço apocalíptico no qual Ceilândia parece desprovida de muitos serviços públicos básicos.

Figura 5.1 Capa do CD do grupo de rap Viela 17, de Ceilândia, mostrando a Caixa d’água de Ceilândia e Bruno Vinícios Morais de Oliveira. Fotografia de Bruno Peres, 2008

Dados os parcos recursos tecnológicos do estúdio de rádio clandestino, os ouvintes sintonizam a estação através de ondas de rádio, não via transmissão ao vivo pela internet. Portanto, o público-alvo do monólogo de Marquim são os ceilandenses.[6] Desde que a batida policial ocorreu décadas antes, a maioria dos ouvintes de Marquim não se lembra do Quarentão pessoalmente, mas o clube surge como um lugar significativo para a identidade coletiva de seus moradores através da memória de Marquim.[7] O filme insiste para que a invasão do Quarentão faça parte da “pós-memória” dos ouvintes da rádio, em esforço para denunciar uma história local de violência racista e classista.

Marianne Hirsch cunhou o termo pós-memória para descrever a forma como a memória de um sujeito ou de uma comunidade sobre um acontecimento traumático pode ser transmitida para pessoas de gerações futuras que não vivenciaram o próprio evento. Como ela argumenta:

a pós-memória descreve a relação que a geração após aqueles que testemunharam traumas culturais ou coletivos mantém com as experiências daqueles que vieram antes, experiências que eles ‘lembram’ apenas por meio das histórias, imagens e comportamentos entre os quais cresceram. Mas essas experiências foram transmitidas a eles tão profundamente e afetivamente que parecem constituir memórias próprias. (106-07)

Uma vez que o monólogo vai ao ar em uma estação de rádio clandestina, sua transmissão ressalta a natureza proibida de recordar a brutalidade policial oculta, bem como a natureza subversiva de reconhecer coletivamente a violência histórica como significativa para a identidade de lugar de um grupo.

Em termos do público-alvo, o filme, apesar de ter circulado em festivais internacionais de arte, constitui-se como uma história ceilandense feita por e para ceilandenses, sem esclarecimentos prestados para pessoas de fora. Ele não contém, por exemplo, uma contextualização da brutalidade policial e fornece poucas informações sobre o ocorrido. Esses elementos enfatizam que a história do Quarentão não é apresentada para um olhar branco de elite, mas para a comunidade local. A violência racista no espaço público é central para Branco sai. Os residentes negros tiveram suas vidas ameaçadas e, de modo geral, a possibilidade de se reunir e criar cultura como um grupo foi constrangida. Não há reencenação do tiroteio no filme. As fotografias que as personagens possuem (supostamente do Quarentão) proporcionam ao espectador um distanciamento.[8] O filme se torna uma história mais sobre o pertencimento a uma comunidade (uma conexão emocional que a trilha sonora registra efetivamente[9]) do que sobre detalhes de fatos históricos.

Queirós parece ver suas próprias lutas pela expressão artística em Ceilândia ligadas à invasão policial do Quarentão. Por um lado, Branco sai é um filme sobre o racismo contra pessoas negras contado por um diretor branco. Mas, por outro, Queirós, um cidadão de família da classe popular, conecta-se pessoalmente com as lutas enfrentadas pelos ceilandenses dessa classe, particularmente os artistas. O cineasta dedicou a maioria de seus filmes à apresentação das lutas de moradores e artistas de sua região administrativa. Como Gustavo Procopio Furtado observa, Queirós desvia-se dos típicos documentaristas que são estrangeiros nas comunidades que filmam (114). Muitos elementos de Branco sai (como a bomba sonora e a câmera parada em fotografias de arquivo supostamente de bailarinos no Quarentão) destacam a solidariedade entre todos os artistas de Ceilândia. Coletivamente, eles lutam por seu direito criativo à cidade, um direito de representar, publicamente e de forma criativa, o lugar onde moram.

Além das lutas dos artistas ceilandenses, está implícita no filme a luta coletiva enfrentada pelos moradores comuns de Ceilândia desde os anos 1970. Em 1971, mais de 80 mil pessoas foram obrigadas a se mudar de áreas residenciais informais para Ceilândia, a 26 quilômetros do centro da cidade. A região administrativa foi estrategicamente projetada pelo governo do DF para eliminar as favelas dos horizontes visuais do Plano Piloto através da Campanha de Erradicação de Invasões, a origem de Cei, no início do nome Ceilândia. Da mesma forma que a expansão colonial ocidental envolveu a mudança ou a remoção da população local (como no caso da América do Norte, da América do Sul e da Austrália), a expansão urbana pós-colonial promove a expulsão de corpos marginalizados para fora de lugares desejáveis (Fabian 29-30). A criação de Ceilândia pelo governo distrital realizou o desejo de distribuir “indivíduos em um espaço no qual se poderia isolá-los e mapeá-los” e também de impedir a criação de “ponto[s] de encontro para circulações proibidas” (Foucault, Discipline 144).

A moradora de Ceilândia Maria Pereira, em entrevista de Edson Beú, descreve assim a experiência de ter sido forçada a se mudar da Vila do IAPI, em setembro de 1971:

o caminhão do Serviço Social jogou a gente ali e acabou a história. O homem só falou assim: aí está a propriedade de vocês, e mostrou os quatro toquinhos de pau, demarcando o lote. Ninguém sabia onde era a frente nem os fundos, porque não tinha nada em volta e tudo era mato … Passamos três anos sem água e sem luz. Pegava água nos carros-pipas, a uns dois quilômetros de distância. (cit. em Beú 71).

Os 26 quilômetros entre o Plano Piloto e a Ceilândia fizeram parte de um projeto sancionado pelo Estado para garantir que o Plano Piloto continuasse sendo um enclave de elite. Pereira descreve uma ramificação socioemocional do modelo residencial, relevante para Branco sai: “Ninguém conhecia ninguém. Ninguém sabia os procedimentos das outras pessoas. Cada um vinha de um lugar diferente. A gente não convivia” (cit. em Beú 73).

Pereira sofreu a perda de sua comunidade. Os novos vizinhos não tinham conexão uns com os outros ou com o lote a que foram designados. No entanto, 15 anos depois, em 1986, ano do tiroteio no Quarentão, os ceilandenses já haviam formado fortes laços de união, muitas vezes ligados ao gosto musical e cultural compartilhado. Seus interesses incluíam o amor pela música nordestina (1986 também foi o ano de inauguração em Ceilândia da Casa do Cantador, de Niemeyer), a música black e o rock de Brasília. Muitas vezes foi através da socialização e da expressão cultural que os moradores cultivavam uma conexão com um lugar que eles não tinham escolhido inicialmente como seu lar. Branco sai contempla o problema da falta de locais suficientes para se reunir, socializar e praticar a expressão cultural. As personagens visitam a Feira de Ceilândia e se referem à Feira do Rolo, celebrando assim locais dentro de Ceilândia onde interações humanas animadas ocorrem na forma de comércio, trocas, brincadeiras e música. Como essa história não é mencionada no filme, tais conexões só são percebidas por espectadores com conhecimento prévio sobre a região administrativa.

Como a narrativa de Marquim mostra, a polícia que orquestrou o ataque afirmou seu controle, criminalizando um grupo racial inteiro por compartilhar e celebrar a cultura negra. No final de seu monólogo, Marquim descreve a agressão. Ele ouve um policial gritar “Branco sai, preto fica!”; outro policial o xinga[10] e ele é interrogado: “Tá armado? Não tou não”. A fala termina ali, com a personagem em silêncio e o som subsequente de um helicóptero e de um tiro. A noite black no clube constituía uma ameaça porque era o oposto de um “espaço útil”, em que corpos subalternos beneficiam a ordem social dominante através de seu trabalho (Foucault, Discipline 144). Em vez disso, o Quarentão era um espaço de alegria, lazer e empoderamento de um grupo subalterno. Cecil Gutzmore afirma que “há repressão estatal ao que é percebido como perigoso, ou potencialmente perigoso ou disruptivo, bem como ao que é visto como cultura indisciplinada nas massas da população negra” (363). Focando na alegre comunhão de pessoas negras no baile, Marquim enfatiza que a brutalidade policial tem como alvo uma festa considerada perigosa sem qualquer evidência de irregularidades.

Devido aos emaranhados de raça, classe e distância física do Plano Piloto (e talvez coerção policial), a batida policial nunca foi mencionada na mídia hegemônica, uma vez que a tragédia ocorreu fora da esfera branca de classe média. Por volta de 1986, a mídia de Brasília estava cobrindo confrontos policiais com jovens (como o “Badernaço de Brasília”, de 27 de novembro de 1986, em que um protesto em frente ao Congresso sobre a situação financeira do Brasil terminou em violência). Na época, a mídia também abordava a violência em eventos musicais, como o tumulto no show da Legião Urbana em dezembro de 1986, no Estádio Multiesportivo Nilson Nelson, no Plano Piloto, que deixou uma jovem morta. O caso Quarentão não foi notícia porque, devido à localização geográfica do clube e à raça das vítimas, não representava uma ameaça para a classe média branca de Brasília. Ou, emprestando a linguagem de Susan Ruddick em sua comparação de dois assassinatos de Toronto em espaços públicos, o tiroteio da polícia no Quarentão não “comprometeu a liberdade das famílias de classe média de se locomover sem medo pela cidade” (146).

O filme demonstra que as injustiças vivenciadas por pessoas negras, de baixa renda e da periferia foram tratadas como menos significativas do que as vividas pela classe média branca, moradora do centro. Porém, o filme sugere que a memória (ou a pós-memória) da tragédia faz parte de uma tradição oral de Ceilândia, uma das muitas histórias de repressão ligadas a raça, classe e expressão cultural. Uma vez que, fora de Ceilândia, existem poucas imagens ou opinião pública em relação à brutalidade policial no Quarentão, Branco sai tornou-se o meio divulgado para entender o evento. O filme foi lançado em 2014, data que o colocou em diálogo com o movimento internacional Black Lives Matter e marchas antirracistas no Brasil. Assim, um clube que está fechado há décadas ressurge como relevante em escala nacional e internacional como sinédoque da criminalização contínua dos negros e de suas atividades de lazer.

Marquim coloca os espectadores para ver o Quarentão, mais do que qualquer outra coisa, como um lugar de vitória (empoderando jovens negros, locais, de baixa renda via expressão cultural), não de tragédia. A representação que o filme faz de Ceilândia, do Quarentão e dos ceilandenses ressalta como a constituição comunitária acontece ao nível da região administrativa (“Sou da Ceilândia” e não “Sou do DF”). Porém, essa identificação comunitária também é construída através de comparações com o Plano Piloto (“Nós” versus “Eles”, “Aqui” versus “Lá”). Esse enquadramento acentua a mensagem subjacente no filme para não deixar a repressão estatal silenciar, destruir ou controlar locais de cultura contra-hegemônica. Como analisa a próxima seção, o estúdio de música do filme desempenha uma função vital na ilustração do papel do lugar como um meio através do qual a comunidade e a identidade dos sujeitos são formadas.

O estúdio clandestino em comparação ao Plano Piloto

A justaposição do Quarentão na década de 1980, o estúdio clandestino no presente do filme e o Plano Piloto destacam a inclinação distópica da obra cinematográfica em que espaços públicos para a comunhão artística contra-hegemônica estão desaparecendo. O prelúdio conecta lugar e expressão cultural para refletir sobre as maneiras pelas quais um senso de pertencimento dentro de uma comunidade é formado ou desfeito. Como observado, a atuação de Marquim ressalta a importância do Quarentão como um polo de expressão da cultura negra. O Quarentão empoderou a juventude negra ceilandense e promoveu um senso de comunidade. Em contraste, a estação de rádio mal iluminada onde Marquim trabalha e constrói a bomba sonora é um lugar isolado e claustrofóbico. A capacidade das pessoas marginalizadas de se reunirem para fins culturais está sob ataque no presente do filme, e as comunidades culturais só podem “se reunir” virtualmente enquanto sintonizam a mesma estação de rádio.

No estúdio, as personagens negociam para obter e depois examinar seus passaportes falsificados. Elas usarão esses passaportes para adentrar no Plano Piloto, onde o governo proibiu a entrada de moradores periféricos sem essa documentação. A divisão social elaborada na ficção científica e o contraste espacial entre a Ceilândia e o Plano Piloto enfatizam que os espaços culturais não são abertamente acessíveis ao público comum. O cerco hiperbólico do filme alude a ameaças reais aos espaços públicos e culturais, particularmente na periferia.

Relegados a um canto clandestino, os artistas periféricos reagem. Sua rejeição desencadeia o desejo de construir uma bomba sonora emancipatória que muda a dinâmica dominante de poder e libera a possibilidade de maior expressão artística. O filme termina com uma série de storyboards, desenhados por Sartana, retratando o efeito da bomba sonora, seguida de uma cena de Dimas Cravalança (um investigador que veio do futuro) inspecionando os restos de um edifício do Plano Piloto. Nos storyboards, os palácios do Plano Piloto são destruídos e os moradores correm apavorados, enquanto a música “Bomba explode na cabeça” (2007), do MC Dodô, artista que reside em Belo Horizonte, é reproduzida com os sons dos gritos humanos. Esse funk carioca inclui em seu refrão a frase “bomba explode na cabeça estraçalha ladrão”. Para Suppia e Gomes, destruir o centro do poder é uma “vingança interditada ao cinema brasileiro”, que carece de recursos financeiros para criar uma cena tão elaborada de destruição em massa. Em vez disso, Queirós é forçado a usar desenhos (393).[11] Pode-se também interpretar o final do filme a partir do efeito de distanciamento provocado pelos storyboards, que nega ao espectador o prazer de ser totalmente absorvido pela fantasia. Assim, somos forçados a ver as limitações financeiras de um filme feito na periferia, convidados a imaginar a explosão como uma metáfora e uma realidade, encorajados a preencher as lacunas e levados a focar mais nos aspectos sonoros do que nos visuais do filme. Nessa perspectiva, a bomba sonora simboliza a arte como resistência.

Branco sai celebra a capacidade que a dança, a música, o cinema e a arte visual têm de transformar sentimentos de exclusão do centro em sentimentos de pertencimento à Ceilândia. Enquanto o espaço físico pode ser controlado, a arte, como o filme mostra, não pode ser dominada da mesma maneira. Queirós observa que “vi no cinema uma oportunidade de falar da Ceilândia” (“Ceilândia no telão”). Como em todos os seus filmes, cada história sobre a periferia de Brasília é inevitavelmente uma história sobre negociações espaciais. A bomba sonora desafia fronteiras espaciais e permite que pessoas marginalizadas se desloquem para espaços proibidos. Essa inversão da dinâmica de poder cria uma atmosfera carnavalesca. Bakhtin afirma que o riso “significa a derrota do poder, dos reis terrenos, das classes altas, de tudo o que oprime e restringe” (92). Terminar com uma canção enérgica e com imagens fantásticas de destruição em massa indica uma alegre derrota da opressão.

A base para entender a bomba sonora é construída ao longo do filme. O grande número de cenas que acontecem no estúdio clandestino ajuda a criar um senso de restrição, imobilidade e opressão. À medida que a tensão aumenta, sente-se a necessidade de liberação. A opressão é o gatilho para a criação da bomba sonora. Embora haja um componente carnavalesco neste desfecho, ele não é catártico. Como a maior parte do filme, que deixa o espectador intrigado, a presença dos desenhos no final é mais inescrutável do que libertadora. O Plano Piloto foi realmente destruído? A bomba sonora pode realmente matar pessoas? A ambiguidade em relação à resposta a esta última pergunta coloca em xeque as análises acadêmicas que consideram o final do filme niilista (Suppia 19; Furtado e Araújo Lima 142). O final da obra cinematográfica mostra, com sucesso, como a cultura contra-hegemônica pode transgredir as fronteiras espaciais que a regulamentaram anteriormente. O corpo humano, a menor escala de espaço relevante para esta análise, desempenha um papel crítico na forma com que grupos marginalizados experimentam a regulação de sua expressão cultural, como analisa a próxima seção.

Corpos regulados

O conceito foucaultiano de corpo dócil, desenvolvido na década de 1970, e pesquisas subsequentes sobre corpo e espaço permitem analisar os corpos de Marquim e Sartana como espaços de expressão artística contra-hegemônica. Segundo Foucault, a tendência de sistemas dominantes de poder para restringir e regular os corpos humanos, especialmente desde o século XVIII, cria corpos dóceis. Foucault afirma que “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Discipline 136). Considerando como os corpos foram analisados e subjugados em escolas, hospitais, fábricas e quartéis, ele postula que “o corpo humano estava entrando em um mecanismo de poder que o explora, o quebra e o reorganiza” (Discipline 138). Muitas vezes referindo-se a Foucault, geógrafas e teóricas feministas do início dos anos 1990 (incluindo Judith Butler, Elizabeth Grosz, Cherrie Moraga e Iris Marion Young) foram pioneiras na ideia de conceber o corpo como um espaço.[12] Elas procuraram entender melhor como as relações de poder hegemônicas têm tratado os corpos dos povos marginalizados como se fossem territórios a serem controlados e dominados. Essas estudiosas também compreendem que os corpos são tanto material quanto social/discursivamente produzidos.[13] Ao mesmo tempo, os teóricos pós-coloniais desenvolveram concepções relacionadas sobre as formas pelas quais o colonialismo e o neocolonialismo dependem não apenas da dominação da terra, mas também dos corpos humanos. Para Achille Mbembe, “exercer autoridade é, acima de tudo, cansar os corpos daqueles que estão sob ela, desempoderá-los não tanto para aumentar sua produtividade quanto para garantir sua máxima docilidade” (110). Branco sai intencionalmente atrai o olhar de seus espectadores para o corpo humano. Marquim do Tropa e Shokito – dois dançarinos negros e de baixa renda – foram permanentemente mutilados pela violência policial de 1986. Seus corpos, como espaços geográficos mais tradicionais, foram regulados por grupos hegemônicos. A mutilação provocada pela polícia consistiu em forma de disciplinar o corpo e limitar seu potencial transgressor. Os corpos dos dançarinos se recusaram a se conformar com as regras do corpo dócil; em vez disso, eles incorporaram a própria música e a cultura negra. Neste contexto, o corpo negro é um espaço sobre o qual o poder foi executado.

Ao enfatizar a capacidade perdida de Marquim e Shokito de se expressar artisticamente através da dança, o filme acentua os danos causados pela invasão policial racista. Normalmente, representações de artistas com deficiência são inspiradoras e focam na superação de obstáculos. Um exemplo disso é a foto da capa (tirada por Bento Viana) da edição de setembro de 2016 da revista Traços de Brasília, que apresenta Marina Anchises, bailarina do grupo Projeto Pés, que tem paralisia cerebral, sorrindo enquanto dança com o coreógrafo Rafael Tursi, com a cadeira de rodas vazia ao lado. A imagem, parte da matéria “A arte da inclusão”, de José Rezende Jr, sugere alegria, transcendência e esperança.

No entanto, no docudrama, os dois dançarinos não experimentam tal momento edificante. Para Suppia e Gomes, “diferentemente das bem conhecidas ‘narrativas de superação’, Branco sai, preto fica não contemporiza. Os corpos mutilados não terminam por recuperar a dança, por criar novas coreografias com o recurso a cadeiras de rodas ou próteses” (393). Uma narrativa típica de superação traria muito foco ao próprio indivíduo como aquele que controla sua própria vida, o que diminuiria a atenção a problemas sistêmicos – como racismo, desigualdade econômica e violência policial sancionada – aos quais o filme de Queirós responde destruindo o centro político brasileiro.

O hiper-realismo do filme, com a exposição lenta do corpo deficiente de Marquim movendo-se pelo espaço, apresenta o dançarino enfrentando desafios contínuos causados por sua deficiência.[14] A maioria das críticas negativas a Branco sai diz respeito a seu ritmo e repetitividade, o que faz com que ele não flua suavemente. Para Inácio Araujo, o filme “tem alguns problemas de ritmo”. Christopher Gray afirma que “um quarto inteiro de Branco sai, preto fica é simultaneamente letárgico e inescrutável, mas o restante é cativante e totalmente singular”. Parte do que perturba seu ritmo é a lentidão. Cenas longas e sem corte registram o tempo que Marquim leva para entrar e sair de seu carro, subir de elevador e descer para o estúdio de gravação em sua cadeira de rodas. Cenas assim chamam a atenção dos espectadores para a dificuldade de locomoção, na maioria dos lugares, para as pessoas em cadeiras de rodas. Como Suppia e Gomes disseram: “Por que tão poucos deficientes físicos circulam pelas ruas brasileiras em comparação com países desenvolvidos? Porque, no Brasil, a rua (o espaço público) ainda não é lugar de deficiente físico” (392-93). Além disso, o filme explora o conceito de mobilidade através do imaginário contínuo das personagens principais vistas atrás das barras metálicas que fazem parte da arquitetura de segurança de Ceilândia (Fig. 5.2). Essa cinematografia aumenta a sensação de imobilidade que se relaciona com restrições físicas, sociais, raciais e de classe, que as personagens buscam superar através de sua bomba sonora.

Figura 5.2 O ator Marquim do Tropa em frame de Branco sai, preto fica, filme de 2014 de Adirley Queirós

Conclusão

Por meio do retrato de componentes da arte contra-hegemônica que influenciam Marquim e Sartana, Branco sai convida seu público a refletir sobre os emaranhados espaciais dessa arte. Uma das contribuições mais potentes do filme é a reflexão sobre a influência do lugar na identidade das pessoas. No docudrama, uma boate extinta, um estúdio de gravação em oposição ao Plano Piloto e os corpos de artistas negros são todos locais de negociação significativos para a formação de uma identidade social. Ruddick elabora sobre este ponto, especificamente no que diz respeito às identidades racializadas no espaço público: “A menção de identidades sociais e as representações de outros no espaço público muitas vezes são relegadas à marginalização ou à anedota que ilustra a tese maior da desigualdade. No entanto, essas representações não são meramente o produto final ou subproduto das relações hierárquicas e desiguais . . . são profundamente constitutivas do próprio ser do outro subjugado” (138-39). Ela afirma que o espaço público “é profundamente constitutivo do nosso senso de comunidade – quem é permitido entrar, quem é excluído e quais papéis devem ser atribuídos aos ‘de dentro e aos ‘de fora’” (146).

O geógrafo Neil Smith usa o termo mudança de escala (jumping scales) para argumentar que as escalas em que lugares/eventos específicos são compreendidos são construídas em disputas políticas para controlar a interpretação (66). Ao adicionar um bombardeio fictício de uma capital nacional à história real de um tiroteio policial local (e até agora esquecido) em Ceilândia, Branco sai insiste na relevância da brutalidade policial para além dos limites do DF. Em outras palavras, o filme permite que uma história local ressoe nacional e internacionalmente como uma história de injustiça espacial sofrida por pessoas subalternas que se esforçam para se expressar artisticamente. Um espectador de Ceilândia, por exemplo, possui conhecimento para entender as gírias, sotaques, reconhecer atores e lugares do filme com um nível de nuance que fará com que a obra seja especificamente sobre a formação comunitária em Ceilândia. Grande parte dessa especificidade também ressoará para a audiência geralmente familiarizada com as periferias de Brasília. Esses espectadores verão no filme um reflexo hiperbolizado de como a segregação espacial influencia a identidade e a arte no DF. Os telespectadores locais também notarão como Queirós transformou uma Ceilândia economicamente diversa e comercialmente vibrante em uma cidade fantasma e de aspecto desagradável.

No entanto, em suas reflexões sobre como as comunidades são formadas e regulamentadas, Branco sai muda de escala de forma mais ampla, especialmente em sua destruição do Plano Piloto. Ruddick afirma que a escala “pode se tornar um meio através do qual as identidades são constituídas; a constituição de um espaço público em uma escala particular pode mudar a escala em que as identidades sociais são construídas, permitindo que os grupos desenhem e redesenhem os limites que definem quem está incluído ou excluído” (140-41). Os espectadores podem facilmente mudar de escala para entender o conteúdo do filme como metonímica das periferias brasileiras (o ataque é, afinal, na capital do Brasil) ou de periferias de cidades globais de forma mais geral. Para Smith, “não apenas a produção do espaço é um processo inerentemente político, como o uso de metáforas espaciais, longe de fornecer imagens inocentes e evocativas, na verdade explora diretamente questões de poder social” (62). Através do gênero de ficção científica, Queirós torna o tiroteio no Quarentão relevante em escalas nacionais e globais. Destruir o Plano Piloto é insistir que não só os moradores de Nova York ou de Londres, mas também os de Nova Deli e de Brasília importam para como se interpreta a desigualdade espacial, raça, classe e deficiência.[15]

A trilha sonora do filme encoraja essa mudança de escalas. À medida que as personagens reúnem músicas para sua bomba sonora, seu esforço se concentra no impacto da música ceilandense para além de Ceilândia, acentuando o poder, tamanho e talento daquela região administrativa dentro da cidade. No entanto, há uma desconexão no que as personagens supostamente coletam e o que os espectadores ouvem. A canção final, lançada durante a destruição do Plano Piloto, é de um artista de Belo Horizonte e tem letra que remete de forma mais geral à violência na periferia. A maior parte da trilha sonora do filme (incluindo as músicas que as personagens cantam) é composta por canções populares dos Estados Unidos e do Brasil de vários gêneros (incluindo R&B, rap, soul e música eletrônica). Eles vão desde “Só vou gostar de quem gosta de mim” (1967), de Roberto Carlos, passando por “Mr. Big Stuff” (1971), de Jean Knight, até “You Be Illin” (1986), de Run DMC. Muitas vezes, como Marquim menciona explicitamente, a trilha sonora fornece exemplos do que Shokito e Marquim do Tropa costumavam dançar. Assim, enquanto a bomba sonora é marcadamente local, o uso da música no filme sugere interpretações mais universais. A oscilação entre escalas espaciais afirma um sentimento de pertencimento e transforma uma tragédia local em um apelo universal por resistência.

Notas


[1] Branco sai, preto fica foi premiado como melhor filme no Festival Internacional de Cinema do Uruguai, no Festival de Mar del Plata e no 47o Festival de Brasília (onde recebeu mais 10 prêmios). Também ganhou as seguintes premiações: Prêmio Exibição TV Brasil, Prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Prêmio Saruê, Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Cartagena e Menção Honrosa do Festival Internacional de Cinema da UNAM.

[2] Sobre a importância no Brasil da música negra (tanto internacional quanto nacional) como parte de uma “nova política de orgulho racial”, que contestou o mito da democracia racial, ver Pardue: “Emergence of Música Black” (45-47), em Brazilian Hip Hoppers Speak from the Margins (Pardue 46).

[3] O nome Quarentão refere-se à taxa de entrada do clube: 40 centavos, em Cruzeiros (Furtado de Araujo, 74). O “clube” era na verdade um salão de múltiplas funções no Centro de Ceilândia, que Gerson, o dono do Power Disco Dance, transformou em um salão de dança primeiro nas tardes de domingo e, depois, como as festas se tornaram cada vez mais populares, nas noites de sábado (Furtado de Araujo, 73). Para análises das festas de música black no Quarentão, ver Furtado de Araujo e ver Moysés.

[4] Em 2017, Queirós finalmente fez seu primeiro longa, Era uma vez Brasília. Este filme repete tanto os componentes visuais e temáticos de Branco sai que parece ser um remake do docudrama. Essas repetições incluem extraterrestres desesperados que vão para o DF em uma missão, mas são incapazes de entrar em contato com sua sede quando o plano dá errado; residentes ceilandense cujas vidas distópicas são pesquisadas e controladas pela polícia; um ataque planejado ao governo federal; personagens inflamando grandes objetos em terrenos baldios do DF e vendo-os queimar; muitas cenas filmadas dentro de naves espaciais improvisadas; um foco acentuado no rádio como meio de disseminar informações e valores; a inclusão de hits (tocados quase em sua totalidade) de artistas negros e/ou brasileiros que estão colocados em primeiro plano (em vez de servir como música de fundo que acompanha uma cena); cenas no estilo cinema verité de personagens se exercitando e fazendo refeições; cenas que evocam a imagem de Ceilândia como um presídio ou gaiola com barras de metal e malha de arame; tiros envolvendo fumaça de cigarro; cenas incluindo infraestrutura visualmente evocativa (andaimes e viadutos e passagem de pedestres); apresentações musicais de Ceilândia; diálogos esparsos; ritmo lento; e cenas com o metrô.

[5] O aspecto colaborativo dos filmes de Queirós é particularmente perceptível em Fora de campo, codirigido por Thiago Mendonça, sobre as dificuldades enfrentadas pelos jogadores profissionais de futebol da segunda divisão. Queirós jogou futebol profissional e, mais do que em seus outros filmes, Fora de campo tem uma intimidade intrigante que vem dos entrevistados de Queirós vendo-o como um colega, fazendo piadas, oferecendo sugestões sobre o filme, permitindo-lhe entrar em suas casas e perguntando-lhe se ele sente falta do futebol. Em certo momento, um entrevistado olha diretamente para a câmera e pergunta se Queirós já filmou a igreja de outro ex-jogador de futebol. Após a pergunta, o filme corta para uma cena de um culto religioso naquela igreja. Tais escolhas de edição aumentam a sensação de que os entrevistados participam na direção do filme.

[6] Para uma interpretação de Branco sai como “lo-fi sci-fi” que elabora mais sobre as restrições financeiras e o desejo de se desviar do mainstream, ver Suppia.

[7] Propocio Furtado também observa que os atores em Branco sai – produtores culturais e colaboradores de longa data da Queirós – possuem uma memória social significativa de Ceilândia, como a primeira geração a crescer lá (114).

[8] Para uma interpretação de Branco sai e A cidade é uma só? focada no tema da invisibilidade (tanto no sentido das pessoas que se sentem invisíveis dentro da cidade quanto das que não são mostradas na câmera), ver Procopio Furtado.

[9] O crítico Nick Pinkerton propõe que “é um caso muito raro em que um cineasta usa música pop não apenas para drenar seu efeito emocional, mas para sinalizar sua função como via para a memória cultural coletiva”.

[10] A chamada da polícia “branco sai, preto fica” poderia ser lida como irônica (se nenhum branco estivesse presente) ou como um esforço para não criminalizar algum frequentador branco ocasional.

[11] Queirós concordaria com Suppia e Gomes. O diretor descreve as cenas que teria incluído em seu docudrama se tivesse tido mais financiamento: “O ‘Branco Sai’ era pra ser um Blade Runner. O Marquinho ia voar no filme, a casa ia levitar, ia ter um plano aéreo da cidade, a gente ia promover um blackout na cidade. Ia ser um atentado à cidade. A gente ia derrubar a central com a câmera ligada, como se fosse blackout de energia. Tinha uma cena do Marquinho que quando ele apagasse a luz, ia ser blackout na cidade toda e o filme ia se passar todo no escuro da cidade. Mas a gente não tem dinheiro pra fazer isso” (“Entrevista com Adirley Queirós”).

[12] Geógrafas feministas reconheceram que o foco de Foucault na classe social deixou outras categorias, particularmente de gênero, subexploradas e que sua atenção a fatores externos ficou aquém da compreensão da “intensificação da autorregulação, autogestão e autocontrole” dos corpos, particularmente desde a década de 1980. (Grosz 2).

[13] Young afirma que a posição dos indivíduos em face aos grupos sociais influencia, mas não constitui, sua identidade, que “ajuda a resolver o problema da identidade ‘contas de um colar’: a identidade de uma pessoa não é uma soma de suas afinidades de gênero, raça, classe e nação. Ela é apenas sua identidade, que ela mesma fez pela maneira que ela lida e age em relação a outras posições de grupo social, entre outras coisas” (102).

[14] Antonio Cordoba ressalta, em contraste, que o espectador vê Shokito por um longo tempo antes da câmera exibir sua perna protética, então “não é a primeira coisa que o define aos olhos do público” (142).

[15] Ver Casanova sobre como destruir uma cidade na arte a eleva ao status de mito universal (27), e ver Suppia sobre como a destruição cinematográfica de Brasília se relaciona com como a ficção científica do sul global conscientiza sobre as condições de vida abaixo do padrão da maioria da população mundial (11).

 

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